por estatuadesal
(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 11/12/2020)
Clara Ferreira Alves
Teorias da conspiração, cada um tem a sua. A minha é a do caso Dominique Strauss-Kahn. O diretor do FMI que foi preso e acusado de ter violado uma empregada do hotel francês em Nova Iorque onde ocupava a suíte presidencial. Naquela época, DSK estava na calha para ser o futuro presidente de uma França que odiava Nicolas Sarkozy. E era uma ameaça ao mundo nebuloso da alta finança internacional, criticando o comportamento da banca e instituições financeiras que levou à crise de 2008 e que, em 2011, quando ele foi apanhado, estava a preparar a desintegração da Europa. Se DSK tivesse prevalecido, a crise da dívida soberana teria sido diferente, e os resgates da Grécia e de Portugal também. Um dia, será feita a história completa deste período. O que temos são peças de um puzzle e cada um junta as que pode e sabe.
DSK tinha uma vida sexual pouco convencional e foi caçado na teia das “indiscrições”. Não havia melhor candidato para uma armadilha sexual, e caiu nela. Quanto a Sarkozy, acusado de corrupção ao mais alto nível, também não havia melhor candidato para uma conspiração destas. O próprio DSK previra, pouco tempo antes, que Sarkozy tentaria armadilhá-lo sexualmente e estender-lhe a famosa honey trap, truque dos serviços secretos que espiam as vulnerabilidades pessoais. O erro de DSK foi, ao intuir a trama, não resistir ao mel. Era um pecador convicto e descuidado.
É a minha convicção. Destituída de provas e não destituída de convencimento lógico misturado com emocional, uma mistura explosiva. Jay Epstein escreveu um relato minucioso e cronológico da armadilha na “New York Review of Books” que me convenceu, demasiadas inconsistências polvilhavam a versão da assaltada e mesmo das autoridades policiais de Nova Iorque, que não resistiram a passear DSK no famoso perp walk e assim espatifar-lhe a carreira para sempre. Com a passagem do tempo e a pressão do movimento Me Too e da cancel culture, o dito Epstein acabaria por rever a teoria, sem deixar de manter o essencial. DSK foi armadilhado? Por quem? Nunca saberemos.
As mortes de Francisco Sá Carneiro e Snu Abecassis, Adelino Amaro da Costa e mulher, de António Patrício Gouveia, dos dois pilotos, foi inesperada e traumática. Para quem viveu aqueles tempos de uma política perturbada pela violência e o radicalismo, pelas derrotas e vitórias torturadas, o acidente de Camarate teve contornos duvidosos. E para quem esteve na última conferência de imprensa de Sá Carneiro no Hotel Tivoli, ao lado do candidato Soares Carneiro, e viu e ouviu um chefe político manipular a íntima certeza de que sairia derrotado da contenda contra Eanes e a esquerda ao mesmo tempo que apregoava a vitória, a contemplação na longa noite dos destroços fumegantes engendraria um pesadelo sem despertar. Nada, naquelas eleições, fora normal.
Sá Carneiro, um homem com olhos azuis de aço afiado e magnetizado pelo chamado carisma, foi atacado pelo Partido Socialista por causa da ligação com Snu Abecassis de uma forma soez. Hoje, os tempos são mais civilizados. Por sua vez, a direita reacionária e negacionista corria a albergar-se debaixo do chapéu largo do PPD/PSD, não escondendo o ódio aos socialistas, que por sua vez odiavam e eram odiados pelos comunistas. Polarização, chamava-se isto. No CDS, Freitas do Amaral, com Amaro da Costa, tentava civilizar a direita. Em frente à sede do PS, no Largo do Rato, desfilava-se com a saudação nazi. Dentro do edifício, havia quem preparasse a resistência armada. Sobravam armas, resultado de uma descolonização apressada, e muita gente escondia-as em casa à espera de as usar. Portugal evitou a guerra civil graças aos chefes civilistas, Sá Carneiro, Mário Soares, Diogo Freitas do Amaral, e graças à moderação e autoridade do militarão Ramalho Eanes, que se revelaria um general estadista. Naquele tempo, não era claro que o fosse. As paixões espumavam, e o PS vivia num clamor contínuo, dilacerado entre uma direita acirrada e a ameaça de Cunhal à esquerda. Ontem como hoje.
Soares Carneiro era um candidato deplorável, um general inexpressivo e opaco, que Sá Carneiro vendia sabendo que não conseguira arranjar melhor e que fora buscar contra um Ramalho Eanes fortíssimo, o mesmo Eanes que valeu a Mário Soares um dos combates maiores pelo comando do partido que fundara.
Conhecendo as limitações da AD, a Aliança Democrática, e das franjas do PPD/PSD, da direita não alinhada, Sá Carneiro era um homem só. Mais inteligente do que as hostes, mais desconfiado, mais preocupado do que parecia. Este católico conservador clássico, que não apreciava a esquerda, sabia que construir uma ala direita forte num país saído de uma ditadura de décadas, com uma classe dominante constituída por uma alta burguesia inculta e um empresariado incipiente, que não apreciavam a diminuição dos poderes e a transferência democrática, significava fazer concessões e alianças com gente pouco recomendável e indisciplinada. A esquerda era demasiado poderosa, apesar de dividida. Rodeado dos delfins, a massa crítica e a gente mais inteligente do partido, ou seja, rodeado de elitistas, sabia que o país não era aquilo. Portugal era um amálgama de teorias, armadilhas, golpes, contragolpes, rumores e intrigas. Na sombra, apoiado por Moscovo, o brilhante e perigosíssimo Álvaro Cunhal ainda esperava a hora de derrotar o 25 de Novembro de vez.
No Tivoli, a temperatura era de escaldar. Berros, imprecações. Recém-chegada ao jornalismo e à política, lembro-me que olhei para aquilo como quem assiste a uma ópera bufa. Observei como um dos criados da política, os assessores antes de o serem, ser mandado entregar uma pergunta a uma famosa jornalista da televisão, já falecida, para ela fazer a Sá Carneiro. A pergunta ia num papel. E nem se preocuparam em esconder a manobra. A jornalista, que era do partido, fez a pergunta. Pensei, isto não pode ser a maneira de fazer jornalismo em política. Os escrúpulos não abundavam. O jornalismo, tal como a política, inventava-se depois do lápis da censura. Era tudo muito tosco e primitivo.
Pode ter sido um atentado. Pode ter sido um acidente, a versão em que sempre acreditei. Tudo tão tosco e primitivo como o resto. Descobrir, em 2021, que vivo num país onde o Presidente da República social-democrata acredita que foi atentado e nada acontece, como se fosse natural, arrepia-me. Um país onde seria possível assassinar sete pessoas impunemente. Uma delas, o primeiro-ministro. Imaginar que foi atentado significa atestar que o Estado de direito falhou, a Justiça falhou, o encobrimento venceu. Teorias da conspiração, cada um tem a sua.
Nestes 40 anos das mortes de Camarate, um pesado manto de nostalgia cobre, ainda, a orfandade da direita portuguesa. O PSD anda à deriva e à procura de D. Sebastião. Sem âncora ideológica, sem convicção, sem programa, sem outro desejo a não ser a despeitada ocupação do poder, esta direita dos caciques nascida do aparelho partidário que o cavaquismo personalista bombardeou e que o poluído Chega intoxicará com populismo, não chega para reformar Portugal. Mimetiza a direita insurrecta e ignorante do tempo de Sá Carneiro. A que ele sabia menos inteligente do que ele. E os novos elitistas, mais uma vez, não têm voz ativa nem representam o país. O CDS está no parque infantil. O PSD não despiu o luto.
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