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sábado, 12 de dezembro de 2020

Aceita pagar 10 cêntimos ​​​​​​​à viúva de Ihor Homenyuk?

por estatuadesal

(Daniel Deusdado, in Diário de Notícias, 11/12/2020)

Neste momento parece fácil bater em Eduardo Cabrita mas já aqui havia escrito que o ministro da Administração Interna devia ter saído muito antes - aquando do caso do escândalo das golas antifogo, durante o primeiro Governo socialista. Já nessa altura se percebia que não havia um "ethos" no ministério e que faltava noção do que ali passava. Este caso permite compreender, de novo, como foi tão fácil chegar-se à total bandalheira na qual agentes do Serviço de Estrangeiros e Fronteiras (SEF) mataram uma pessoa acabada de chegar a Portugal e esconder o caso durante semanas. Um grau de inimputabilidade desta dimensão não sucede de um dia para o outro.

António Costa leva demasiado longe a ideia de que em política tudo se esquece, mas errou tremendamente ao ter insistido, no novo Governo, num companheiro de partido de velha escola - que já se havia mostrado totalmente desadequado para os tempos que vivemos. Não ter agido mais cedo perante um caso desta gravidade é esquecer muito do que fez e disse ao longo da vida.

Não podemos recuperar a vida do ucraniano Ihor. A viúva talvez receba um milhão de euros de indemnização. Dividido o custo por todos, são 10 cêntimos por português para compensar o crime, uma pechincha enquanto tira-nódoas da honra de um país. Mas esta moeda deveria simbolicamente representar a pergunta dos 10 milhões de portugueses: quem são exatamente estes agentes do SEF? Vão continuar a ser servidores do Estado? Como é possível agirem assim em Portugal, século XXI, aeroporto de Lisboa?

Assusta-me que esta gente exista. E que uma organização policial portuguesa chegue a este limite. Se morrem pessoas... bom, qual terá sido o clima de terror físico e psicológico durante meses (anos?) dentro daquelas paredes. Não me reconheço nesse país e nunca me ocorreu, ao passar regularmente por inspetores do SEF nos aeroportos nacionais, ter razões para temer a sua brutalidade.

Que isto demore nove meses a apurar pela Inspeção Geral da Administração do Território é o melhor indicador sobre a total ineficácia e regular abuso do Estado - seja no SEF, sejam em tantos outros organismos públicos que cada vez mais deixam de responder sine die ou aterrorizam por abuso de autoridade.

Recordo-me bem da noite de 29 de Março de 2020. Era um domingo à noite de um país dramaticamente confinado. O mundo desabava pela covid-19, as imagens de Itália e Espanha traziam a morte galopante. Na TVI, no Jornal das 8, José Alberto Carvalho demonstrava a dificuldade em escolher qual das duas brutais manchetes do dia devia ser mostrada em primeiro lugar aos telespectadores. Optou pela pandemia por breves minutos, mas logo depois apresentou o caso "SEF". Três dias depois o DN encetou um trabalho exemplar para detalhar como foi possível chegar-se ao homicídio. Outros surgiram depois. Pouco eco. Nenhuma reação significativa no Governo.

O caso Ihor. Era tão inacreditável que parecia impossível que fosse mesmo assim. Um funcionário do SEF finalmente quebrara o jugo do medo e contara à Imprensa o que acontecera. Fê-lo porque presumiu que nunca saberíamos disto pelos circuitos internos do SEF.

(Aliás, no SEF, quantos sabiam? Que gritos ecoaram no aeroporto? Ninguém tentou ajudar? Que vestígios foram apagados? Que repressão existe sobre as pessoas que ganham a vida a limpar o chão e as paredes das "Salas de Tortura SEF" sem que possam perguntar de onde vem aquele sangue e ter direito a uma resposta?)

E isto é ainda mais angustiante porque o meu país não é isto. Portugal supostamente recebe bem os estrangeiros, tem forças de segurança civilizadas e leis com respeito dos Direitos Humanos. Pior: como demorar nove meses a tirar conclusões e a mudar aquela estrutura de cima a baixo? Alguém enlouqueceu ou perdeu-se a total decência?

Falarmos de Eduardo Cabrita é já perder tempo. Penso sim na brutalidade de quem matou Ihor. E vejo nisto a impunidade do novo tempo, alimentada pelo discurso de ódio de Trump em controlo remoto pelo mundo. Que por cá também se instalou, bem demonstrado na deflagração de extremismo fascista dentro nas forças policiais, como se vai vendo nas redes sociais ou em privado.

Mudar o SEF não chega. Ou o Estado gasta dinheiro a avaliar a saúde mental das diversas polícias, ou há muito mais em causa. Polícias sem medo da lei são o melhor instrumento para instalar a prazo um regime autoritário, mesmo que democraticamente eleito. Não fazer deste caso um aviso sério é desistir-se da decência e da liberdade.

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