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sexta-feira, 22 de maio de 2020

Algumas coisas que aprendemos com esta crise

por estatuadesal

(Alexandre Abreu, in Expresso Diário, 21/5/2020)

A epidemia está longe de ter terminado e é cedo para tirarmos conclusões categóricas. A experiência histórica sugere que haverá provavelmente mais vagas até dispormos de uma vacina. A crise económica está apenas a começar e não vai ser ligeira. Mas há algumas coisas que podemos já aprender com a crise dos últimos meses e que é boa ideia começarmos já a registar e recordar, à medida que a vida começa a regressar à normalidade possível e antes que o manto do esquecimento se vá estendendo sobre a excecionalidade destes últimos meses.

O SNS, barreira contra a barbárie. Após anos decortes, subinvestimento e desperdício de recursos na contratualização muitas vezes irracional de serviços e meios de diagnóstico externos, o nosso Serviço Nacional de Saúde, público e universal, mostrou toda a sua qualidade técnica e humana e é um motivo de orgulho e tranquilidade para todos.

Ficou claro que quando as coisas apertam no domínio da saúde, não queremos estar dependentes de operadores privados que entram em lay-off porque esta crise não é suficientemente lucrativa, nem de seguros de saúde privados que alegam condições excecionais, muito menos à mercê de um sistema em que só quem pode pagar é que tem direito à saúde e à vida. Um Serviço Nacional de Saúde público, universal, gratuito e bem apetrechado é uma condição de civilização. Depois das palmas, devemos acarinhá-lo e dotá-lo dos recursos adequados.

Estamos tão seguros quanto o menos seguro de entre nós. Numa epidemia, quando alguns não têm possibilidade de aceder a cuidados de saúde, o risco aumenta para todos. Mas o mesmo sucede com a habitação em condições, ou com a segurança no emprego e no rendimento. Aqueles que, por falta de condições básicas de habitação e subsistência, não têm possibilidade de se resguardar adequadamente irão inevitavelmente expor-se a si e aos outros a riscos acrescidos e dificultar o controlo de qualquer surto epidémico. A habitação, o acesso ao emprego e a segurança no rendimento são, além de direitos humanos, fatores de saúde pública.

A sociedade existe e sem ela estamos perdidos. Quando recolhemos às nossas casas e limitámos os nossos contactos, quando nos vimos perante o risco de colapso dos sistemas de abastecimento, mas também quando neste contexto redescobrimos o valor e a importância da solidariedade e dos laços comunitários, percebemos que ninguém é uma ilhae que todos dependemosuns dos outros. A frase de Margaret Thatcher, “a sociedade não existe, só existem indivíduos e famílias”, além de objetivamente falsa, é um manifesto sociopata.

A produção local importa. A deslocalização da atividade produtiva no contexto da globalização vulnerabilizou trabalhadores e comunidades inteiras e criou absurdos ecológicos como os que levam legumes e fruta a dar a volta ao mundo antes de chegar às nossas mesas. No contexto desta crise, percebemos que a dispersão extrema das cadeias de valor é além do mais um fator de vulnerabilidade acrescida e que há muitas coisas – alimentos, medicamentos, equipamentos essenciais – que não podemos deixar de produzir. Devemos voltar a enraizar localmente a produção e desglobalizar aquilo que nunca devia ter sido globalizado.

A pobreza também faz perder anos de vida. No contexto do debate sobre o desconfinamento, foi argumentado por muita gente – de forma inteiramente correta – que a pobreza também mata. O argumento foi invocado para levar-nos a sair de casa e regressar à atividade, também em nome do valor maior da vida. Mas precisamente porque é inteiramente verdadeiro, este argumento deve ser levado às suas consequências. Combater a pobreza é também salvar vidas, e é também por isso que precisamos de reforçar as principais armas conhecidas contra a pobreza: serviços públicos universais e gratuitos e prestações sociais abrangentes e adequadas, financiadas por impostos progressivos. A nossa sociedade tem um nível de prosperidade suficiente para assegurar que ninguém vive na pobreza, só precisamos de distribuir melhor a riqueza que existe.

A importância da ciência. A ciência não é a revelação da verdade, mas é a busca sistemática pela correção do erro. É isso que a distingue das crenças. No contexto desta crise deparámos-nos com uma epidemia de boatos e desinformação e isso mostrou a importância da literacia científica para a nossa sociedade. A varíola, erradicada em 1979 graças à vacina, matou entre 300 e 500 milhões de pessoas só no século XX: números que ilustram a distopia catastrófica de um mundo em que o movimento antivacinas conquistasse mais adeptos. Essa e outras formas contemporâneas de obscurantismo são um perigo face ao qual devemos mobilizar-nos.

A política é indispensável. A política é o domínio das escolhas coletivas, que envolvem opções entre valores e interesses contraditórios. Quando o governo, após escutar os epidemiologistas que em geral apelavam à manutenção sine die do confinamento e os empresários e economistas que em geral apelavam ao desconfinamento imediato, optou por um rumo que procura conciliar de determinada forma os objetivos de controlo da epidemia e minimização da recessão, fez, bem ou mal, uma escolha política. Fê-lo com a legitimidade de quem foi eleito, de quem é escrutinado e limitado pelos outros órgãos de soberania e de quem vai continuar a ser avaliado pelos cidadãos. Ainda bem que assim é. A política não pode ser dispensada, nem as decisões coletivas delegadasem especialistas.

Quando é indispensável, o impossível torna-se alcançável. A pandemia de COVID-19 provocou, exigiu, algo que todos julgaríamos impensável: que mais de um terço da população mundial, e a grande maioria da população portuguesa, recolhesse a casa e reorganizasse profundamente a sua vida para responder a uma ameaça de saúde pública. Esta capacidade de responder coletivamente perante uma ameaça existencial é uma lição que devemos reter no contexto da resposta à crise climática, que pende igualmente sobre a vida e saúde de todos nós e dos nossos filhos e netos. É possível viver e produzir de maneiras diferentes. Sendo isso indispensável, temos mesmo de fazê-lo.

A liberdade que importa. Nas horas mais difíceis desta crise, foram-nos dados a perceber os sentidos mais profundos e fundamentais da liberdade. Não se trata da liberdade negativa de negociar e enriquecer. Trata-se da liberdade, de que temporariamente nos vimos privados, de nos movimentarmos como quisermos e estarmos com quem quisermos. Trata-se da liberdade, de que nunca considerámos abdicar, de nos expressarmos e participarmos nas decisões coletivas. E trata-se de nos mantermos livres da fome, livres da necessidade e livres do medo. São liberdades que se constroem em cooperação e não em competição, em segurança e não em precariedade, em sociedade e não cada um por si.

O que está a falhar no combate ao coronavírus? A falta da empatia popularizada

Posted: 21 May 2020 03:39 AM PDT

«No dia 2 de Março, que marcou o começo do surto do covid-19 em Portugal, eu, como estudante chinesa de mobilidade, estava em Lisboa e decidi ficar no país para acabar a mobilidade que duraria até ao fim de Julho. Na altura, os episódios de discriminação contra chineses registados em Portugal ainda eram raros, enquanto já estavam a aparecer atitudes preconceituosas e hostilidade contra nós noutros países. Sentia sorte por estar aqui, segura das discriminações. Mas com o tema do coronavírus a ser tudo na vida, as coisas mudaram em Portugal. Comecei a saber de mais casos de discriminação que aconteceram a amigos chineses, a ver cada vez mais comentários discriminatórios a aparecerem em sites portugueses.

Depois de ter sido chamada coronavírus numa rua em Toledo porque estava de máscara quando esta se demonizou pela maioria dos europeus e de ter sido encarada com olhar ofensivo numa rua em Lisboa por ter tossido duas vezes ao sentir comichão na garganta — episódios que não passavam de reacções ignorantes, mas aceitáveis, face ao medo pelo vírus —, há uns dias fiquei chocada ao ver o Jornal da Tarde, na RTP: numa entrevista, um menino cantou “Ai a minha vida... este coronavírus veio para Portugal, foi jogado pelos chineses. Eu mando pô-lo fora!” No fim da entrevista, a jornalista perguntou quem inventou a letra e o menino respondeu: “Nós, os ciganitos.”

A entrevista realizou-se no contexto de um projecto que procura esclarecer a situação do vírus em bairros mais pobres de Algarve. No entanto, a minha preocupação é outra: é essencial a democratização do conhecimento científico sobre o vírus, mas a campanha contra a discriminação não se deve ignorar, visto que a doença pode desaparecer, enquanto o preconceito, já enraizado, nunca se elimina facilmente.

Todas as experiências de discriminação — desde as minhas às de outros chineses que já presenciei — deixaram-me chocada pelo facto de a ideia de a China ser culpada por este vírus já ter uma divulgação tão alargada e estar tão arreigada na cabeça de meninos que talvez ainda nem saibam ler. Sinto-me feliz por aquele menino de olhar inocente se manter, sob o apoio social, a salvo do vírus. Mas triste porque foi “contagiado” sem consciência por um preconceito espalhado entre a comunidade. O menino pode não estar a perceber a conotação hostil da letra contra uma raça, mas infelizmente ninguém o corrigiu. Estou com receio que, vivendo num ambiente assim, com preconceitos como “o outro é inimigo” e com toda a gente de braços cruzados, apareçam cada vez mais pessoas com atitudes ainda mais tendenciosas e agressivas para com uma comunidade e um país.

Quando o novo coronavírus se divulga, o vírus mental representa um risco de contágio mais forte. Quando cada vez mais pessoas consideram a China culpada, há risco de se justificarem acções como o ataque de fezes contra dois alunos chineses, recentemente registado na zona de Picoas, em Lisboa, a atitude indiferente da polícia ao caso, a canção inapropriada divulgada, etc. Num mundo de incompreensões e discriminações, somos cúmplices. Neste mundo, uma propaganda enganadora, uma expressão preconceituosa, um olhar discriminatório podem ser uma bomba-relógio.

Estamos a falhar na descontaminação contra discriminações: falhou a família na educação da igualdade, falhou a RTP em transmitir ideias inapropriadas ao público e em mostrar a falta de empatia pelos chineses, falhou toda a sociedade ao não mostrar uma atitude dura na defesa de um grupo vítima de discriminação. Estamos a falhar na empatia.

Quando começou a circulação da teoria de que a China era responsável por tudo e das críticas irresponsáveis contra os chineses, estas foram rapidamente aceites por muitas pessoas, sem perceberem o que se esconde atrás da propaganda, sem duvidar da autenticidade das notícias. Ninguém culpava um país pelos vírus do HIV, da gripe H1N1 ou do MERS-Cov, que causaram à humanidade danos incompensáveis. Ninguém tentou perceber que o vírus é politizado e utilizado como ferramenta de propaganda para atacar um país, uma etnia e cultura. Ninguém quis admitir que foram os profissionais de saúde chineses, os cidadãos chineses e o Governo a, perante uma nova doença e incertezas, tacteando nas trevas, lutar na linha da frente contra o vírus.

Quando as publicidades dizem “Somos folhas da mesma árvore”, “Ficamos ligados” e “Por si e por todos”, sinto-me isolada: parece que eu, o meu país e o meu povo somos excluídos da empatia e união mundial, que os nossos esforços no combate ao vírus não merecem a atenção e defesa contra os sentimentos xenófobos.

Nós, chineses, sentimos a indignação com as críticas infundadas, discriminações e desprezo por aquilo que o Governo e o povo fizeram. Sentimos a urgência da empatia pelo facto de sermos, como qualquer um que sofre com a pandemia, vítimas. Queremos que todo o mundo saiba que os chineses estão a sofrer incompreensões e discriminações, que os tratamentos injustos para connosco devem ser levados a sério.

Somos diferentes, mas partilhamos a mesma afectividade na luta contra o coronavírus. Ter feições chinesas, falar o idioma chinês e ser chinês nunca podem ser a razão para o ataque racista. Nenhuma doença precisa de um bode expiatório. Nenhuma acção tendenciosa se escusa. Perante as doenças, somos todos vítimas. Perante as discriminações, devemos ser missionários da empatia, verdade e imparcialidade.

Dias melhores estão a avizinhar-se? Para os grupos de risco da covid-19, sim. Mas para os grupos de risco no que diz respeito à discriminação e à xenofobia, esses dias ainda estão longe. Ficamos à espera da empatia popularizada.»

Zhan, Luoheng

O princípio do nada é um passo no caminho

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Jorge Araújo

Jorge Araújo

Editor da E

22 MAIO 2020

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Ansiedade é palavra que sufoca. Não precisa de lábios para se fazer ouvir, diz o que pensa com a força da mais poderosa emoção.

Nos últimos dois meses, vivemos em permanente estado de ansiedade. Sempre o coração na ponta da língua. A vida transformada numa migalha do que era.

Agora, que entramos na segunda fase de desconfinamento, começa-se a respirar um pouco melhor. E cada um aproveita a aparente acalmia para fazer o seu próprio balanço.

Ontem, no parlamento, o governo defendeu que o balanço do estado de emergência é positivo. O anúncio somou critícas da oposição.

Mas ainda vamos no princípio do caminho. No princípio do nada. Não há uma cura, não foi descoberta uma vacina. O vírus continua à solta e pouco ou nada sabemos sobre ele.

Agora que o calor convida a um certo relaxamento, não podemos baixar a guarda. Deitar tudo por água abaixo.

Até porque, de entre os países europeus, “Portugal é mesmo o país onde a subida do número médio de casos na última semana é maior”.

Na crónica do próximo sábado, na revista, José Tolentino Mendonça fala, entre outras coisas, deste futuro que nos escapa. E da importância da memória:

“ As memórias são, como se sabe, moedas para ser usadas no país do futuro”, escreve, com palavras vestidas de sabedoria.

Ainda não sabemos que futuro é esse, nem que país vai sobreviver à pandemia. Mas memórias deste tempos estranhos não nos faltam.

O destino é um lugar de onde nunca verdadeiramente se parte.

AINDA COVID-19. Não é um tiro no escuro, mas quase. Donald Trump vai pagar pouco mais de mil milhões de euros por 300 milhões de doses da AZD 1222. Acredita-se que pode vir a ser a tão desejada vacina contra o novo coronavírus e que poderá estar disponível já em Setembro.

Mas, atenção, a farmacêutica que a está a desenvolver - em parceria com a universidade de Oxford- é a primeira a reconhecer que não tem ainda provas da sua fiabilidade.

O Novo Banco na minha conta

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 22/05/2020)

Daniel Oliveira

Podem pôr as descobertas de buracos do Novo Banco, os descontos de 67% ao “rei dos frangos” e o aumento de 75% dos salários dos administradores na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer. Têm saído tão caras a uns e tão lucrativas a outros as certezas dos “responsáveis.


Graças a Miguel Prado (Expresso) e Cristina Ferreira (Público) ficámos a saber que a mesma administração passou a ver com olhos totalmente diferentes os créditos que tinha em mãos quando o Novo Banco passou para a Lone Star e o dinheiro do Estado apareceu como garantia. Podem pôr estas descobertas na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer, apesar de toda a gente dizer que isto se pode fazer e aqueloutro nos está interdito por causa do que está escrito num documento que é secreto.

Ficámos a saber que, em dezembro do ano passado, o Novo Banco vendeu a José António dos Santos, mais conhecido por “rei dos frangos”, uma carteira de crédito de €17,4 milhões, pagando ao banco €5,7 milhões. Nessa carteira estavam €6,1 milhões de crédito sobre a empresa Premierconsulting, que foram comprados pelo “rei dos frangos” por €1,95 milhões. Uns dias depois deste fenomenal desconto, o Novo Banco participou numa assembleia de credores dessa mesma empresa e aprovou a decisão de levar a leilão o seu património, incluindo a venda, por um mínimo de €3 milhões (mais do que recebera por toda a carteira de crédito), de uma quinta em Sintra. Podem pôr o desconto de 67% ao “rei dos frangos” na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer.

Ficámos a saber que os membros da Comissão Executiva do Novo Banco amentaram-se a si mesmos, desde que a Lone Star tomou conta da loja, em quase um milhão. Uma subida de 75% durante dois mandatos com resultados muitíssimo negativos. O presidente executivo, António Ramalho, e o presidente do conselho geral e de supervisão, Byron Haynes, tiveram direito a salários fixos que ultrapassaram o limite máximo definido pela Comissão Europeia, em 2017, quando o banco foi vendido à Lone Star. Podem pôr o aumento na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer.

Estou, como quase todos os portugueses, cansado de inevitabilidades que acabam em assaltos. Que me expliquem que nacionalizar um banco que, de qualquer das formas, vai ser pago pelos contribuintes é um risco imenso. Bom mesmo é doá-lo, oferecendo garantias intermináveis em forma de empréstimos que talvez alguma vez sejam pagos, daqui a 30 anos. António Costa explicou-nos porque é que não podemos fazer nada enquanto a Lone Star esmifra as garantias: “o Novo Banco não é público e o Estado não o gere, nem o supervisiona, nem audita as contas”. Só paga e cala. Não auditar, não controlar e não saber é o segredo de uma atitude responsável. Afinal de contas, se os olhos não veem, o coração não sente. Só pode correr bem.

Nada disto chega a ser um escândalo. Mário Centeno, o génio das finanças de Costa, sabia que Sérgio Monteiro, especialista em negócios ruinosos e símbolo do rigor austero de Passos, lhe estava a entregar um assalto à mão armada. E não estrebuchou. A Lone Star era a única compradora? Era. Não se vendia, parece-me óbvio. Houve quem o tivesse defendido. Lunáticos e irresponsáveis, gritou-se. Têm saído tão caras a uns e tão lucrativas a outros as certezas dos “responsáveis”.