por estatuadesal
(António Guerreiro, in Público, 03/07/2020)
António Guerreiro
A partir do momento em que se entrou na época da “pós-verdade” (consagrada em Novembro de 2016 como “palavra do ano” pelo Oxford Dictionaries, o departamento da Universidade de Oxford que se ocupa da elaboração de dicionários da língua inglesa), o ponto mais elevado a que se ergue o jornalismo, nas suas auto-representações, através das quais ele reivindica um capital de prestígio designado como “jornalismo de referência”, é o fact-checking, isto é, a verificação da informação que, por qualquer meio, é posta a circular no espaço público.
O processo de fact-checking, pelo qual os que o praticam outorgam a si próprios o estatuto de sujeitos-supostos-saber (que me seja perdoado este anglicismo), separa a verdade da mentira, depura os factos das interpretações viciosas, resgata a realidade às fábulas difundidas como maquinações. Usando uma palavra vinda das origens gregas desta discussão, chamemos-lhes “epistemocratas”. E, no entanto, este ofício virtuoso dos fact-checkers não deixa de ter um sabor amargo e de provocar a suspeita de que ele não ousa dizer o seu nome completo, muito menos virtuoso do que parece.
Em primeiro lugar — mas isto é talvez a crítica mais ligeira que lhe pode ser feita — o jornalismo do fact-checking não apreende, como se tornou hoje necessário, o fenómeno das fake news que caracteriza verdadeiramente aquilo a que se chama “pós-verdade”, em que se dá uma perda da distinção — e uma interferência — entre o verdadeiro e o falso. A eleição de Donald Trump e o Brexit são os dois acontecimentos supremos que dão uma projecção global ao triunfo da pós-verdade. Para o “jornalismo de referência”, a separação nítida entre o verdadeiro e o falso é actualizada e promovida sobretudo pelas redes sociais, consideradas os lugares por excelência da mentira e da manipulação. Mas este olhar previamente orientado resulta numa certa cegueira em relação a outros lugares mais interessantes, exactamente porque menos óbvios: aqueles em que este jornalismo que faz do fact-checking a sua bandeira de combate é incapaz de reconhecer o papel activo que desempenha no mundo político da pós-verdade, desde logo porque se situa exclusivamente no campo das verdades factuais e, para além delas, é incapaz de discutir o que quer que seja, como se o mundo — político, social, cultural, etc. — fosse um conjunto de factos e acontecimentos e estes esgotassem tudo o que há para ser dito. Esta é a grande falácia do fact-checking, de um jornalismo a que alguém já chamou “pós-político” (um nome que sugere que ele é consubstancial à pós-verdade), e que tem as características de uma concepção espontânea e muito imediata da sua prática. Quem nunca percebeu que as mentiras e incorrecções detectadas neste processo de verificação são quase sempre dotadas de argúcias e subtilezas que são aquilo que importaria analisar, é porque já prescindiu de toda a atitude crítica. Os mesmo que fazem com toda a convicção o fact-checking são os mesmos que não sabem perceber que os factos, muitas vezes, dizem muito pouco acerca de si próprios e que até os discursos imbecis podem ser inteiramente feitos de verdades. Os noticiários televisivos são hoje uma amostra muito eloquente desta fetichização dos factos, das imagens que mostram a realidade e no entanto mentem ou induzem à mentira. A situação particular da pandemia exacerbou este pecado capital, como se percebe perfeitamente no jornalismo de casos e de números, ilustrados por imagens e palavras que nada dizem ainda que sejam verdadeiras, e por reportagens sobre os potenciais portadores do vírus, trabalhadores vindos das periferias nos transportes públicos. Sobre a transição das imagens indulgentes em relação aos “transgressores” em busca de lazer da primeira fase para as imagens repressivas e acusadoras transmitidas nas últimas semanas, escreveu Paulo Pedroso um texto onde faz uma análise muito pertinente, no PÚBLICO de 27 de Junho, A covid-19 e o elitismo.
O jornalismo do fact checking é o mesmo que, através de uma concepção editorialista que domina hoje o jornalismo (refiro-me ao peso que nele adquiriu a opinião e o comentário políticos, em detrimento do jornalismo propriamente dito), permite que seja precisamente aí, onde factos e interpretações escorrem livremente e sem controlo, o lugar privilegiado da “pós-verdade”.
Livro de recitações
“E os pós-modernos, a maior parte dos quais filósofos de esquerda,
ficam a pairar, suspensos, cortados da sua raíz?”
Sérgio Sousa Pinto, in Expresso, 27/06/2020
A questão surge no final de um texto sobre “a nossa condição” e as manifestações iconoclastas das últimas semanas. Dizer de alguém que é “pós-moderno” tornou-se uma acusação que dispensa argumentos. Mas ela é sempre endereçada a alguém indefinido, a uma categoria que só conseguimos adivinhar a quem corresponde se conhecermos o discurso do acusador. Se perguntarmos a Sérgio Sousa Pinto quem são os filósofos pós-modernos que cabem na sua designação, todos os nomes que ele propuser estão certamente sujeitos a uma veemente refutação, desde logo porque tal categoria, tirando talvez os fugazes respresentantes do “pensiero debole” italiano, é vazia. E a “aversão à modernidade” que ele vê nos “soldados intelectuais da desconstrução”, deixando intuir nesta metáfora jocosa a quem se refere, denuncia o discurso estereotipado, sem uma ponta de rigor, que faz da noção de pós-moderno um sintoma da aversão reaccionária a tudo o que tem um potencial crítico da ideologia espontânea de quem assim escreve.
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