O assunto está na moda. Não há think-tank, jornal ou político iluminado que não fale do que aí vem: o progresso tecnológico ameaça acabar com a necessidade de trabalho humano e enviar-nos todos para o desemprego. Os mais excitados falam de um futuro em que estaremos subjugados ao poder do grande capital que deterá os robots com inteligência artificial, escravizando a classe operária. Não falta então quem sugira ideias geniais como a do rendimento básico incondicional (uma espécie de RSI para todos) ou impostos sobre o rendimento dos robots.
Estas teorias catastrofistas assentam em três pressupostos. Primeiro, que estamos a assistir a uma evolução tecnológica sem precedentes que levará à substituição de trabalhadores por máquinas. Em segundo lugar, que esta evolução tecnológica não tem precedentes na história da humanidade, que desta vez é diferente pela rapidez com que acontecerá. Em terceiro lugar, que esta mudança será negativa para a sociedade como um todo, especialmente para os mais pobres.
O problema com estas teorias é a realidade. Comecemos pelo primeiro pressuposto. Se estivéssemos a assistir a uma substituição sem precedentes de trabalhadores por máquinas, isso ficaria evidente nos indicadores de produtividade. A produtividade, grosso modo, corresponde ao volume total de produção dividido pelo número de trabalhadores. Se o dividendo se mantém igual ou cresce e o divisor cai, então a produtividade estaria a aumentar. Infelizmente, não é isso que está a acontecer: as economias desenvolvidas estão num processo de estagnação em termos de produtividade desde o início do século. A produtividade cresce a ritmos cada vez mais baixos, o contrário do que seria de esperar se estivéssemos num processo acelerado de substituição de homens por máquinas.
Mas vamos ignorar isto. Vamos então fingir que a produtividade é mal calculada e que na verdade está a crescer a um ritmo acelerado. Ou então que há outros factores não relacionados que estão a contrabalancear o efeito da automação. Ou ainda que que a automação ainda não começou a substituir trabalhadores humanos, mas que irá começar muito em breve. Não falta quem aponte números: 50% dos empregos irão desaparecer nos últimos 50 anos. Será que isto é novo? Podemos dar um passo atrás. Pensemos no mercado de trabalho nos anos 90: quantos daqueles empregos existem ainda hoje? Quantos trabalhadores em 1992 se fossem transportados no tempo para os nossos dias teriam o seu emprego tal e qual o tinham? Ou, visto de outra forma, quantos trabalhadores hoje estão em empregos que já existiam em 1992? Hoje temos muito menos bancários e mais programadores. Menos empregados de mesa e mais operadores de call center. Menos portageiros e mais hospedeiros. Mesmo os empregos que nominalmente se mantiveram iguais, alteraram-se de forma tão substancial que dificilmente se pode dizer que são o mesmo emprego (pensemos em jornalistas, por exemplo). Se fizermos a análise entre 1992 e 1967 a diferença é ainda maior. No entanto, para além das flutuações conjunturais é difícil identificar uma enorme subida do desemprego em resultado do desaparecimentos daqueles empregos. Se 50% dos actuais empregos desaparecerem nos próximos 25 anos isso não será necessariamente novo. Nem sequer, note-se, deverá causar desemprego temporário, uma vez que 50% dos trabalhadores também deverá reformar-se nos próximos 25 anos. Apesar de tudo, o perfil dos jovens que hoje começam a sua carreira é bastante diferente da média dos actuais trabalhadores. E certamente diferente do que será daqui a 25 anos.
Por outro lado, a substituição de trabalhadores é feita de forma lenta e gradual. O facto de uma tecnologia estar disponível não quer dizer que venha a substituir imediatamente todos os trabalhadores que pode substituir. Pensemos no caso da Via Verde que existe em Portugal há mais de 20 anos. Durante este período, muitos empregos de portageiro desapareceram. No entanto, os portageiros desapareeram do mercado de trabalho mais rapidamente que os empregos nas portagens. Fruto disso, apesar da Via Verde ser uma tecnologia madura, a Brisa ainda hoje contrata portageiros. Ou seja, uma tecnologia simples que substitui empregados de forma directa e com poucos custos de implementação falhou em substituir todos os empregados disponíveis para a profissão. Imaginem agora o que será com tecnologias complicadas.
Para os portugueses que ainda tenham dúvidas, há uma forma ainda melhor de ficar descansado. Portugal, como um país atrasado no conjunto dos países desenvolvidos, tem a capacidade de conseguir de antecipar o futuro, olhando para os países 20 anos à frente. É o caso do Japão, o país com o maior número de robots do Mundo, com um nível de automação a que Portugal só conseguirá chegar daqui a 15-20 anos. E no entanto, o desemprego é praticamente inexistente. Com uma densidade de robots 20 vezes superior à portuguesa, o Japão praticamente não tem desempregados e mesmo os trabalhadores queixam-se mais do excesso e não da falta de trabalho.
O terceiro argumento é de que a automação, substituindo empregos manuais e pouco sofisticados, afectará principalmente os pobres. Mais uma vez, contraria a história: o progresso tecnológico é uma força equalizadora. O progresso tecnológico torna luxos apenas disponíveis para os mais ricos em bens essenciais e generalizados. Pensemos em algo que há umas décadas ainda era um luxo: água canalizada. Um membro do topo da hierarquia no século XV teria acesso constante a água (trazida pelos aguadeiros de serviço). Para pessoas no topo da hierarquia o aparecimento de sistemas de água canalizada trouxe menos benefícios do que para os pobres (que não podiam ter empregados a transportar água). O mesmo acontece com a alimentação, a arte e o entretenimento. O progresso tecnológico (seja ele na forma de água canalizada, máquinas agrícolas, televisões ou aviões) beneficiou sempre desproporcionalmente os mais pobres. A água canalizada tirou emprego a centenas (milhares?) de aguadeiros, mas foi o que permitiu às classes menos afortunadas ter acesso a água
Nesta altura da discussão, há sempre alguém que se levanta e pede exemplos específicos de empregos que irão substituir os actuais. Eu só consigo imaginar o desespero destas mesmas pessoas se em 1930 lhes dissessem que daí a 50 anos, 3% dos trabalhadores seria suficiente para produzir os bens alimentares de toda a população. Consigo imaginar o seu desespero ao tentar imaginar onde trabalhariam os outros 60% de trabalhadores que nessa altura se dedicavam à agricultura. A verdade é que hoje não temos 60% de pessoas desesperadas de enxada na mão de porta em porta à procura de trabalho. Tal como as pessoas em 1930 não conseguiriam imaginar que empregos iriam substituir os empregos na agricultura entretanto automatizados, também para nós será difícil fazê-lo.
Uma boa forma de tentar adivinhar que empregos serão esses é analisar a sua vida e pensar o que é que gostava de ter e não tem. Em 1930 poucas pessoas faziam férias, jantavam fora ou tinham acesso a entretenimento de qualidade. A simples ideia de que estas seriam actividades regulares mesmo entre a classe média baixa seria ridicularizada. Mas isto é hoje uma realidade porque muitos dos recursos humanos utilizados na agricultura foram automatizados e o seu esforço desviado para a prestação deste tipo de serviços.
Em 2017, o que vos falta? A mim salta-me logo uma tremenda necessidade presente e que tenderá a agravar-se no futuro: o cuidado a idosos. O cuidado a idosos com problemas de mobilidade é hoje caro e inacessível à maioria das famílias. Muitos dependem de cuidadores informais ou são abandonados em hospitais. Com o envelhecimento da população, o problema apenas tenderá a agravar-se. Será preciso desviar muitos recursos de outros sectores para suprir todas estas necessidades nas próximas décadas.
Nos anos 60 muitos previam que as viagens espaciais se tornariam comuns no final do século. As pessoas da minha idade cresceram a ver os Jetsons com a certeza de que quando fossem adultos não teriam que realizar tarefas domésticas básicas. A verdade é que hoje as viagens à lua são extremamente raras e lavar a louça extremamente frequente. Enquanto tantos economistas se preocupam com a legião de desempregados que a automação e robotização irão criar, talvez nós, pessoas na casa dos 20-40 anos, devêssemos estar mais preocupados em que o progresso tecnológico liberte recursos suficientes para um dia termos quem nos limpe o cu. Ou então que nos próximos 40 anos apareça um robot capaz de o fazer. Suavemente.