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terça-feira, 25 de maio de 2021

 

Coimbra

por estatuadesal

(Amadeu Homem, 22/05/2021)

Há mais de cento e cinquenta anos os estudantes que frequentavam a Universidade de Coimbra consideravam-se bafejados pela sorte, pois julgavam habitar um dos mais perfeitos lugares da terra. É certo que esta lenda dourada foi laboriosamente preparada para glória de uma geração: a famosa e sempre recordada “Geração de 70”.

Chegaram à cidade do Mondego, em chusma, Antero de Quental, Teófilo Braga, Manuel de Arriaga, João Penha, Eça de Queirós, Guerra Junqueiro, Alberto Sampaio, Vieira de Castro e muitos outros breves talentos, que a memória dos homens guardou menos bem. De Antero, celebraram-se então os olhos muito azuis, sob uma testa curta e logo interrompida por uma cabeleira revolta, crespa e insolitamente acobreada; e bem assim o porte donairoso, de efebo cismático; e também a índole provocatória, a baforar filosofemas, quando, escarranchado na janela do quarto, interpelava, qual Oráculo novo, algum académico transeunte, pasmado e incréu, falando-lhe em Manu, e no caudal da eterna Substância, e nos poemas dos Vedas, e em mais mil coisas de um saber iniciático, perfumadamente envolto nas leituras de Hegel, Vico, Schlegel e Michelet.

De Teófilo ficou famosa a labuta incansável de formiga erudita; e também o pendor para um aforro judaico, só desculpável devido à magreza das choradas libras que o pai lhe enviava de Ponta Delgada; e a orgulhosa luta por um lugar ao sol na praça dos literatos, conquistado através do rombo de insultos tonitruantes de que foi alvo o velho António Feliciano de Castilho, patriarca de versos em desuso e alcoviteiro de reputações duvidosas.

De Manuel de Arriaga foram referidos os arroubos místico-naturalistas, como se nele pudesse ecoar e fazer-se Verbo a visão purificada de um acabado e incorrupto Homem Novo, sem mácula, de uma excelência cristalina e perene.

E João Penha? As velhas tascas da Alta e da Baixa de Coimbra guardaram-lhe os versos e a verve, no entrançado de uma indiscernível amálgama. Conhecem a troça de Coimbra, tal como foi praticada por gerações sucessivas de estudantes e futricas? Eu conto. Imaginemos um fio de conversa que flui entre dois tagarelas com a naturalidade das alusões e dos desabafos ocasionais; conversa aparentemente sisuda, bem comportada, quase reverencial; de súbito, uma das partes, sem aviso prévio, inflecte para uma observação brejeira, para um dito de inesperada comicidade, para uma lateralização verbal de desfrute, mantendo, contudo, a mesma compostura de maneiras e o mesmo tom sério de voz. A troça coimbrã é (era?) isto. E não estamos a perder de vista o boémio João Penha, a espadanar versos por cada botequim, a reverberar espírito em cada magote de comparsas, a comprovar talento nas linhas dos sonetos. Muitos dos sonetos de Penha eram a deslocação da troça para o âmago da Arte, ou seja, era a troça coimbrã posta em versos. A composição explanava-se com a ática sonoridade do paradigma clássico, num crescendo de perfeição e de maravilhamento. Subitamente, no remate do último terceto, eis que se misturam as perfeições da amada com os olores boémios… dos paios de Chaves, dos carrascões acidulados ou das alheiras de Mirandela!

Com Penha coabitou um rapaz desengonçado e muito lido em autores franceses, ave nocturna, escanzelada e discreta, que a vizinhança da Couraça de Lisboa murmurava ter talento dramático, a avaliar pelo desempenho de “pai nobre”, na representação que o Teatro Académico encenara, sobre a peça alusiva ao poeta Garção, escrevinhada por Teófilo Braga. Era um moço que admirava o ascendente de Penha no bordado da palavra poética, na inesgotável demanda de vinhos de estalo e até no adorno aristocrático de um monóculo inquiridor. Esse rapaz, que mais tarde se haveria também de converter à distinção do monóculo, chamava-se José Maria Eça de Queirós. Havia quem o tivesse visto à roda de um prato de arroz doce no Paço do Conde, ou medindo-se com uma terrina de sável e sardinha frita, na Tasca das Camelas. Era apenas mais um, entre cerca de dois milhares de estudantes, e pouca gente daria pelo seu futuro vinte réis de aposta.

Bom gastrónomo teria sido também um tal Abílio Guerra Junqueiro. Descera da região transmontana, para subir, em Coimbra, a “colina sagrada”, solenemente coroada pelo Paço das Escolas. Olhos muito vivos, opiniões políticas radicais, já então denunciadoras de alguma férula anticlerical, apreciador de moçoilas escarquejadas, fossem tricanas ou filhas de doutores de capelo, Junqueiro cobiçou o primado artístico de Penha e emulou-se com a sua hegemonia na sociedade académica do tempo. Um dia, acabaram por se encontrar num botequim. Mediram-se e desafiaram-se, não a soco e empurrão, mas a estrofe, a terceto, a quadra. Coimbra era capoeira demasiado pequena para estes dois galos da palavra primorosa. Findo o recontro, escorrendo ambos por todos os poros, a baba dos motejos implacáveis, deram-se às boas, concluíram pelo empate e apertaram-se as mãos.

Coimbra era assim. Ao grupo de Antero de Quental pertenceram também José Sampaio e Alberto Sampaio. Os Sampaio convenceram Antero da necessidade de se formar uma sociedade secreta, no seio da estudantada, para derrubar a alegada tirania reitoral de Basílio Pinto, que lhes rateava a intenção de modernizar o traje académico e os proibia de esfumaçar no Pátio e nos Gerais. Foi assim que se organizou a “Sociedade do Raio”. Esta, num memorável 8 de Dezembro de 1862, conseguiu evacuar a Sala dos Capelos, no interior da qual a sua presença era largamente maioritária, por ocasião de uma festividade académica, deixando o miserando reitor Pinto a falar somente para a galeria dos reis lusitanos, pendentes e pindéricos das paredes, em forma de retratos pintados.

Já neste tempo a Coimbra académica se dividia em sensibilidades e parcialidades políticas. Se Antero de Quental, e os Sampaio, e Germano Meireles, e tantos mais, eram vanguardistas, sacrificando exortações e prédicas a um amanhã diferente, sofrendo pela escravização da Polónia às mãos da Rússia e contestando a desenfreada exploração da Irlanda pela Inglaterra, alguns outros tomavam voz pela conservação social. O chefe de fila dos estudantes conservadores era Vieira de Castro, um sibarita de impecável presença, palavra fácil e ambição ilimitada. Era presença habitual nos lupanares conimbricenses e um dia fez chorar uma infeliz meretriz, dado o excesso e o abuso dos seus gestos e palavras. Antero de Quental não lhe haveria de perdoar a crueldade, publicando na imprensa a peça poética “Ermelinda”, onde Vieira de Castro sofreu tratos de polé. Talvez por isso, o grupo conservador que lhe era afeiçoado passou a tratar os amigos de Antero sob o epíteto de “os do Raio”, obrigando estes a designarem-nos por “os da Sopa” ou “os Sopas”, por se calcular que todos eles iriam acabar por comer na tigela do orçamento governamental, quando, um dia, fossem chamados aos rendosos lugares de deputados ou de ministros.

Às vezes, movo-me por esta amada Coimbra como se fosse um fantasma à procura de outros fantasmas que por ela passaram. E nunca fui frustrado no desejo de colher em memórias pretéritas, nem que fosse por um brevíssimo instante, o fulgor da mocidade perdida, que também um dia rutilou em mim.

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