A fortuna bumerangue de MacKenzie Scottpor estatuadesal |
(Ricardo Lourenço, in Expresso, 21/05/2021)
(Esta história dá que pensar. Enquanto milhões de seres humanos sonham sair da miséria, outros por muito que doem da sua fortuna, não conseguem deixar de ficar ainda mais ricos. É estranho mas é, na verdade, o sistema económico que temos, é o capitalismo a funcionar em todo o seu esplendor e em todo o seu absurdo.
Estátua de Sal, 24/05/2021)
A terceira mulher mais rica do mundo comprometeu-se a doar a fortuna em vida, mas a fonte dos seus milhões, a Amazon, complicou-lhe a vida.
Pormenores íntimos chegavam a conta-gotas às capas das revistas cor de rosa. A estrela de Hollywood, vencedora de um Óscar, não entendia como.
De forma furtiva, ao longo de anos, o próprio pai lucrara com a fama da filha. Quando se apercebe da sua traição, Jessica parte de Los Angeles com destino a Las Vegas para confrontá-lo.
Durante a viagem de carro, da costa do Pacífico ao deserto do Nevada, cruza-se com três mulheres distintas, que, tal como ela, atravessam momentos de crise.
Dana é uma guarda-costas perita em operações especiais, capaz de desativar bombas e efetuar cirurgias de emergência, mas que treme sempre que pensa em casar com o homem que ama. Vivian tenta proteger os seus gémeos recém-nascidos de um velho namorado abusador, herança de um passado como prostituta. Lynn luta contra o alcoolismo.
Ao longo de quatro dias, as mulheres refletem sobre o que as preocupa, o que as deixa tolhidas, retorcidas como uma nota de um dólar, queixando-se da má sorte e dos erros ao longo do tempo.
Apercebem-se depois de que todas aquelas “armadilhas da vida”, como lhes chamam, são os momentos de maior apreço. No fundo, não os trocariam por nada.
“O que não me mata torna-me mais forte”, repetem, transformando o aforismo de Friedrich Nietzsche sobre a capacidade de resistência à adversidade numa máxima do poder feminino.
Este enredo paradoxal serve de base para o segundo livro de MacKenzie Scott, “Traps”, publicado em 2013, altura em que a escritora ainda assinava MacKenzie Bezos. Ex-mulher do homem mais rico do mundo, Jeff Bezos, também ela saiu da sombra de alguém que viu a vida privada exposta nas páginas de um tabloide, o “The News of the World”.
O caso extraconjugal de Jeff Bezos com a apresentadora de televisão Lauren Sánchez tornou-se conhecido depois de o casal ter anunciado o divórcio, na sequência de uma separação amigável.
Descobrir-se-ia que a vida de Jeff também fora vendida aos tabloides, depois de fotos e mensagens íntimas dos amantes aparecerem, sem se saber como, na primeira página da publicação.
Uma investigação paga pelo multimilionário, revelada pelo “The Wall Street Journal”, apontou a culpa ao irmão de Sánchez, que lhe pirateou o telemóvel e alegadamente vendeu o material por cerca de 200 mil dólares (166 mil euros).
O diário “The Guardian” acrescentou uma hipótese alternativa: a de que os serviços secretos da Arábia Saudita arquitetaram o roubo, em reação à cobertura feita pelo “The Washington Post”, de que Bezos é proprietário, sobre as violações dos direitos humanos perpetradas por Riade. O próprio Governo americano garante que agentes sauditas assassinaram Jamal Khashoggi, um dos colunistas do “The Washington Post” e crítico da ditadura.
Por fim, o “The New York Times” esclareceu que a explicação era menos elaborada no que concerne à apropriação de dados pessoais. Todos os indícios apontavam para a mão criminosa do irmão de Sánchez.
Com tanto drama à mistura, esperou-se um daqueles divórcios com roupa suja lavada em público e com as câmaras da TMZ (canal televisivo dedicado a celebridades) em perseguições aos protagonistas. Nada disso se passou.
Entre o anúncio do fim da relação, em janeiro de 2019, e a conclusão do divórcio, três meses depois, ambos se mantiveram em silêncio. O primeiro tweet de MacKenzie sobre o assunto serviu para apaziguar os ânimos dos acionistas da Amazon, o gigante de comércio eletrónico construído de raiz pelo casal desde 1994.
Entregando o controlo quase total da empresa ao ex-marido, a escritora recebeu 30 mil milhões de dólares (25 mil milhões de euros) e, ainda, 4% das ações da Amazon, cujo valor pulou de 38 mil milhões de dólares (31 mil milhões de euros) para os atuais 60 mil milhões de dólares (50 mil milhões de euros).
Naquele momento, que poderia ser descrito no livro “Traps” como uma das tais “armadilhas da vida”, MacKenzie reorientou a mesma. Com entrada direta para o terceiro lugar da lista das mulheres mais ricas do mundo, ela dedicou-se à filantropia sem pedir fama em troca — até hoje, concedeu apenas duas entrevistas, recusando milhares de pedidos todos os anos, incluindo o do Expresso, explicaram assessores próximos.
Numa delas, dada a Charlie Rose em 2013, no antigo programa diário da PBS (estação pública de televisão), jurou que apenas pretende uma “vida normal”. Pressionada pelo semblante desconfiado do decano do jornalismo americano, reconheceu que o desejo provavelmente nunca se concretizará.
A culpa é da Amazon, que jorra dinheiro detentor de um efeito bumerangue. Todos os dólares gastos regressam, por muito que MacKenzie se queira ver livre deles.
APRENDIZ DE NOBEL
“É um pouco indiferente. Ela sempre quis ser escritora”, diz ao Expresso Carole Glikfeld, professora de Literatura da magnata na Universidade de Washington durante os anos 90. “Enquanto o marido vivia obcecado pelos números, ela usava o tempo livre para melhorar os instrumentos de escrita”, revela.
Naquela conversa com Charlie Rose, MacKenzie confessou, meio envergonhada, que se tornou rica sem saber como. Mas o embaraço desapareceu quando começou a falar dos livros.
Além de “Traps”, publicou em 2005 “The Testing of Luther Albright”, a história de um engenheiro civil, perito na construção de barragens. Pai e marido devoto, convenceu-se de que propiciaria felicidade eterna à família através da bolha em que viviam, reprimindo as próprias emoções.
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