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sábado, 28 de outubro de 2017

É nisto que confiamos?



Estátua de Sal

por estatuadesal
(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 27/10/2017)
Daniel Oliveira
Daniel Oliveira
O juiz Joaquim Neto de Moura não está num tribunal de primeira instância. Está no Tribunal da Relação do Porto. Não está na base do sistema judicial português. Participou na escolha de futuros juízes e teve a seu cargo julgamentos mediáticos. Não teve um momento infeliz. É reincidente na desculpabilização de agressores de mulheres. Não preciso de repetir o que já todos disseram: a sentença que o país, atónito, ficou a conhecer este mês, em que marido e amante recebem pena suspensa depois de agredirem uma mulher de forma bárbara (usando uma moca com pregos) porque ela era adúltera, é um convite a mais agressões a mulheres, um dos crimes mais comuns e mortais em Portugal. Isto é apenas o óbvio.
A sentença de Neto Moura, que sendo juiz perdeu o direito ao tratamento de excelentíssimo, de meritíssimo ou até de “senhor”, merece uma leitura mais severa. Ela viola os direitos humanos, o Estado de Direito democrático e a Constituição da República. Falta a este cidadão autoridade moral e cívica para continuar a julgar seja quem for.
Mas Neto de Moura não está sozinho. O Sindicato dos Juízes, sempre tão lesto a falar de processos e julgamentos, calou-se desta vez. O Conselho Superior da Magistratura avançou com um processo, mas todos ficámos com a desagradável sensação que só o ruído mediático o levou a dar esse passo. E é do Supremo Tribunal de Justiça a sentença que considerou como atenuante para um violador o facto de duas turistas terem ido “para a estrada pedir boleia a quem passava, em plena coutada do chamado 'macho ibérico'”. O exemplo vem de cima e as coisas não mudaram muito nos últimos 28 anos.
A democracia e a integração na Europa mudou radicalmente o país nos últimos 40 anos. Mudou profundamente as escolas, as universidades, o Estado e as empresas. Mas a justiça mudou muito menos. A carreira de juiz continua a ser, em muitos casos, ambicionada por quem sonha com o prestígio do pequeno poder provinciano. A cultura da arbitrariedade e do autoritarismo domina os nossos tribunais. Basta entrar na Faculdade de Direito da Universidade de Lisboa para sentir o cheiro a mofo. A Justiça é o grande falhanço da nossa democracia.
Claro que há muitas exceções de excelência e inteligência. A média nem será diferente de qualquer outra atividade, onde o ótimo e o péssimo são sempre a minoria. O problema é o que o sistema promove e valoriza. É isso, e não a qualidade média dos profissionais, que determina a cultura de uma classe.
Por isso, não é tão cedo que me ouvirão dizer que confio na nossa justiça. Não, não confio. Confio mais nas nossas escolas e na nossa academia, no nosso sistema de saúde e nas nossas empresas, na nossa política e na nossa imprensa do que na nossa justiça. A Justiça não pode, e bem, ser limitada por qualquer outro poder. Os seus mecanismos de autorregulação não são mais do que mecanismos de autopreservação, bastante laxistas e corporativos, como se vê pelo percurso deste juiz. Por isso ela manteve-se protegida das enormes mudanças a que assistimos no país.
O que me assusta é ver tantos portugueses a acreditarem que a regeneração da nossa democracia pode vir do poder judicial. É o oposto: é preciso que este país que tanto mudou consiga mudar as salas dos tribunais. Até lá, a selvajaria paleolítica do juiz Neto de Moura será apenas uma caricatura grotesca do atraso cultural da nossa justiça. Ou, pelo menos, de tudo o que ela tolera.