Posted: 03 May 2020 03:33 AM PDT
«Raymond Chandler foi convidado, um dia, para escrever um argumento para o realizador Billy Wilder. Apesar de considerar que Hollywood era uma mansão mal-afamada, Chandler aceitou. Mas colocou uma condição. Tinham de pagar-lhe 150 dólares pelo trabalho. Wilder respondeu que tal não seria possível: o estúdio já tinha decidido pagar-lhe 750 dólares. Nunca houve o perigo de alguém chegar ao Ministério da Cultura e ser surpreendido por uma resposta assim. A generosidade tem limites na instituição sitiada no Palácio da Ajuda.
O Ministério da Cultura é um OVNI. Consta que os agentes Scully e Mulder chegaram a investigá-lo, mas o episódio dos X-Files com esta averiguação nunca foi exibido. De nada vale tocar à campainha do MC. Está desligada. Como se está a provar agora. Perante a implosão do sector da cultura em Portugal, o que fez? Criou um festival televisivo, que custaria um milhão de euros, e preparou um pacote para ajudar as editoras no valor de 400 mil euros. Com essa extremosa actividade, a sr.ª Graça Fonseca ganhou a distinção de “inexistência ministerial de 2020”. Não é um acaso. A sr.ª Fonseca, exemplar executiva, está no cadeirão do MC como poderia estar noutro lugar qualquer. Está lá em comissão de serviço para gerir uma casa sem destino e sem dinheiro. Viveu até agora de aparências.
Muitos acreditaram numa ilusão. Que, com a passagem de secretaria de Estado a ministério, a cultura ganharia dignidade. E dinheiro, o célebre maná do 1% (ou, mesmo, a utopia dos 2%). Errado. Nada mudou, só o nome. O resto, o dinheiro, continuou a ser uma miragem. A comédia continuou em marcha. Até agora. O momento da verdade. Acreditar que este MC existe é acreditar que Elvis Presley continua vivo. O MC é a caverna de Ali Babá. Bem os artistas podem clamar: “Abre-te, Sésamo!” A única coisa que de lá saem são personagens da Rua Sésamo. Divertem-nos, mas não têm ideias para a cultura nem dinheiro para fazer o que seja. São inúteis. Embora, bondosamente, acreditem (e acho que alguns acreditam mesmo) que estão ali para mudar o mundo.
O que custa mais é que o MC não tem uma estratégia para a cultura em Portugal. E isso é grave. O sucesso de um país depende das pessoas e das ideias. Não é só contabilidade. Há dias, o realizador Costa-Gavras dizia no El Mundo: “Creio que as coisas do espírito, a cultura, ainda mais nos tempos de crise, ajudam a reflectir, a unir as pessoas. A cultura liberta-nos dos nossos medos e faz-nos melhores. Por isso deve dar-se à cultura a mesma consideração, se não mais, que a todas as demais necessidades da sociedade.” Este poderia ser um momento de ruptura. Teme-se que seja o do colapso total.
Estes tempos lembram o célebre fim do século XIX, numa Viena por onde deambulava Karl Kraus. Aí, a política tornara-se a menos empolgante das artes performativas. Não eram os políticos, mas os actores, pintores, escritores e músicos que capturavam a imaginação das classes médias e altas. Com o império Habsburgo a desintegrar-se, parecia a Kraus que ali a vida já não imitava a arte. Estava a parodiá-la. Assistimos a tempos destes, e a política (como se viu nas propostas minimalistas e vazias para o sector da generalidade dos partidos políticos na última campanha eleitoral) trata a cultura como um acessório.
A existência da sr.ª Graça Fonseca à frente de um OVNI, o MC, é o fruto da inexistência de uma estratégia cultural do Estado em Portugal. Seja a nível das ideias, seja a nível do dinheiro para que elas se concretizem. Criou-se uma comédia: os políticos ainda gostam de rodear-se de artistas antes das eleições, mas rapidamente os substituem por visitas aos programas de entretenimento. O intelectual deixou de ser um passaporte de credibilidade. E, por isso, a cultura tornou-se um cálice frágil. Basta reler o OE de 2020 para ver que estão afectados a todas as áreas tocadas pelo MC muito menos de 0,5%, para sectores que vão da preservação de património ao cinema, teatro, dança ou literatura. É uma comédia para não rir.
A crise da cultura portuguesa, com as livrarias, os cinemas, as galerias e as salas de espectáculos fechados, é uma tragédia sem nome. O resultado de uma ilusão colectiva. Num mundo em que o economista substituiu o intelectual como referente, este sector sente na pele o quase desprezo pela cultura. Como se fosse um puro objecto comercial que deva ser colocado sob o signo das implacáveis leis de mercado. Sem mais. A cultura e o pensamento assumiram um papel subordinado face aos números e são incapazes de reivindicar o seu valor. Longe vão os tempos em que uma seguradora, a New England Life, usava uma biblioteca como referência num anúncio. Isso perdeu-se. Vamos descobrir rapidamente porquê.»
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