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domingo, 28 de junho de 2020

Not clean, not safe

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 27/06/2020)

Clara Ferreira Alves

Agora, os mesmos que disseram que éramos um destino de eleição para as férias inglesas, ou britânicas, dizem que somos pestíferos. Em vez do recorte da Praia da Rocha com água verde-esmeralda, vêm os números da peste.


Não somos o Estado pária, estamos logo abaixo do Estado pária. A Suécia. Os entusiasmados do costume, mais ou menos os mesmos que se comoveram com a vitória de Trump com o voto das massas, humedeceram os olhos com a “experiência sueca”. Sem tomarem medidas de confinamento ou proteção, sem fecharem a economia, os suecos guiados por um único epidemiologista e as suas teorias esdrúxulas sobre a imunidade de grupo, ou de manada, ordenaram a eugenia. Os velhos internados com 65 anos ou mais foram abandonados, ordens para não serem tratados ou assistidos, acabando por morrer na solidão e na agonia, visto que dois terços dos trabalhadores dos lares desertaram quando a epidemia atingiu o sector. Dois terços. A Suécia exibe agora um número de mortos muito superior ao dos civilizados vizinhos, a Noruega e a Dinamarca, e tem a entrada barrada em todos os países europeus. Se fossem os alemães a tentar a experiência, não faltariam os gritos e acusações de nazismo e ressuscitação de Goebbels. Sendo os suecos, bom, sendo os suecos, torna-se um sinal de uma superior civilização.

Em Portugal, somos grandes admiradores das civilizações superiores, praticamente todas as dos países mais ricos do que o nosso. Assim se explica a quantidade de notícias em jornais portugueses sobre jornais estrangeiros que publicam notícias sobre portugueses. O “Sunday Times” disse, o “Telegraph” disse, e inchamos o peito de orgulho com a distinção. Pode ser uma notícia com três parágrafos, nós nos encarregaremos de a dilatar. Pode ser uma notícia falsa, ou mal informada, nós nos encarregaremos de a reproduzir, porque estas breves contribuem para a chamada autoestima dos heróis do mar.

Agora, os mesmos que disseram que éramos um destino de eleição para as férias inglesas, ou britânicas, dizem que somos pestíferos. Em vez do recorte da Praia da Rocha com água verde-esmeralda, vêm os números da peste. Os novos surtos. Em compensação, a Espanha aparece como o eldorado, aberto a receber as hordas da cerveja e do peixe frito, do vinho reles e da salsicha. Vivam Benidorm e Torremolinos, abaixo a Quarteira e Albufeira. Como é que isto nos aconteceu? Simples, bastava termos mentido. Uma criança saberia como fazer.

Recapitulemos. Ainda não há muito tempo, a Espanha estava carregada de mortos, de infetados e de problemas. Tivemos de os defender dos holandeses. Os números eram tão superiores e as medidas tão desordenadas que as “autoridades espanholas”, uma coisa que ninguém sabe bem o que seja, decidiram fechar as fronteiras não as abrindo tão cedo. A fronteira com Portugal foi fechada de um dia para o outro e sem comemorações, cada país tratou de si como pôde. É o período do chamado “milagre português”, tão grande como o de Fátima e tão mitificado como este. A fé tem muita força.

O tempo foi passando, as autoridades portuguesas, que são muitas e várias, entrando em contradição, disseram que podíamos sair de casa. Numa praia onde num dia não podiam estar dez pessoas juntaram-se 180 mil, com a augusta presença do senhor primeiro-ministro. Sem transição e sem raciocínio logístico. Confina, desconfina, vamos festejar. Em Espanha, tudo continuava na mesma. Mal.

É possível que tenha sido uma invenção nossa, na sequela de corredores entre países com baixa taxa de infeção. Enquanto os outros abriam corredores seguros, éramos o único país do mundo a querer negociar e abrir um corredor com os inseguros ingleses. O primeiro e único. A Grécia disse que não abriria, para não borrar a pintura dos campeonatos de infeção e mortalidade, e a Espanha secundou. A decisão portuguesa parecia assim deslocada e imprudente. O “Telegraph” publicou uma notícia a dizer que Portugal era bestial. A seguir, veio a quarentena inglesa, que a gente do turismo e da aviação aguentou e vituperou. Orgulhosamente sós, perseverámos na negociação do corredor, e parece que estava a correr bem, o Boris aceitava, o nosso ministro dos Negócios Estrangeiros rejubilava com este negócio estrangeiro. Criámos o selo Clean & Safe e prometemos desinfetarmo-nos bem para receber hóspedes de um país com uma taxa de mortos e infetados tão grande que era a primeira do espaço europeu. Pior que a Espanha e a Itália. Ia ficar tudo bem.

Entretanto, de Espanha chegaram mudanças repentinas nas datas de reabertura da fronteira com Portugal, sem comunicação prévia aos portugueses. Assentou-se o 1 de julho, e os portugueses ficaram todos contentes, a coisa ia meter chefe de Estado e primeiro-ministro. Do lado de lá, o rei, muito útil justamente para cerimónias destas. Ia ficar tudo bem.

Não ficou. Enquanto o desconfinamento acelerado nos trazia mais mortos e infetados, a Espanha aparecia com zero mortos. De um dia para o outro, zero mortos. Zero tudo, os números não atinavam. Enquanto exibia zero mortos, a Espanha ia negociando um corredor com os ingleses, prometendo a abertura de fronteiras. Numa clara operação de propaganda, a Espanha passou-nos a perna, como de costume, e anunciou que estava aberta para o turismo além-mancha, o alemão, o que se quisesse. O “The Guardian” noticiou a coisa, como um acontecimento grandioso, o “Telegraph” também. ABRIRAM. Ninguém falou mais de Portugal, que continuava aberto, nunca fechou, mas sem corredor, à espera da cerimónia fronteiriça. E até a Grécia, tão sóbria, tão fechada a infetados, resolveu abrir o corredorzinho com os ingleses e colocar Portugal na lista negra, numa operação de concorrência desleal que brada aos céus. Chama-se a isto, em bom português, esperteza saloia.

Entretanto, por aqui, negociando a final do Champions, com as autoridades aos saltinhos, deixámos a coisa descambar e a Europa virou-nos as costas. Estado pária, abaixo da Suécia. A Grécia e a Espanha tinham agora o verão desimpedido pela concorrência portuguesa. A Espanha passava por imaculada, mas a versão estava tão estragada como a Imaculada Concepção de Murillo desfigurada por um carniceiro armado em restaurador de arte antiga.

Ou seja, a Espanha mentiu. Mentiu sobre os mortos e infetados porque sonegou os números durante 12 dias, 12, camuflando a desonestidade com a desculpa de que estava a rever os “critérios de contagem”.

O “The Guardian” fez mais uma notícia dizendo que a direita espanhola atacava o Governo com isto, como se o argumento fosse uma invenção política. A Espanha reviu os números, e não eram bonitos. Continuavam as mortes. Por cá, tratando-se de um Governo amigo, socialista, de esquerda, optou-se por enterrar o assunto. E continuamos na lista negra, à espera da fotografia com o rei, em que, para a coisa ser devidamente oficializada no dia 1 de julho, se aconselha o uso de um barrete bem enfiado na cabeça dos nossos chefes de Estado. Para cúmulo, o britânico país mais infetado da Europa veio rever a sua apreciação de Portugal e disse que considerava pôr o nosso país na lista negra, arredando a hipótese de um corredor aéreo ou do turismozinho em Portugal.

Logo fazerem-nos isto a nós, os mais velhos aliados, que pusemos um enfermeiro português a oxigenar o Boris Johnson. E quando encomendámos tantos selos Clean & Safe.

Nota: Escrito na quarta-feira. Pode ser que no sábado nos tenham perdoado. Ele há milagres.

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