As Olimpíadas e as suas máscaras
(António Guerreiro, in Público, 02/08/2024) A delegação francesa na abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 As “externalidades negativas” dos Jogos: gente desalojada, gentrificação, militarização do espaço público, violação de liberdades civis, apropriação de bens públicos por interesses privados. A abertura dos Jogos Olímpicos de Paris 2024 foi certamente a mais grandiosa manifestação Kitsch da história dos espectáculos públicos. Não uso aqui a noção de Kitsch para desvalorizar o acontecimento ou exercer um juízo pleno de negatividade estética e ética que não responde de maneira pertinente ao seu objecto. De resto, perante esta manifestação, quem não reconhece que o Kitsch é um suplemento necessário na vida de todos nós? Nesta matéria, todo o puritanismo crítico exacerbado seria profundamente esterilizante. A teatralidade e magnificência exuberantes do espectáculo não tiveram nada de gratuito. Pelo contrário, tiveram um sentido preciso e uma calculada intenção, ao serviço de um programa ideológico de defesa de valores ecuménicos de inclusão e universalidade. Na história dos Jogos Olímpicos da era moderna, iniciada em 1896, em Atenas, graças à acção militante do barão parisiense Pierre de Coubertin, esses valores estão cobertos de manchas negras. O barão era um feroz colonialista e misógino. Na sua concepção tardiamente neoclássica, as Olimpíadas deviam exaltar a força e a elegância masculinas do homem branco, deviam evocar estritamente a estética apolínea da Grécia clássica: “Uma Olimpíada fêmea seria desinteressante, inestética”. Podemos supor que o fundador da história da arte, o neoclássico Winckelmann, teria dito a mesma coisa um século e meio antes. A cerimónia de abertura dos Jogos Olímpicos em Paris teve todos os componentes para superar e eliminar os pecados que atravessam a história dos Jogos Olímpicos. Todos os pecados? Não, aqueles que se tornaram intoleráveis para a consciência dominante do nosso tempo. Até a tradicional homofobia da competição desportiva foi revista e corrigida por um espectáculo queer que levou um elemento da extrema-direita do governo italiano a comentar de maneira irónica: “O que aconteceu em Paris foi um Gay Pride. Para quando a abertura dos Jogos Olímpicos?”. Até a polémica em torno de uma pretensa profanação através da reconstrução viva da Última Ceia, o célebre quadro de Leonardo da Vinci, se revelou como um passo em falso dos detractores, já que o objecto do quadro vivo interpretado por drag queens era a pintura de um artista flamengo intitulada Festa dos Deuses. Mais importante do que a queerness da cena, era a encenação do desregramento dionisíaco. Era esse o centro para onde devia ser atraído o olhar do espectador universal. E aqui entramos num domínio em que são os próprios Jogos Olímpicos, tal como Pierre de Coubertin os quis restaurar, a serem profanados, por via da introdução do elemento dionisíaco no seio de um acontecimento que é, na sua origem, uma manifestação apolínea por excelência. Tudo isto, e muito mais, a que assistimos naquela abertura que teve o seu aspecto litúrgico – a liturgia de uma religião profana, mas ainda assim religião – foi uma maneira muito francesa, muito universalista, de acolher o mundo actual, de responder aos tropismos do nosso tempo. Até greenwashing houve, em grandiosa escala, tendo como instrumento a água do Sena, que na propaganda oficial, logo desmentida pela realidade, tinha readquirido a pureza de outros tempos. Ali, naquela abertura, o espectador podia esquecer que a história dos Jogos é uma história cheia de conflitos, quase sempre apta a suscitar leituras políticas (muito evidentes) e económicas (mais dissimuladas). Ali, éramos levados a lembrar a mimicry – mímica, mimetismo –, uma palavra inglesa que Roger Caillois usa no seu Les Jeux et les hommes (1958), para dizer que todo o jogo supõe a aceitação temporária, se não de uma ilusão, pelo menos de um universo fechado, convencional e nalguns aspectos fictício. Liberdade, convenção, suspensão do real, invenção de uma realidade segunda: todas estas realizações, que tiveram em Paris um colossal aparato, servem também, como sabemos, para definir o Kitsch grandioso. Ali, naquele momento de abertura, éramos convidados a esquecer as razões pelas quais há uma resistência organizada, a nível internacional, contra os Jogos Olímpicos, em nome da protecção das cidades onde eles se realizam.
Sem a grandiosa sublimação ideológica própria do espectáculo integrado, como aquele a que assistimos em Paris, os Jogos Olímpicos deste nosso tempo não conseguiriam dissimular de maneira tão eficaz a sua face menos festiva. |
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