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terça-feira, 28 de julho de 2020

O velho à viola

O velho foi à viola

Posted: 27 Jul 2020 03:24 AM PDT

Salazar morreu há meio século e eu não encontro melhor maneira de assinalar a data do que repescar um texto que Diana Andringa escreveu há uns anos, no qual descreve como este dia foi vivido por ela na prisão de Caxias.

«Segunda-feira, 27 de Julho de 1970. Um inusitado toque de clarim interrompe a rotina matinal na prisão de Caxias.

Um toque diferente, desconhecido, num tom lamentoso que não lhe conhecíamos.

Numa cadeia, ganham-se mil ouvidos: habituamo-nos aos sons ciciados da chegada de um novo preso, ao esforço de distinguir qual a cela onde o colocam (da parte da frente, com o rio ao longe? Da de trás, tendo como única visão o muro e as pernas do guarda republicano andando nele?), à frase «Prepare-se para ir à António Maria Cardoso», que pode significar, para aquele a quem é dita, uma sessão de tortura, seja a pancada, o sono ou a estátua, o seu regresso («Quantas horas passou em interrogatórios? Quantas noites?»), à tosse que anuncia esse regresso, ao assobio longínquo de um camarada, identificando-se com uma canção comum (no nosso caso, uma coladera), até às crises de asma de alguém que necessita socorro, numa cela próxima. Então, um toque de clarim, a uma hora inabitual, desperta de imediato a atenção e a ansiedade.

Lá em baixo, na guarita, o jovem guarda republicano olha, também ele, o lado de onde o som surgiu. «Que toque é este?», perguntamos-lhe, gritando. Olha-nos e encolhe os ombros. Não como quem não quer responder à pergunta gritada por aqueles que tem o dever de guardar, mas como quem não sabe. E ouvimo-lo repetir a pergunta para a guarita seguinte: «“Que toque é este?» Do outro lado chega uma resposta, para nós inaudível. Mas o jovem ouve-a e repete-a para nós: «“É o toque dos mortos!» Para que, numa cadeia, toque o clarim por alguém que morreu, é que esse alguém é pessoa de importância. E a ansiedade e a curiosidade crescem. Gritamos, de novo, para o guarda: «E quem é que morreu?»

Tal como da primeira vez, ele repete, para a guarita seguinte, a nossa pergunta. E tal como da primeira vez, a resposta escapa-nos. Mas – tal como da primeira vez – o jovem que nos guarda logo no-la repete: «Foi o velho! O velho foi à viola!»

Não houve necessidade de perguntar mais nada. O «velho» com direito a clarim só podia ser um: Salazar. E logo nos abraçámos a rir, enquanto ouvíamos, vindos de outras celas, gritos de regozijo. Que a morte, tantas vezes desejada, do ditador, nos fosse anunciada pelo jovem que devia guardar-nos aumentava a ironia da notícia.

A cadeia explodiu em gritos, risos, murros nas paredes, comunicando de cela em cela, na velha caligrafia prisional – «Um toque é “a”, dois são “b”, três “c” e por aí adiante…» – a morte do antigo Presidente do Conselho.

Os mais lúcidos lembraram que já havia outro, Marcelo Caetano. Mas, nesse dia, a alegria prevaleceu. Mesmo quando a visita foi cancelada, mesmo quando nos cortaram os minutos de música diária, porque «o país está de luto». «De luto?», respondemos nós. «O vosso talvez esteja, o nosso país está em festa!»

E, desafinadas ou não, ergueram-se as vozes dos presos e ouviram-se pela Cadeia, nesses minutos sem música, canções de resistência.»
Diana Andringa

(Publicado no nº 26 da colecção Os anos de Salazar/ O que se contava e o que se ocultava durante o Estado Novo, coordenada por António Simões do Paço.)

A boa solução de Hamurabi – Acerca da crise sistémica disparada pela actual pandemia

por estatuadesal

(Michael Hudson, in Resistir, 27/07/2020)

Bem, penso que foi correcto organizar esta conferência a fim de destacar que a crise pandémica de hoje acelera e intensifica as contradições internas que se têm acumulado. A culpa de muitas destas contradições está simplesmente a ser atribuída ao vírus. Mas há um problema subjacente que o vírus está a revelar e a transformar numa crise. O problema subjacente é o das dívidas que se acumularam durante as últimas décadas.

Estamos numa situação semelhante à de uma guerra. Há vencedores e há perdedores numa guerra. Neste caso o vencedor é o agressor – o sector financeiro. Suas exigências de pagamento estabeleceram o cenário para a ruptura económica de hoje. Tem sido este o processo ao longo da história. A finança sempre foi o grande factor desestabilizador. Exactamente agora, há negócios – lojas de retalho, restaurantes, hotéis, linhas aéreas e outros – que estão a ser encerrados ou estão a operar só com pequena capacidade muito abaixo dos níveis de equilíbrio (break-even). Estes negócios não são capazes de pagar suas rendas estipuladas ou o serviço de dívida hipotecário. Seus proprietários não são capazes de pagar seus bancos.

Trabalhadores têm sido dispensados (laid off) e são incapazes de pagar seus senhorios ou credores. Assim, eles estão a cair mais profundamente em dívidas. Estados inteiros e cidades, como New York State e New York City, estão a ser espremidos. Além de terem de pagar o seguro de desemprego local, eles têm de manter infraestrutura básica e serviços sociais. Mas as suas receitas fiscais estão a afundar em consequência da redução de impostos sobre vendas e sobre rendimentos. Assim, a pandemia está a criar uma crise orçamental como parte da crise geral da dívida e do imobiliário.

A pergunta é: como é que saímos disto? O que está a acontecer é o que contratos legais chamam um caso de força maior (Act of God). O que fazer quando a actividade económica é interrompida e o fluxo de pagamentos que as pessoas têm todos os meses – seu serviço de dívida, suas rendas ou sua hipoteca, ou seus cartões de crédito e outros despesas básicas permanentes? O que fazer quando elas não podem ser pagas? Penso que esta crise está a por o problema a nu. Trata-se de um problema que se verificou na civilização ocidental durante os últimos 2000 ano. Mas o que é impressionante é como antigas civilizações manusearam este problema muito mais habilmente. Elas assim o fizeram de um modo completamente diferente da maneira como outras civilizações manusearam as coisas.

´Código de Hamurabi.

Já escrevi muito acerca da arqueologia da Era do Bronze no antigo Médio Oriente. Foi onde teve origem a estipulação do "Acto de Deus". Ela apareceu na Leis de Hamurabi, cerca de 1750 AC. O problema que os babilónios tinham de enfrentar era o que fazer quando há uma inundação, uma seca, guerra ou pandemia. Quais deveriam ser as regras quando, subitamente e do nada, os agricultores e o conjunto dos cidadãos sobre a terra são tornados incapazes de plantar e colher, a partir do que tinham de pagar as dívidas que haviam incidido durante o anos e que estão vencidas. Eles também deviam impostos, a arrendatários ou outra rendas que não podiam ser pagas.

Hamurabi foi bastante específico acerca de como manusear esta situação. O Parágrafo 48 das suas Leis dizia que haveria uma dívida e uma amnistia fiscal quando o deus do tempo, Adad, criasse uma inundação ou impedisse de outra forma o pagamento de dívidas e outras obrigações. Se o deus da tempestade inundasse as terras, as dívidas e as rendas não tinham de ser pagas. Um recomeço sobre novas bases era feito em condições de equilíbrio na estação de colheitas seguinte.

O problema básico era semelhante ao de hoje. Como é que uma sociedade restaura a continuidade e salva-se a si própria da ruptura criando uma perda permanente e a distorção dos relacionamentos de riqueza e de rendimento existentes? O que Hamurabi e todos os outros governantes babilónios, sumérios e os demais do Médio Oriente fizeram entre cerca de 2500 AC e o primeiro século AC foi proclamar amnistias em tais circunstâncias. Se não o tivessem feito, os agricultores não teriam sido capazes de pagar aos seus credores e teriam caído na servidão (bondage). Ficariam a dever seu trabalho e suas colheitas aos seus credores.

Isto teria causado um grave problema fiscal para os governantes. Se as vítimas de uma falha de colheita ou de outra interrupção económica tivessem de pagar aos seus credores com o seu trabalho e excedentes de colheita, o imposto sobre este trabalho e esta colheita não ficariam disponíveis para pagar ao palácio os seus direitos normais de impostos e deveres de trabalho da corvéia para construir infraestruturas ou mesmo servir no exército. O equilíbrio social e a continuidade teriam sido destruídos – a partir de dentro. Assim, quando Hamurabi e todos os governantes da sua dinastia proclamaram uma folha limpa (clean slate) cancelando as dívidas e as rendas em atraso que se haviam acumulado sem pagamento, ao proclamar um retorno à situação normal impedia-se a emergência de uma oligarquia credora à procura do seu próprio interesse, diferente daquele do palácio.

Tudo isto mudou nos tempos romanos. A antiguidade clássica protegeu as elites financeiras e rentistas. Cícero e os outros líderes romanos disseram que todas as dívidas tinham de ser pagas, mesmo (ou na verdade, precisamente porque!) isto levava à escravização dos romanos e gregos mais pobres. A oligarquia credora de Roma utilizou toda crise como uma oportunidade para arrebatar a terra dos pequenos proprietários, para forçar a população à servidão e para obter controle da sua terra.

Estamos a ver a mesma dinâmica básica ocorrer por todo o mundo ocidental pós romano. Credores estão agora a planear comprar o imobiliário em dificuldades a senhorios incumpridores quando as suas rendas não são pagas. Vai ser uma enorme venda em bancarrota. Grandes fundos de capital privado já anunciaram a sua intenção de começar a comprar as lojas de retalho que foram à falência, juntamente com os seus bens imobiliários.

Dizem a indivíduos que são incapazes de pagar suas dívidas, trabalhadores que foram dispensados, para contrair empréstimos junto aos seus fundos de pensão ou às suas contas da segurança social. Isto significa que eles não estarão a receber o rendimento da pensão que precisam para viver. Da mesma forma, os estados e as cidades que Jeffrey Sachs mencionou também estão a enfrentar uma crise de dívida para com os seus detentores de obrigações. Mitch McConnell, o chefe republicano do Senado, disse que estados democratas como Nova York, Nova Jersey e Califórnia deveria cobrir seu défice pela tomada dos fundos de pensão que estabeleceram para funcionários públicos. A intenção do sector financeiro é utilizar esta crise para liquidar os fundos de pensão e transferir as poupanças dos que vivem de salários para pagar os detentores de títulos e outros credores. As promessas de pensões que governos estaduais e locais fizeram em troca da não reivindicação de salários mais altos estão para ser liquidadas.

As dívidas que foram acumuladas estão a ser utilizadas como uma táctica de guerra financeira. É mais eficiente do que uma guerra militar. A dívida tem sido utilizada para remover os activos das pessoas da classe média, de proprietários de casas, de empregados de fundos de pensão, para sugar as suas poupanças e propriedades para o topo da pirâmide económica. A crise da pandemia criou um campo de batalha. Suas regras têm sido escritas pelo sector financeiros e seus lobistas como uma oportunidade para a maior captura de propriedade e financeira desde a Grande Depressão.

O resultado será que grande parte das economias americanas e europeias estão em vias de se parecer como a economia da Grécia cinco anos atrás, quando o país foi incapaz de pagar suas dívidas em euros. Pode-se encarar a Grécia como o futuro dos Estados Unidos, catalisado pela pandemia do coronavírus.

OS GRANDES VENCEDORES

Obrigado, muito obrigado, Michael. É a sua vez, mas permita-me interromper porque há uma pergunta extra dirigida a si e aos outros: quem são os grandes vencedores, em termos económicos, após os desenvolvimentos correntes?

Falarei acerca das perguntas em ordem inversa, principiando pela ideia de que possa haver uma inflação para ajudar a liquidar as dívidas.

É exactamente o oposto: O que estamos a enfrentar agora é uma era de deflação da dívida. É a pior deflação de dívida desde a Grande Depressão. Já descrevi como vai haver grandes incumprimentos no imobiliário, especialmente para o imobiliário comercial, para lojas e todos os outros negócios que estão a ficar sem rendimento enquanto as suas rendas têm-se acumulado. Se vamos ter uma cessão de operações durante pelo menos mais três meses, sem rendimento para lojas, entretenimento, salas de cinema e museus, pagar três meses de rendas atrasadas não é viável. Não há qualquer modo de lojas, ou muitos assalariados, possam ganhar o suficiente para pagar a renda a partir do trabalho normal e do negócio. Assim, vão ficar sem negócio.

Vai haver uma onda de falências, a que se seguirá a venda de bens imobiliários a preços de liquidação. O desemprego vai levar a níveis salariais mais baixos e haverá também cortes na despesa pública com serviços sociais, transportes e outros programas normais. Privatizações a preços vis ocorrerão, tal como as de Margaret Thatcher na Inglaterra. Isto vai agora ser imposto à Europa. É possível que a Zona Euro se desfaça se não mudar as suas regras para permitir que a Itália e a Espanha sobrevivam. Mas actualmente as regras da Zona Euro são que todo o dinheiro, todo o crédito que é necessário para o crescimento europeu, deve ser emprestado a juros junto aos bancos.

Os bancos podem criar este dinheiro nos seus teclados electronicamente. O governo poderia fazer o mesmo, mas abdica deste privilégio em favor do sector bancário privatizado. Como explica a Teoria Monetária Moderna, um banco central pode simplesmente imprimir o dinheiro que é necessário para alimentar o crescimento económico. Mas o sector financeiro conquistou os corações e mentes dos banqueiros centrais, desde a Europa até aos Estados Unidos.

O problema é que estes bancos não emprestam dinheiro para criar meios de produção ou meios de vida. Eles não emprestam dinheiro para construir fábricas. Os bancos emprestam dinheiro contra activos já existentes, principalmente imobiliário, casas, edifícios e também empresas – e para atacantes corporativos (raiders) comprarem outras empresas a crédito. Assim, o efeito destes empréstimos bancários tem sido inchar o preço do imobiliário, porque uma casa ou edifício vale seja o que for que um banco empreste contra ele.

O sector financeiro torna-se cada vez menos produtivo e mais predatório. Isto tem impedido governos europeus de terem um banco central que direccione gastos deficitários para a economia real. Só os bancos e o sector financeiro, a elite do Um Porcento, são apoiados, como nos Estados Unidos. Dez milhões de milhões (trillion) de dólares colocados na economia, principalmente nos mercados de acções e financeiros, no mercado de títulos e no mercado imobiliário, mas não na produção

A Zona Euro não faz isso. Isto significa que os governos da Europa não são realmente democráticos. A Europa é governada pelo Banco Central Europeu. Trabalha para os seus clientes, os bancos comerciais. E os banqueiros comerciais dizem: "Queremos fazer a economia do crédito passar fome para que nós, os banqueiros comerciais, possamos criar moeda para emprestar aos nossos clientes e cobrar juros e taxas financeiras. A nossa própria especulação financeira [é] que todo o crescimento, o excedente que a Europa produz, deveria ser entregue ao sector financeiro". Foi para isso que os europeus votaram. Com efeito, votaram por salários mais baixos, cortes nos serviços públicos e pensões mais reduzidas. Estes padrões de vida são ameaçados pela forma como a dimensão financeira da crise do coronavírus está a ser gerida.

Assiste-se agora a uma disparidade entre a Itália e os países mediterrânicos e os do Norte da Europa. Os países precisam de crédito para se recuperarem. Mas a Zona Euro recusa-se a fornecer o crédito necessário para superar a suspensão da actividade económica do coronavírus e as suas consequentes dívidas, rendas e outras obrigações não pagas [NR] . A Zona Euro está a tratar a Itália, Grécia, Portugal e Espanha tal como o Presidente Trump aqui na América está a tratar os estados do Partido Democrata como Nova York, Nova Jersey e Califórnia. O efeito é a criação de uma crise deflacionária. Isso impossibilita o pagamento das dívidas e rendas acumuladas.

Podemos ver uma tomada de poder a criar algo muito semelhante ao feudalismo. Nos Estados Unidos isto é sugerido pelos empréstimos a estudantes, ou pelos empréstimos a assalariados garantidos pela promessa do devedor de pagar 10%, 20%, 25% de tudo o que ganhar durante o resto da sua vida. Isto é como um imposto, mas é realmente uma forma de servidão (peonage) da dívida. É um pagamento muito semelhante ao que os servos medievais tinham de entregar aos seus senhores sobre o seu excedente económico. Bem, agora os assalariados, pequenos negócios e mesmo grandes negócios na América e na Europa vão ter de entregar ainda mais dos seus ganhos ao sector financeiro a fim de poderem sobreviver.

Isto pode parecer uma forma louca de organizar a sociedade, mas é como a civilização ocidental tem sido estruturada – na base da protecção dos direitos dos credores, não na solvência dos devedores e no equilíbrio social e continuidade geral. Ao contrário das sociedades não ocidentais, ao contrário mesmo da China de hoje, o crédito na Europa e na América é privatizado. A oferta de crédito, tal como dinheiro, deveria ser uma utilidade pública. Tal como a saúde pública deveria ser um serviço de utilidade pública. Tal como as estradas e a comunicação deveriam ser um serviço de utilidade pública. A Europa deixou que fosse privatizada de uma forma agressiva e predatória.

Na medida em que governos subordinam a vontade dos eleitores a tudo o que os bancos centrais lhes digam, isto não é uma democracia. Jeffrey mencionou anteriormente o que pensava Aristóteles. Aristóteles explicou uma espécie de eterno triângulo político. Ele dizia que muitas constituições pareciam ser democráticas, mas elas realmente são oligárquicas. Isto porque as democracias tendem a evoluir para uma oligarquia. A oligarquia transforma-se em hereditária, numa classe dominante aristocrática. Finalmente, graças aos céus, alguns dos aristocratas ricos combatem entre si próprios e tentam – como fez Cleistenes em Atenas em 406 AC – levar as massas para o seu campo e tornam-se democráticos a fim de mobilizar apoio entre a cidadania contra os outros aristocratas. Então há uma revolução democrática, mas a democracia mais uma vez volta a desenvolver-se numa oligarquia. Esse é o eterno triângulo político descrito por Aristóteles.

E é isso que se tem na Europa. Já não é mais uma democracia; é uma oligarquia que se transforma no mesmo tipo de aristocracia hereditária que ocorreu na antiguidade clássica. Muitos de vós esperavam que a Europa tivesse derrubado a aristocracia após a Primeira Guerra Mundial, quando na verdade se livrou dos reis e da realeza. Mas abriram o caminho para um novo tipo de oligarquia, transformando-se numa aristocracia hereditária, a das finanças.

Essa é a tarefa que tem diante de si para resolver. A única coisa que posso dizer é que, talvez, esta crise tenha de facto catalisado esta contradição interna básica e irá criar uma resposta que lide com a pandemia através do cancelamento de dívidas e da desprivatização do sector bancário.
29/Junho/2020

[NR] A Comissão Europeia propôs um fundo plurianual (2021-2027) de €750 mil milhões para a recuperação dos países da UE, cujos recursos serão obtidos através de empréstimos conjuntos a longo prazo obtidos no mercado financeiro. Verifica-se assim a continuação da subordinação da UE ao capital financeiro.

segunda-feira, 27 de julho de 2020

Feliz ano novo, dr. Costa

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 25/07/2020)

Pedro Santos Guerreiro

A palavra do ano é “pandemia” e a frase mais usada é “a situação que estamos a viver”. Bom, a situação que estamos a viver está a correr mal e vai piorar antes de melhorar, pelo que o primeiro-ministro vai cavando trincheiras lá à frente para a sua sobrevivência política.

Pedir apoio à esquerda, como o António Costa pediu ontem no Parlamento que PS e PSD querem ver encher-se de teias de aranha, é uma forma de abrir espaço político para o ano terrível que se segue. Se a esquerda não aceitar, o PS acusará a deserção e atribuir-lhe-á o ónus para se virar para o PSD.

Nem a Madame Min seria capaz de engendrar tamanha poção maléfica. Portugal está em recessão profunda e possivelmente longa, o desemprego está preso por arames do Estado, as contas públicas abriram uma cratera e será preciso desenhar um Orçamento do Estado que não poderá evitar choques com a função pública e deixar de encomendar uma gestão perfurante da dívida.

É fácil antever uma crise económica e portanto social e portanto política em 2021. E em 2021 há duas eleições e uma presidência portuguesa da UE.

As sondagens que dão agora liderança destacada ao PS são o canto do cisne negro que desabou invisível no nosso mundo. Depois da valorização da segurança do Estado lançada pelo Governo, que tinha prazo de validade para três meses, virá o tempo do deserto.

O oásis está nos financiamentos comunitários, que somos péssimos a executar. O Governo vai cair na tentação de desimpedir a burocracia e os filtros de controlo, para que o dinheiro chegue depressa à economia real. O problema não será a pressa, mas a estratégia, se a houver. Essa é a única jangada visível a que nos podemos agarrar, pelo que a máquina do Estado terá de estar apta a pôr em marcha os projetos para fazer arrancar um país com capital a menos e dívida a mais.

É perante esta tormenta que António Costa e Rui Rio vão jogando o seu caminho de alianças precárias, mesmo se já começámos a ouvir falar de necessidades de acordos de regime ou “soluções políticas alargadas”, como lhe chama o Presidente da República. Marcelo Rebelo de Sousa até anda recolhido e diz agora que não comenta o fim dos debates quinzenais porque seria meter-se na vida de outros órgãos de soberania — logo ele, que se mete em tudo.

Depois das eleições, o Presidente da República pode até ser o mesmo, mas será outro. E a esquerda?

É difícil imaginar uma nova ‘geringonça’, mas é possível antever um PS a pendular entre orçamentos e acordos para fundos comunitários com o PSD, e salvações de empresas com PCP e BE. Como ontem dizia com graça o jornalista António Costa, o primeiro-ministro pede namoro ao PCP e ao BE enquanto mantém um caso extraconjugal com o PSD.

Todos os anos, o primeiro-ministro dá uma longa entrevista ao Expresso em agosto, em que desenha o mapa político do ano que se segue. Este verão, provavelmente assim o leremos, renovando votos à esquerda e mantendo pontes com a direita que diz que não é direita. É ele que está no meio da ponte, entre “a situação que estamos a viver” e a maior crise económica das nossas vidas. Ninguém quereria estar na pele do primeiro-ministro. Exceto ele.

Entre o coma e as ilusões

Posted: 26 Jul 2020 03:32 AM PDT

«A economia portuguesa está, em grande parte, numa situação de sobrevivência por coma induzido. Estão muitas empresas que sobreviverão quando os apoios forem retirados, embora com períodos e condições de convalescença diferenciados, mas estão muitas outras que inexoravelmente vão desaparecer.

A saída da crise em que estamos mergulhados impõe alterações no padrão de especialização que tínhamos antes da pandemia. A reindustrialização é uma necessidade que obriga a seleção de atividades e de empresas em que apostar, e a reconversões. Não podemos continuar a depender tanto do turismo e do imobiliário e é necessário colocar o futuro destes setores associado à melhoria das condições de vida dos portugueses. Não haverá, pois, um retorno à normalidade - entendida como o quadro das atividades, das condições estruturais e organizacionais da economia - que tínhamos nas vésperas do eclodir da pandemia. Essa ilusão pode estar a alimentar oportunismos e a bloquear o futuro que queremos.

Outras ilusões perigosas emergem do foguetório propagandístico lançado a propósito do "extraordinário acordo europeu". Sem dúvida que o volume e as condições gerais das verbas aprovadas para a reconstrução económica e social mais imediata (com realce para os 750 mil milhões) não são o mesmo que os planos de ajustamento impostos pela UE na crise anterior, mas não são, de certeza, um plano Marshall. É indispensável ver os detalhes das condições. Para além disso, é preciso fazer contas rigorosas sobre o volume das transferências da UE para Portugal, previstas para o período 2020/2026, comparando esse total com o de outros Quadros Comunitários de Apoio anteriores e de duração igual. Há já quem diga que o valor agora aprovado não tem precedentes. Será verdade?

Não se inculque na cabeça dos portugueses a ideia de que vamos ter todos os dias à nossa disposição um pote de muitos milhões de euros para gerirmos como quisermos. Isso é errado, desvia-nos da discussão das políticas a adotar para que se gaste bem cada "tostão", e abre campo aos abutres do costume.

Quatro problemas muito delicados se nos colocam: primeiro, o coma induzido já se prolongou muito, os orçamentos tornam-se escassos muito em breve e o financiamento de que vamos dispor é insuficiente face às necessidades de investimento, público e privado; segundo, a distribuição de apoios às empresas sem critérios tem de terminar e o Governo não pode furtar-se a uma planificação bem sustentada e a fazer escolhas certas quanto a setores, atividades e empresas a salvar; terceiro, é imprescindível salvaguardar meios para o reforço da capacidade do Estado com vista a garantir aos portugueses direitos fundamentais, como a saúde e o ensino; quarto, a proteção das pessoas, do emprego e do sistema da Segurança Social tem de ser prioritária.

No presente devia-se estar a apostar bem mais na saúde e segurança no trabalho, assim como a fomentar atividades que podem reduzir a nossa dependência externa, a fiscalizar práticas de quebra propositada de faturação que legitima recurso ao lay-off, a dialogar intensamente com os sindicatos, a pôr em prática planos de formação bem pensados para uma perspetiva de retoma.

Desconstruindo ilusões e melhorando paulatinamente a nossa matriz económica é possível evitar o retrocesso e encarar, com confiança, uma saída positiva desta crise.»

Manuel Carvalho da Silva

Então, já há almoços grátis?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 25/07/2020)

A cimeira europeia teve três dias de gritaria e um dia de Twitter, com cada governante a vender o resultado da barganha como se fosse um evento transcendente. É a normal luta pelo controlo da informação. Fora da sala, houve quem se consolasse com o fumo branco, houve mesmo quem garantisse que era um momento mágico, “hamiltoniano”, e que nasceu o Estado europeu, houve de tudo, mas no fim fica sempre a continha.

A CONTA VEM ANTES DO ALMOÇO

A conta foi feita por Lagarde: é menos de metade do que era necessário. E por Merkel e Macron: os 400 mil milhões de subsídios eram a linha vermelha, aceitaram a humilhação de a baixar. E por todos os governantes que anuíram a um orçamento reduzido, o que tinham jurado combater até à última bala. Ficou uma inovação, a emissão de dívida pela Comissão Europeia, a ser paga entre 2028 e 2058, só que não se sabe como. Até ver, é um empréstimo garantido pelo Estados, ou seja, vão pagar nos orçamentos por três décadas, a não ser que sejam aprovados novos recursos, precisamente os que têm sido persistentemente recusados, e ouvir agora promessas, aliás pouco enfáticas, de uma taxa sobre transações financeiras, já votada há nove anos e sempre bloquea­da, soa a banha da cobra. Talvez a taxa sobre o plástico seja aprovada em 2021, mas será pouco. Esse é o primeiro risco da decisão — não se sabe como vai ser paga a conta. Ou seja, o que para já se criou foi dívida adiada.

O segundo risco é uma certeza, as grandes reformas europeias vão ser reduzidas com o seu orçamento. O Green Deal ou a Europa digitalizada são secundarizados. A transição justa perde dois terços do orçamento, o Horizon, programa para cooperação científica, perde quase tanto. Uma parte dos seus objetivos poderá ser consagrada nos programas nacionais ao abrigo dos subsídios e empréstimos, mas é de notar que há uma diferença entre planos locais e uma colaboração europeia com orçamento.

A PIOR CONTA É A POLÍTICA

No Orçamento plurianual, Portugal sofre uma redução precisamente onde o primeiro-ministro prometera não se perder um cêntimo. São cortes de 7,5% na coesão (o Governo soma-lhe os novos fundos extraordinários para evitar esta conta) e de 9% na agricultura. Esses são cortes permanentes, que agravam reduções anteriores nos fundos de coesão. Argumenta o Governo que há que considerar agora os fundos extraordinários (9,6 mil milhões do Fundo de Recuperação Europeia e talvez mais 5,7 mil milhões dentro de dois anos), o que pode ter um impacto grande na economia, o que é certo. Mas as contas são mais complicadas: a Grécia, menos afetada pela pandemia que Portugal (tem quatro mil casos e 200 mortos), receberá €19 mil milhões de subsídios (13,3 dos quais em 2021 e 2022) e 12,5 de empréstimos — a distribuição é feita segundo critérios talhados à medida de cada fato.

Há então vários riscos pesados. Não se sabe como vai ser paga a dívida europeia, há desigualdades entre países, os dois grupos não merkelianos ganharam poder, o dos frugais e o de Visegrado, e, sobretudo, impuseram uma norma: o chamado travão de emergência, que pode ser o detonador de novas crises.

Percebe-se a resistência de vários Governos, mas aceitaram uma solução comprometedora: um país pode reclamar da execução de programas noutros, criando-se uma forma de tutela pelo Conselho que politiza em conflito internacional o que deveria unir a União. Não sei se, na afobação dos twites autocongratulantes, os governantes se deram conta de que assim aprovaram uma cláusula que vai inventar novas tensões, sem escape possível.


O meu ditador é pior do que o teu

Se fosse um país, o Facebook seria a Coreia do Norte”, escreve a jornalista Carole Cadwalladr no “The Guardian”. Que exagero. Uma empresa comparada com uma nova potência nuclear? Uma plataforma de contacto medida por um regime que não tolera a liberdade de opinião? Cadwalladr sustenta que é pior e que tem mais consequências para a nossa vida. Diz ela: se colossos como a Unilever e a Coca-Cola, que suspenderam os anúncios no Facebook, não o forçam a negociar e a administração gaba-se ao “Wall Street Journal” de só ter menos de 5% de lucros com esse boicote mundial, então é porque Zuckerberg é mais poderoso do que um país. E o mercado sabe-o: quando a empresa foi condenada à multa de cinco mil milhões de dólares por ter facilitado a operação da Cambridge Analytica, o valor das suas ações subiu.

Por se ter tornado o palco universal de todos os discursos de ódio, que ­criam uma febre contagiante e que, por isso, são o pilar da comunicação atual, o Facebook é uma arma mais poderosa do que qualquer míssil, garante a jornalista. O seu exemplo tremendo é o relatório das Nações Unidas sobre o massacre dos rohingyas de Myanmar, que afirma que o Facebook teve um “papel determinante” ao aceitar promover a agressão e ao permitir a transmissão em direto do genocídio, que fez dezenas de milhares de vítimas. Mas é a aliança entre Zuckerberg e Trump que mais inquieta Cadwalladr. Não havendo limites à convocação da violência, todas as milícias do ódio se podem mover naquele universo de 2600 milhões de participantes, e é o que fazem sem limite, conclui ela.

O poder desta rede é, assim, imenso. Aaron Greenspan, que estudou em Harvard e foi colega de Zuckerberg, com quem terá inventado o Facebook em 2003 e 2004 (a empresa pagou-lhe há 10 anos para encerrar um litígio judicial por direitos autorais) e que se tornou um crítico da rede social, publicou um relatório, em janeiro de 2019, em que afirma que metade dos perfis é falsa, com base em dados da própria empresa. O Facebook desmente, reconhecendo um número menor, um em cada 20. Seriam, assim, 130 milhões ou mais perfis falsos, cuja função essencial é promover a mentira. Kim Jon-un é só um aprendiz. O feiticeiro já está dentro da nossa casa.


E se o desemprego chegar ao milhão?

Há semanas citei os dados oficiais que indicam haver hoje cerca de 750 mil pessoas desempregadas ou em situação de “subutilização” do trabalho. Este retrato contrasta com o registo artificial, mas também oficial, de uma baixa da taxa de desemprego. A explicação não é misteriosa: há mais de 200 mil novos desempregados com a recessão atual, mas uma parte significativa aparece como tendo deixado de fazer parte da população ativa, seguindo-se para esta contabilização os preceitos do Eurostat, que já critiquei noutros momentos. Isso não aconteceu porque os centros de emprego tenham estado fechados pelo confinamento (agradeço a correção ao Instituto do Emprego e Formação Profissional), pois continuaram a funcionar, embora, entre 1 de março e 7 de julho, a data a que se reporta a informação (com 72,5% dos contactos não presenciais), houvesse menos 35% de atendimentos do que no período homólogo.

Com a reabertura da sociedade, a dimensão da crise do desemprego agiganta-se e o biombo estatístico da taxa de desemprego vai-se revelando. Podemos chegar ao milhão de pessoas desempregadas no outono ou no inverno. Numa década, é a segunda grande crise vivida por muitas das pessoas mais vulneráveis, e não são só os trabalhadores menos qualificados, são também jovens e profissionais com carreiras anteriormente estáveis. Eis o problema número um de Portugal: uma economia que não cria empregos nem responde a uma crise.


É assim que começa

O que mais choca na convergência PS-PSD para que o primeiro-ministro só passe a ir de dois em dois meses ao Parlamento não é o argumento parolo (“deixem-no trabalhar”) nem sequer o descaramento (não são os mesmos que adoram elogiar a “casa da democracia”?), mas antes o calculismo. Este passo é de enormes consequências e não é só por demonstrar uma visão instrumental da democracia. É um teste ao país, para saber se vai aceitar o bloco central, para já disfarçado, como a forma do regime. É, como se diz em bom português, uma esperteza saloia.