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quinta-feira, 3 de dezembro de 2020

Rodrigues dos Santos vs Ljubomir: da vergonha alheia ao insulto à democracia

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 03/12/2020)

Daniel Oliveira

Antes de avançar neste texto, quero dizer três coisas: que compreendo a situação dramática que vive toda a restauração; que simpatizo com parte das suas reivindicações e considero outras impossíveis de responder pelo Estado; e que compreendo que o Governo decida não receber nove empresários, mas apenas organizações que representam o sector. Sei que está na moda a inorganicidade, excelente para todo o tipo de oportunidades e oportunismos, mas um governo não pode negociar com dez milhões de pessoas. É também por isso que a sociedade civil se organiza em associações e sindicatos. Abrir este precedente seria alimentar uma farsa.

Vários políticos, do Chega ao Bloco de Esquerda, têm aparecido nos protestos da restauração. Não acho que isso seja uma forma de aproveitamento político. Faz parte da relação que os partidos mantêm com a sociedade. Claro que é preciso saber fazê-lo. Um líder partidário com experiência política fá-lo com as devidas cautelas, tentando saber previamente como será recebida a sua presença. Para não insultar os que protestam com ela e para não ser insultado de volta. Sobretudo se leva com ele a comunicação social.

No último feriado, Francisco Rodrigues dos Santos foi visitar os empresários da restauração que estão em greve de fome em frente ao Parlamento. Para além de ter atribuído a Agustina Bessa-Luís um poema de Sophia de Mello Breyner – o risco do citador compulsivo que não é leitor compulsivo é o de tropeçar na fraude que alimenta –, o líder do CDS participou num dos momentos mais constrangedores em que alguma vez um líder partidário se viu envolvido.

De fato e gravata num feriado, com outros dirigentes do CDS e a comunicação social atrás, explicou que não estava ali como líder partidário, mas como cidadão. Uma mentira tão óbvia que só poderia correr mal. Depois, sentado com os empresários, criticou o “emplastro” (André Ventura) que se tentou colar à manifestação. A reação não foi boa: “estás a falar como um político”, disse o chef e empresário Ljubomir Stanisic, como se lançasse um insulto. Como há de falar um político? Francisco Rodrigues dos Santos não percebeu logo que aquilo só lhe podia correr mal. E continuou, como cidadão, a falar das propostas do CDS. Até que Ljubomir se dirigiu a ele nestes termos: “Se voltares a falar de um partido vou ter de te pedir para saíres. Não há partidos, querido. Estamos aqui humanamente. Acredita, por favor, respeita-nos como cidadãos. Votámos na Assembleia, é nossa. Já não conseguimos ouvir falar de partidos, é que ninguém está a apoiar-nos. Eu nem sei de que partido tu és.” A tudo isto, o líder do CDS assentiu, obedientemente, de cabeça baixa.

A primeira coisa a dizer sobre isto é óbvia: não é “emplastro” quem quer, é quem sabe. O líder do CDS achou que podia fingir que era um simples cidadão e participou numa cena humilhante. A segunda tem a ver com a primeira: um político nunca deve ter vergonha de ser político. Nunca vai a um acontecimento político como cidadão. Ser político, se o for com orgulho, não o diminui, engrandece-o. Assumir a menoridade da política é ceder.

Depois de ver o vídeo captado por um canal de televisão, fui matutando na vergonha alheia. E cresceu em mim, depois da pena, um sentimento profundo de ofensa. Pela forma como o líder de um dos partidos que fundou a democracia baixou os olhos perante alguém que o tratava condescendente por “querido” e ameaçava mandá-lo embora se ele voltasse a falar do partido que dirige. Como se liderar um partido fosse uma coisa suja. E, no entanto, ao contrário de Ljubomir, Francisco Rodrigues dos Santos foi escolhido por alguém para liderar alguma coisa.

Fui ouvir de novo aquelas frases absurdas Ljubomir Stanisic. Estava em frente a um Parlamento, onde a representação dos cidadãos se faz por via dos partidos, mas não queria ouvir falar de partidos. Quer que os políticos o ouçam, mas quer que não sejam políticos quando falam. Diz que ninguém faz nada por eles mas recusa-se a ouvir o que um líder de um partido acha que deve ser feito por eles. Quer ser reconhecido como representante de um protesto mas não quer saber que partido representa a pessoa que está à sua frente. Subitamente, e Deus saberá como isso é uma impossibilidade, senti-me no lugar daquele político trapalhão. Aquele empresário, que diz que fomos “nós” (e isto inclui-me a mim, por isso falava em meu nome) “votámos na Assembleia”, despreza de forma ostensiva aqueles que nós todos (e não apenas eles) elegemos. Mesmo não sendo deputado, Francisco Rodrigues dos Santos lidera um partido com deputados. Ljubomir pode nem querer saber quem é aquela pessoa. E, não primando pela boa educação e respeito pelos outros, pode tratá-lo como se fosse um badameco. Mas não pode fazê-lo em nosso nome, os que “votámos nesta Assembleia”. Isso eu não admito.

O problema destes movimentos inorgânicos não é valerem menos do que a ação organizada de trabalhadores, empresários ou qualquer outra coisa. É, sem qualquer forma de eleição, escrutínio ou representatividade, julgarem que valem mais. Nada disto reduz a minha solidariedade com os dramas que se vive na restauração e com algumas das suas exigências. Mas sempre que, no meio deles, aparece alguém que insulta a democracia, eu próprio me sinto insultado.

Quem quer ser ouvido, ouve. Quem quer ser respeitado, respeita. Mesmo quando tem pela frente um político que não se dá ao respeito e baixa a cabeça em vez de se levantar e sair. Políticos que acham que servem para ser sacos de pancada estão destinados a ser saco de pancada. Mas fazem mal à democracia.

Opinião – Bom senso e razoabilidade

Posted: 02 Dec 2020 03:44 AM PST

«Nunca se ultrapassar o limite do bom senso e do que é razoável”. Assim fixou António Costa a orientação para o Orçamento de Estado para 2021. Acho sinceramente que tinha toda a razão. Falemos então de bom senso e razoabilidade.

É de bom senso – não só agora, no cenário de sobre-pressão sobre o SNS, mas também depois, quando tivermos que recuperar a imensa atividade assistencial adiada – forçar um hospital a esperar meses pela contratação centralizada de uma médica ou de um enfermeiro? É razoável manter como resposta à evidente necessidade de robustecimento do SNS uma rotina de falta de ambição que se traduz em menos 1029 médicos agora que em janeiro? Não é razoável que se atribua aos hospitais autonomia para fazerem as contratações, não apenas as de emergência mas as que se revelarem necessárias para a garantia do direito à saúde de todos? É razoável contratar serviços a privados e não contratar os profissionais de saúde que fazem falta ao SNS?

É de bom senso, numa altura em que o desemprego está a crescer em flecha, admitir que empresas que têm lucros e que beneficiam de apoios públicos, possam despedir?

É de bom senso que, sabendo que cerca de metade dos desempregados não beneficiam de qualquer prestação de desemprego e que só 2% acedem ao subsídio social de desemprego, se mantenham as restrições nestes dois apoios que a austeridade e a troika impuseram? É de bom senso mantermos prestações de desemprego abaixo do limiar de pobreza? É de bom senso, nestes dias de despedimentos em massa que atiram tantos milhares de homens e mulheres para o vazio, manter as compensações por despedimento nos 12 dias por cada ano de trabalho impostos pelo governo das direitas, quando a própria Troika tinha fixado 20 dias, reduzindo os 30 que vigoravam até então? Não era razoável a crítica acérrima que o PS então fez a esta medida do governo PSD-CDS?

É razoável admitir uma nova transferência de 470 milhões de euros para o Fundo de Resolução injetar no Novo Banco sem primeiro haver uma auditoria que permita avaliar a gestão do banco? É de bom senso tomar como intocável o cumprimento do ruinoso contrato de venda se a gestão pela Lone Star se confirmar ruinosa?

É razoável e de bom senso o minimalismo do “atuar na margem”, com medidas pontuais e transitórias, voltando já a pôr no centro da política orçamental a redução do défice e, portanto, a contração do investimento público, como defendeu o Governador do Banco de Portugal na sua admonitória intervenção de doutrinamento do Governo?

Razoabilidade e bom senso, para o tempo que estamos a viver, só podem significar máxima determinação na rutura com o budget as usual. Agir na margem e manter a redução do défice como mandamento, mesmo quando os ortodoxos de Bruxelas o dispensam, é estado de negação. Ou preconceito ideológico. Ou as duas coisas.»

José Manuel Pureza

Como é que chegámos aqui? Ficando e calando

por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 26/11/2020)

Como é que chegámos aqui? Aqui onde a direita partidária se foi prostrar aos pés de um partido com um solitário deputado, deputado esse que defende em público a violação de direitos humanos e o aprisionamento de democratas. Aqui onde um caluniador profissional sem leituras nem pensamento é tratado como a intelligentsia da actual direita, o ponta-de-lança da normalização mediática do tal deputado abjecto e seu partido aberrante.

André Ventura e João Miguel Tavares partilham a mesma visão sobre o regime: está podre, corroído pela corrupção. Ambos repetem que toda a classe política, da Assembleia da República à Presidência da República, passando igualmente pelos Governos sucessivos, é cúmplice na criação e aprovação de leis cuja finalidade suprema não é o interesse nacional, tão-somente a impunidade para se continuar a roubar sem ser possível aos raros polícias, procuradores e juízes que resistem imaculados apanharem a bandidagem e dar-lhe a sova que merece.

Ambos são igualmente sósias na esperança messiânica de que Passos regresse para resgatar a Grei das mãos dos socialistas diabólicos e inaugurar um novo regime que irá durar mil anos sem casos de corrupção, pois finalmente a Justiça vai obrigar os criminosos socialistas a provarem a sua inocência caso pretendam sair dos calabouços (pista: não vai ser nada fácil dado que o mal está-lhes entranhado na pele e consegue ver-se nos olhos a brilharem de maldade quando os corruptos ficam às escuras).

Inacreditavelmente, o presidente da comissão das comemorações do 10 de Junho de 2019, vedeta incensada pelo director de um “jornal de referência” que o cita sem parar, nunca é interrogado sobre as fontes do seu conhecimento acerca dos males que nos afligem. Rui Tavares, em A imaculada conceção do fascismo inconcebível, ensaia ao de leve esse exercício, mesmo assim já marcando uma radical diferença face à classe jornalística e comentarista circundante. Nem Tavares nem Ventura precisam de qualquer dado, número, facto para despacharem caudalosas lengalengas sobre o Apocalipse que precede a entrada no Paraíso (se o tal Passos coiso e tal, bem entendido). Basta-lhes a indústria da calúnia dominada pela direita e sua imparável produção sensacionalista, método que deu a ambos o prémio de terem visto um primeiro-ministro, um Presidente da República e um líder da oposição a irem ter com eles com o rabo a abanar.

Considerar João Miguel Tavares um liberal, ele que faz claque pelos que cometem crimes na Justiça e que treme de êxtase com a ideia de se reduzirem os direitos individuais face ao Estado (mas só para se apanhar e castigar os seus alvos, depois pode-se voltar logo ao Estado de direito democrático, claro), é não apenas estúpido perante o que vende em público, é lunático.

Considerar André Ventura de direita, ele que poderia ocupar qualquer quadrante ideológico do populismo exactamente com os mesmos objectivos imorais, inumanos e subversivos, é não apenas lunático perante o seu oportunismo rapace, faz de nós estúpidos.

Nós não chegámos aqui. Este aqui tem estado connosco desde 2004. Chama-se decadência da direita e, por terem declarado guerra à decência com meios de condicionamento da opinião pública nunca antes usados em democracia, conseguiram arrastar a esquerda para uma forma de cumplicidade que explica o actual triunfo dos pulhas e suas pulhices. Se ficamos banzos com o festival de irracionalidade criminosa que Trump está a dar ao mundo, não ficarmos atónitos com a facilidade com que André Ventura e João Miguel Tavares nos tratam como borregos é em si mesmo um crime de lesa inteligência e contra o respeito próprio.

Salvar as presidenciais

Posted: 01 Dec 2020 03:00 AM PST

«Tudo indica que, a 24 de janeiro, aquando da primeira volta das presidenciais, o contexto sanitário não será muito diferente do atual. Mesmo que já libertos do estado de emergência, continuará a haver restrições de movimentos e de aglomerações, em particular ao fim de semana. Para muitos portugueses, o confinamento será mesmo uma obrigação, por estarem infetados ou por fazerem parte dos grupos de risco, como acontece com os 100 mil idosos que vivem em lares. Obviamente, a pandemia não pode suspender direitos e deveres políticos e não há nenhum motivo para adiar as presidenciais. Em todo o caso, estas eleições não podem ser marcadas em registo burocrático, fingindo que não é preciso fazer nada para tornar possível o voto.

A questão é fundamental. Uma das obrigações do Estado é garantir e promover a participação política. É possível antecipar que teremos uma campanha desafiante para todos os candidatos, sem momentos de massas, com poucos eventos e que, por isso, contribuirá marginalmente para a mobilização eleitoral. Há um risco de termos um surto de abstenção, o que diminui objetivamente a legitimidade dos eleitos. Mas, além disso, emerge também um problema com o voto, que merece reflexão, debate e propostas em tempo útil.

Tal como no estado de emergência têm de ser garantidos direitos políticos aos partidos, os cidadãos não podem ser privados do direito ao voto. Agora que faltam curtos 60 dias para as eleições, está o Parlamento a trabalhar em alternativas para alargar os mecanismos de participação? A CNE tem alguma ideia de como incentivar os portugueses a votar? O Ministério da Administração Interna está a trabalhar em soluções complementares ou vamos ter um ato eleitoral igual aos do passado? O Presidente da República promoveu alguma reflexão sobre o tema?

Não somos o primeiro país a organizar eleições em tempo de covid, pelo que talvez valha a pena olhar para o que se passou noutras democracias. E a questão não pode ser apenas assegurar condições sanitárias (o que implicará transformações nas mesas de voto). Nestes meses, já ocorreram experiências interessantes que vão do alargamento do voto antecipado e por correspondência, passando por voto através de drive-through (de modo a diminuir contactos), até à criação de urnas móveis, levadas ao local onde se encontram, por exemplo, idosos confinados.

Independentemente das soluções a adotar, não se pode alterar procedimentos destes sem um debate público alargado e sem o envolvimento dos vários interessados, sob pena de assistirmos entre nós à repetição de processos eleitorais marcados por incidentes. Se não houver discussão e transparência agora, as presidenciais correrão riscos.»

Pedro Adão Silva

A alegria de Rui Rio

por estatuadesal

(In Blog O Jumento, 27/11/2020)

Rui Rio dá ares de quem ganhou um brinquedo novo, parece uma criança a quem ofereceram a primeira bicicleta, finalmente sente-se feliz porque consegue dar ares de líder do PSD. Não lhe importa que tenha conseguido dar ares de líder porque a Catarina Martins lhe emprestou a prancha de bodyboard (surf é demais para as suas capacidades) enquanto do outro lado o André Ventura o segurava para aparecer minimamente equilibrado para a fotografia.

Não lhe importou que tenha sido uma figura secundária no debate do Novo Banco, não se incomodou de a sua cambalhota ter sido sincronizada com a do Ventura, o que o levou a pensar que afinal o espelho estava enganado, foi o momento de glória proporcionado pelo Novo Banco. O outro andava de chanatas enquanto pôs fim ao BES, este anda de botas cardadas quando dá o pontapé no Novo Banco.

Mas o mais curioso é ver um ecrã cheio de gente engalfinhada para aparecer ao lado do líder. É a abordagem pacóvia muito típica, uns querem dizer na terra que são importantes porque têm direito a estar atrás do líder, outros aproveitam a foto para meter no Facebook do PSD da sua aldeia. À frente deles um líder excitado berra e como acha que o seu sorriso é lindo não usa máscara, porque deve achar que os portugueses preferem ler nos lábios.

Este é o senhor que revelou não ter classe nenhuma ao abordar a questão do congresso do PCP. Mas no mesmo telejornal vejo imagens do congresso do PCP, um controlo rigoroso nas entradas, distanciamento social, micros desinfetados após todas as intervenções, todas as cadeiras desinfetadas no intervalo para o jantar.

Pessoalmente achei que a realização da Festa do Avante revelou alguma falta de bom senso e que o congresso tem muita teimosia ideológica. Mas recuso condenar a realização do congresso, como não condenei outro congresso e manifestações em tempos de pandemia e organizados sem um mínimo de seriedade. O PCP tem direito a fazer o uso dos seus direitos constitucionais e questioná-los, ainda que com os truques pacóvios do Rui Rio, só merece uma condenação.

Mas depois de ver este Rui Rio acompanhado de um rebanho de gente em menos de dois metros quadrados acho que este palerma deveria pensar um pouco antes de abrir a boca.

Quebrar o círculo

Posted: 30 Nov 2020 03:36 AM PST

«Muito se tem falado da dimensão dos apoios do Estado na resposta à crise e de que a elevada dívida pública é um garrote para uma intervenção massiva.

Na realidade, o endividamento é enorme e não pode ser ignorado, mas a retórica de que somos um país pobre e endividado e, como tal, não podemos ter manias de país rico e devemos gastar poucochinho para reagir à intempérie, não ajuda a resolver nem a pobreza nem o endividamento: como somos pobres não podemos pagar a dívida, como temos dívida não podemos intervir massivamente e logo crescemos pouco, e como não crescemos a dívida não diminui. Ou seja, sermos pobres e endividados obriga-nos a continuarmos pobres e endividados.

Este discurso fatalista tem que mudar e temos de quebrar o círculo vicioso da pobreza. Este Governo mostrou que, mesmo devolvendo rendimentos, se consegue diminuir a dívida de forma sistemática: entre 2018/19 apenas quatro países da União Europeia a reduziram, em pontos percentuais, mais do que nós. Temos, neste momento, uma Europa cooperante e acesso a fluxos financeiros como não tínhamos há mais de duas décadas, temos juros historicamente baixos e uma reputação internacional restaurada, ou seja, estão reunidas as condições para rompermos com a sina de cauda da Europa e tentarmos dar um salto em frente.

Ora, a dívida é relevante como percentagem do PIB (é um rácio) e podemos ser um pouco mais relaxados com o numerador se criarmos condições para o denominador crescer. Mesmo assim é perigoso, previnem-nos: os juros têm que subir um dia e o serviço da dívida ficará difícil de suportar. Sim, eventualmente, mas não sabemos quando. E não devemos deixar de aproveitar o capital disponível e barato, por medo de que um amanhã (cinco, 10 anos) obviamente incerto, nos traga juros elevados. Mais, se tivermos quebrado o círculo, quando tal acontecer estaremos mais bem equipados para fazer face a conjunturas adversas, porque teremos uma economia mais dinâmica, competitiva e resiliente.

É o momento de tentarmos inverter o processo, garantindo o acesso generalizado a boa educação pública e a um serviço nacional de saúde de qualidade, levando a cabo uma transição digital inclusiva e, finalmente, procurando ultrapassar algumas questões estruturais da economia portuguesa: diminuindo fragilidades do mercado de trabalho, pagando salários mais próximos dos da Europa, nomeadamente um salário mínimo digno (com empresas capazes de o suportar), renovando o tecido empresarial, diversificando a base produtiva, apostando em setores e projetos competitivos e rentáveis (e consequentemente que se paguem a si próprios).

Isto exige investimento público, bem dirigido e focado, eficaz e eficiente e, sobretudo, catalisador do investimento privado. Exige, evidentemente, muito Estado. Um Estado que apoie as pessoas, ajude a requalificar e redirecionar competências e garanta a todos um mínimo de condições de vida digna e de bem-estar. Isto requer dinheiro e, consequentemente, mais dívida.

Mas é como pedir emprestado para mudarmos as janelas da casa: no futuro, a fatura da eletricidade será bem menor.

Se aproveitarmos esta oportunidade para darmos um salto grande, a fatura para as próximas gerações, será com certeza muito mais fácil de pagar.»

Francisca Guedes de Oliveira

Vacinas: uma frase de que Costa se vai arrepender

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 30/11/2020)

Daniel Oliveira

Não me interessa, por agora, saber se a proposta de trabalho para ser apreciada pela DGS, que punha a possibilidade de deixar quem tinha mais de 75 anos no fim dos grupos prioritários, estará certa ou errada. Preocupa-me que, num assunto tão sensível, haja técnicos que deixam transpirar para fora um debate em fase inicial, quando se discutem documentos provisórios e inacabados num cenário em mudança e que ainda é de incerteza. E preocupa-me que a comunicação social seja leviana na forma como os apresenta. Assim, será difícil trabalhar. Contribuem para o caos e para a politização de um debate que deve ser ponderado. E preocupa-me a rápida indignação geral que tal informação provocou.

Não sendo técnico, não sei se é válida a hipótese destas vacinas não serem eficazes ou seguras para pessoas mais velhas. Nem eu, nem 99,9% das pessoas que decidiram indignar-se com esta possibilidade. Se se viesse a confirmar, a proposta, por mais contraintuitiva que seja, estaria certa. E esse é um problema com que a política tem de se confrontar: as escolhas tecnicamente acertadas podem ser politicamente difíceis.

Todo o processo de vacinação vai ser difícil para o poder político. O Governo devia, aliás, evitar promessas temerárias de que o risco de não estarmos preparados é igual a zero. Sobretudo depois do que aconteceu com a vacina da gripe. Mas, mais do que isso, deve medir bem a situação em que coloca os técnicos.

Confrontado com a indignação militante que se instalou por causa de notícias sobre um documento provisório, António Costa teve a pior reação possível. Escreveu no Twitter (a banalização formal do discurso de Estado é transversal a todos os campos políticos) o que nunca deveria ter escrito: "Há critérios técnicos que nunca poderão ser aceites pelos responsáveis políticos." A frase não está genericamente errada (no fim, será sempre a política a decidir), mas é a pior possível para começar um processo difícil, em que a pressão pública será tremenda. Desautoriza os técnicos. Quando tiver de explicar uma escolha politicamente difícil mas acertada do ponto de vista técnico, vão-lhe perguntar: mas esse critério é daqueles que os responsáveis políticos podem aceitar ou têm de recusar? Isto é um convite à pressão política. A frase apela à gritaria. Compreendo que acusação de querer "matar os velhinhos”, que rapidamente se espalhou pelas redes sociais, seja intolerável. Mas Costa vai arrepender-se de a ter escrito. Dificultou uma tarefa que já será penosa.

Os critérios dos técnicos não atendem apenas à necessidade de socorrer os grupos mais vulneráveis, apesar desse ser o mais evidente para toda a gente. O primeiro de todos será o de proteger aqueles que podem salvar vidas e, depois, o de travar a pandemia. No meio, tem de se ter em conta a segurança e eficácia da vacina em cada grupo – é o que teoricamente pode estar em causa, até mais informação das farmacêuticas, com as pessoas com mais de 75 anos. Nada disto pode ser avaliado por um político. Se o critério for político, vai receber a vacina quem mais se fizer ouvir.

Vamos assistir a uma grande pressão de vários sectores profissionais. Quase todos dirão que estão na “linha da frente”. Haverá discursos emotivos e demagógicos, como o do próprio primeiro-ministro: “Não é admissível desistir de proteger a vida em função da idade. As vidas não têm prazo de validade.” Se o documento provisório colocasse a hipótese de não vacinar logo aqueles que têm mais de 75 anos por uma questão de esperança de vida, compreendia-se esta afirmação. Se a dúvida por esclarecer é a eficácia da vacina nesta população, a frase é absurda.

Quando outros países tiverem mais pessoas vacinadas do que Portugal, a pressão será tremenda. E quando um grupo já estiver vacinado e noutro se continuar à espera, pior ainda. Não é habitual eu defender que os políticos devem deixar decisões a técnicos. Mas este é um caso evidente: decisões técnicas difíceis devem ser tomadas por quem está menos exposto à pressão. Para isso, é fundamental que a população aceite a autoridade dos técnicos. Não se pode dizer que o primeiro-ministro tenha contribuído para isso.