por estatuadesal |
(João Garcia, in Expresso Diário, 12/04/2021)
(Recado para António Costa. Já é tempo de meteres na gaveta o teu repetido chavão, "À Justiça o que é da Justiça, à política o que é da política".
À Justiça cumpre aplicar as leis que da política emanam. Se as leis são más ou insuficientes como pode haver boa Justiça?
Comentário da Estátua, 12/04/2021)
A tenda está montada. O circo vai ser cada vez maior. Agora vão atuar os juízes desembargadores, quando se pronunciarem sobre os recursos que as decisões de Ivo Rosa suscitam. Outros se seguirão. Já se buzinou no Marquês, há apelos a mais manifestações ruidosas e a boicotes a programas com entrevistas.
O magistrado atuou em direto para as televisões. E todos nos transformámos em especialistas. Quando uma equipa de cirurgiões deixar entrar as câmaras na sala de operações, com transmissão em direto, todos ficaremos especialistas em cortes e incisões e capazes de discutir qual o bisturi a utilizar.
A Justiça veio para a rua, e há quem pense que assim deve ser feita. A decisão foi lida durante horas, sem intermediação, e o debate seguiu-se. As tecnicidades tornaram-se matéria de opinião e todo o edifício da Justiça ficou nas mãos de um único ator. O resultado está à vista.
Já não estão em causa as apreciações pessoais sobre a conduta e ética dos visados. Agora julga-se a Justiça. Se o julgamento político não pode esperar pelos tribunais – não é preciso uma sentença transitada em julgado para se ter opinião sobre se José Sócrates é ou não pessoa estimável –, já o recato da Justiça democrática não pode ser posto de lado e dar motivo a chacota. É ver o que por aí anda nas redes sociais para se perceber a que ponto descemos.
Há muito que se diz que a pachorrenta Justiça não se apercebeu de que os tempos mudaram. Aquela coisa de togas e becas – e nalguns países de cabeleiras – já não cabe neste século. Os símbolos perderam valor, para mais quando não se dão ao respeito. A desculpa do tempo de reflexão e distanciamento não cabe neste século. A impunidade das decisões e a força das corporações mostraram não ser um fator de segurança da Justiça; pelo contrário, estão a arrasá-la – um verbo cada vez mais utilizado a propósito dos tribunais. Há dois títulos possíveis: “Relação arrasa Ivo Rosa” ou “Relação arrasa Rosário Teixeira” . Um dos dois sairá, se a Comunicação Social – e quem a consome – não perceber que justiça espetáculo é um mau espetáculo.
A pomposidade do cenário e a respeitabilidade dos intervenientes não se sobrepõem à credibilidade e dignidade da atuação. Neste milénio não é assim. Todos sabemos tudo sobre tudo.
O poder político tem medo de mexer fundo. A Assembleia da República não toma a iniciativa. O essencial permanece e as relações entre os chamados “agentes processuais” mantêm-se. As confusões legais multiplicam-se. A legislação sobre prescrições já foi revista cinco vezes nos últimos anos e a confusão continua. Pergunte-se a alguém da Justiça “como é isto das prescrições” e receber-se-á como resposta um “não se meta nisso”. Mas não se pode tornar mais claro? “Se mexem é pior.”
A verdade é que por muito errada que esteja a acusação ou por má que tenha sido a decisão de instrução, ninguém será despedido. Que outros profissionais podem ter tão díspares decisões sem que nada lhes aconteça? E neste caso, há erros técnicos e de base. Ou a acusação é fantasiosa, ou quem sobre ela leu e recusou dar-lhe andamento desconhece o que deve fazer. Não se descobre onde possa estar o meio termo.
E que pensar de o juiz querer que a Procuradoria-Geral da República investigue um procedimento que o Conselho Superior da Magistratura já deu como válido (o sorteio do juiz do processo)? Se tiver razão, lá se vai mais um bastião. Fica o quê?
Desde 2001, quando Maria José Morgado promoveu a condenação em “fatias” a Vale e Azevedo – e ele foi sendo sucessivamente julgado, primeiro pela venda do guarda-redes, mais tarde pela do avançado –, que se percebeu que os megaprocessos não funcionam. Mas insiste-se, 20 anos depois. E de quem é a culpa?
Era fácil adivinhar que a decisão de Ivo Rosa, qualquer que ela fosse, iria ser o tema central de discussões que vão perpetuar-se. O que já de si diz muito da pouca confiança que a Justiça suscita. Agora que a contestação passasse para as ruas e petições, isso era difícil de acreditar e é sinal que o caminho tem de ser rapidamente invertido.
Nenhuma democracia sobrevive sem Estado de Direito, e este está em muito mau estado. Pode o poder legislativo e político continuar a meter a cabeça na areia, mas quando a tirar arrisca-se a que seja tarde. O que temos é um problema político sobre o funcionamento da Justiça, não é apenas um problema de Justiça. É um problema político, e central para a Democracia.
O espetáculo vai aquecer. Vem aí um grande número. Sócrates já prometeu um livro para muito breve. “Só agora começou”, diz ele, com todo o direito e mesmo dever de se defender. A questão é o que resultará da leitura e de como se comportarão os vários intervenientes.
Destruir a credibilidade, seja do que for, é muito mais fácil do que recuperá-la. Salve-se o pouco que resta. Só agora começou e vai acabar mal.
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