Explique-me lá este terrorismo de Estado, se não for incómodo
Posted: 24 May 2021 03:47 AM PDT
«O título do PÚBLICO, na sua secura jornalística, dizia tudo: “Jornalista bielorrusso detido após desvio de avião para Minsk, Europa pede explicações.”
Explicações para quê? Um avião de uma companhia com sede na União Europeia, a Ryanair, parte de uma capital da UE, Atenas, para aterrar noutra capital da UE, Vilnius, na Lituânia. A bordo vai Roman Protasevich, um jovem de 26 anos que fundou um canal de notícias dedicado a apoiar o movimento pró-democracia no seu país, a Bielorrússia — cujo espaço aéreo o avião da Ryanair estava a sobrevoar quando foi intercetado por um caça das Forças Aéreas da Bielorrússia e forçado a aterrar em Minsk, capital da Bielorrússia, sob o pretexto de um falso alarme de bomba. A operação tem todas as marcas da polícia política da Bielorrússia, que ainda tem as iniciais KGB, e com toda a probabilidade terá sido ordenada diretamente pelo ditador Alexander Lukashenko. À hora a que escrevo esta crónica, a informação é a de que o avião aterrou finalmente em Vilnius — mas sem Roman Protasevich a bordo. O jovem ativista irá provavelmente ser sujeito a tortura, como foram milhares de outros bielorrussos nos últimos meses, e depois será “julgado” pelos “crimes” de terrorismo e traição, que podem levar à pena de morte, se sobreviver à detenção.
Temos, portanto, um ato de terrorismo e pirataria de Estado, com o sequestro de um cidadão que confiou na segurança dos transportes sob jurisdição da UE. Não há aqui nada que precise de ser explicado. O que há é um ato de uma ilegalidade clara que precisa de ser revertido, sob pena de sanções imediatas. Esta é a escala de instrumentos diplomáticos, legais e políticos a serem usados gradualmente até uma situação destas estar resolvida: chamada de todos os embaixadores da UE às suas capitais; alargamento da lista de sanções económicas a Lukashenko e aos seus aliados, que ainda não voltaram a ter as suas contas bancárias congeladas; início de procedimentos criminais contra Lukashenko, os seus aliados e os agentes da KGB em tribunais europeus; emissão de mandados de captura internacionais; bloqueio do sistema de transferências interbancárias SWIFT, que está sob jurisdição da UE, e que deixaria o governo bielorrusso fora das redes financeiras internacionais; e por aí adiante, até à retirada do reconhecimento formal de Lukashenko como presidente da Bielorrússia. Tudo isso poderia ser decidido já hoje, na reunião do Conselho Europeu que terá início em Bruxelas.
Mas Lukashenko pode dormir descansado. Da reunião do Conselho Europeu pode até nem sair um comunicado conjunto, mesmo quando Roman Protasevich pode estar já a ser torturado ou ter a sua vida em perigo iminente. Tal como na semana passada não saiu um comunicado conjunto da reunião de ministros de Negócios Estrangeiros da UE, quando dezenas de palestinianos morriam sob os bombardeamentos do Exército israelita. E pela mesma razão: porque as reuniões do Conselho têm infiltrado um cavalo de Tróia que é mais aliado de Putin, Lukashenko e qualquer ditador do que da própria UE de que faz parte. Foi Viktor Orbán da Hungria que vetou o comunicado da semana passada; é Viktor Orbán da Hungria que, se não puder vetar, diluirá em muito a reação da UE ao que se passou ontem com o voo Atenas-Vilnius; é Viktor Orbán da Hungria que está agora a ameaçar vetar até a renovação do acordo internacional da UE com mais de oitenta países da África, Caraíbas e Pacífico, sem qualquer interesse nacional evidente que não seja bloquear a Europa para beneficiar a China. Os outros governos no Conselho mimaram Orbán durante anos, fecharam os olhos à sua deriva autoritária e à sua ostensiva corrupção, e agora não se podem queixar. Não foi por falta de terem sido avisados.
Assim, sem a necessária unanimidade para tomar decisões de política externa com impacto real em casos destes, a diplomacia da União Europeia fica reduzida a tweets e posts censurando os acontecimentos. É uma diplomacia de redes sociais, e nem nisso é competente: ainda ontem a comissária europeia com a pasta dos Transportes, a romena Adina Valean, publicou um tweet regozijando-se pela “grande notícia para toda a gente” que era o avião ter levantado de novo voo para Vilnius — sem sequer se lembrar que para Roman Protasevich e as outras cinco pessoas, aparentemente incluindo a sua namorada, sequestradas em Minsk as notícias podem ser consideradas tudo menos boas.
O problema é que os ditadores não ligam a diplomacia de tweets — e até falam com Orbán diretamente. Sabem que a UE está bloqueada, e agem em conformidade. E se, por uma vez, o Conselho Europeu agisse também — dando seguimento ao artigo 7.º contra o governo húngaro pelas suas violações do Estado de direito democrático? Aí está a mensagem mais forte que poderia ser ouvida não só em Budapeste, mas em Minsk e Moscovo também. Nem seriam precisas explicações.»
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