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terça-feira, 27 de março de 2018

A nova economia dos dados

GLOBAL SHAPERS

  • Cristina Fonseca

27/3/2018, 6:00

Porque é que os dados são tão importantes? Porquê as discussões sobre os dados serem o novo petróleo? Porque são o que permite às empresas eliminar restrições que limitam os negócios hoje e no futuro.

Alphabet (empresa mãe da Google), Amazon, Apple, Facebook e Microsoft  —  estas são as cinco maiores empresas do mundo cotadas em bolsa. Os produtos dos gigantes tecnológicos têm beneficiado os consumidores que já não sabem viver sem a barra de procura da Google, o iPhone, o WhatsApp ou o feed de notícias do Facebook.

Estas empresas recolhem e utilizam quantidades massivas de dados dos seus utilizadores (como por exemplo dados de utilização, preferências e hábitos, localização, relações pessoais e contactos com essas pessoas) para melhorar os seus produtos e trabalhar nas próximas inovações tecnológicas. Os dados são o factor limitativo da revolução tecnológica pela qual estamos a passar: a Inteligência Artificial, os carros autónomos, e até a cura de doenças como o cancro  —  todos estes campos do conhecimento e as promessas de melhorarem as nossas vidas, são dependentes de grandes quantidades de dados.

Mas porque é que os dados são assim tão importantes? Porquê as discussões sobre “os dados serem o novo petróleo”? Os dados são o que permite às empresas eliminar as restrições que limitam os negócios de hoje e do futuro.

Vamos perceber esta restrição usando  a teoria das restrições , que considera que a preocupação com qualquer outra coisa que não a restrição ou limite de um sistema é uma perda de recursos. Num exemplo prático muito simples: se uma empresa tiver um produto superior à concorrência, mas que ninguém conheça, melhorar o produto não o ajudará a vender mais. A única solução é aumentar a visibilidade do produto/investir em marketing de produto para aumentar as vendas.

Ora, o mesmo paradigma pode ajudar-nos a perceber como é que as empresas tecnológicas funcionam e porque é que os dados são, de facto, a nova e mais valiosa moeda da economia digital. Numa semana em que as discussões sobre o escândalo de recolha e uso dos dados de clientes do Facebook e a discussão sobre o acidente em que esteve envolvido um carro autónomo da Uber, podemos analisar estes dois casos à luz da mesma teoria.

O Facebook obtém mais de 95% das suas receitas da publicidade que nos é apresentada na nossa timeline. É sabido que a empresa atingiu a saturação em relação ao limite de anúncios que nos pode mostrar, e a única forma de aumentar as receitas será melhorar a performance de cada um destes anúncios. Como é que isto se faz? Ao mostrar exatamente o que queremos ver, e como consequência aumentar os cliques em cada um destes anúncios. Sendo este o factor limitativo, como é que se ultrapassa? Recolhendo mais dados sobre os utilizadores para poder conhecê-los melhor e desta forma mostrar-lhes os anúncios mais adequados e relevantes. Ora, obviamente que a rede social focar-se em algo que não seja captar mais dados não fará mover o ponteiro das receitas da gigante.

Um exercício semelhante pode ser feito para o caso do carro autónomo da Uber que, na semana passada, atropelou fatalmente uma mulher no Arizona. Obviamente que o caso trouxe à discussão uma série de tópicos, nomeadamente a questão sobre se a tecnologia estará pronta para substituir os humanos na condução. Os carros são treinados com algoritmos que aprendem com os dados que vão sendo recolhidos nas imensas de viagens de teste que se realizam. A esta altura a tecnologia não está pronta para ser usada num cenário real porque há ainda muitos casos que não estão cobertos por estes testes e a tecnologia ainda não “viu” e aprendeu com cenários suficientes. Mais uma vez, o factor que limita a tecnologia são os dados (ou a falta deles), daí a sua importância. Para o projecto ter sucesso e a tecnologia chegar ao mercado, estas empresas terão de se focar em resolver o factor limitativo :  a recolha de dados.

Estes são só alguns exemplos de como os dados são a moeda mais valiosa das próximas décadas. E daí resulta uma série de questões  —  esta recolha de dados é na maioria dos casos feita sem conhecimento do utilizador final que acaba por gerar e ceder esses dados  —  é esta uma abordagem justa e sustentável? Esses dados podem ser usados para nosso benefício, mas também em prol de interesses económicos com os quais não estamos alinhados, porque no final do dia são de valor inegável e há quem pague por eles  —  onde estão os limites desta nova actividade económica? Com que outros desafios, para além do RGPD (o Regulamento Geral de Protecção de Dados que entra em vigor em Maio e que tem como objetivo certificar que o direito dos cidadãos à proteção de dados pessoais se mantém efetivo na era digital) se irão as empresas deparar numa tentativa de regular ou controlar a propriedades destes dados que muitas vezes facultamos às empresas sem nos apercebermos?

Cristina Fonseca tem 30 anos, é investidora e empreendedora tecnológica e co-fundadora da startup Talkdesk, uma plataforma que permite a empresas criarem o seu call center na cloud. Engenheira de formação, foi reconhecida pela Forbes como “30 under 30”. Juntou-se ao Global Shapers Lisbon Hub em 2013 e é presença assídua em eventos do Fórum Económico Mundial, tendo já participado nos eventos de Davos (Suíça) e de Dalian (China).

O Observador associa-se aos Global Shapers Lisbon, comunidade do Fórum Económico Mundial para, semanalmente, discutir um tópico relevante da política nacional visto pelos olhos de um destes jovens líderes da sociedade portuguesa. Ao longo dos próximos meses, partilharão com os leitores a visão para o futuro do país, com base nas respetivas áreas de especialidade, como aconteceu com este artigo sobre o ecossistema empreendedor. O artigo representa, portanto, a opinião pessoal do autor enquadrada nos valores da Comunidade dos Global Shapers, ainda que de forma não vinculativa.

O Facebook ajudou Trump? Então já não presta

FACEBOOK

Rui RamosSeguir

27/3/2018, 2:06

O escândalo à volta do Facebook não tem a ver com as redes sociais e o seu poder, mas com o facto de ter ajudado Trump.  Enquanto ajudava apenas Obama ou os Trabalhistas ingleses, estava tudo bem.

Lembram-se do Facebook de há seis anos atrás? Parece que foi noutra era geológica. Então, o Facebook ia permitir aos cidadãos coordenarem-se entre si e “fazerem ouvir a sua voz”. As redes sociais eram a realização final da democracia. E agora? Agora, são um perigo, uma ameaça, o meio através do qual facções sinistras manipulam as massas a favor das piores causas. Que aconteceu? Há anos que o Facebook faz negócio com os dados que os seus utilizadores lhe fornecem despreocupadamente. É o contrato do Facebook: vocês usam a plataforma gratuitamente, e a plataforma usa-os a vocês. Quem quer manter a sua privacidade, não use o Facebook: é tão simples como isso. O que mudou, então? Ora, o que havia de ser: alguém descobriu que o Facebook teria disponibilizado dados a uma firma (Cambridge Analytica) que colaborou na campanha de Donald Trump em 2016. Não era suposto. O Facebook devia servir unicamente para os activistas do anti-capitalismo organizarem as suas “manifs”, como os “indignados” em Espanha em 2011, ou para a esquerda mobilizar os seus potenciais eleitores, como fez Barack Obama (“o primeiro presidente das redes sociais“) em 2008 ou os Trabalhistas ingleses em 2017. Assim, estava bem. Agora, ajudar Trump? Isso não.

O escândalo à volta do Facebook tem menos a ver com as redes sociais e o seu poder do que com o choque da eleição de Donald Trump. A elite de governadores e de senadores que normalmente abastece os EUA de presidentes ainda não recuperou. Logo no primeiro dia, começaram as teorias da conspiração para explicar Trump. Ao princípio, a culpa era dos “pobres”, que teriam submergido as classes médias progressistas. Depois, apareceram as forças obscuras que operam nas redes sociais. Tivemos assim o escândalo da Rússia, cujos exércitos de trolls teriam difamado Hillary Clinton, e agora o do Facebook. Nos dois casos, isso envolveu uma reversão espectacular da apreciação das entidades em causa. Ainda se lembram da Rússia do tempo de George W. Bush? A Rússia era então uma potência muito injustiçada pelo Ocidente, que a encurralara com a expansão da Nato. Em 2009, Obama chegou decidido a dar-se bem com os russos, isto é, a fechar os olhos a tudo. Isso durou até Novembro de 2016. A partir daí, a esquerda americana descobriu de repente que havia uma irmandade tétrica entre Vladimir Putin e Trump, e começou a falar da Rússia como o senador Joseph McCarthy falava da União Soviética em 1950.

Estou com isto a dizer que as redes sociais não têm contra-indicações, ou que a Rússia de Putin é uma potência benigna? De maneira nenhuma. O Facebook, como outras plataformas, armazena demasiada informação sobre os seus utilizadores, e exerce um poder parecido com o de um monopólio. A Rússia de Putin tudo fará para minar as democracias ocidentais e a sua influência. Mas o Facebook e Putin não elegeram Trump. Os trolls de Putin criaram falsas notícias, o Facebook forneceu endereços de quem tinha o perfil de um votante de Trump. Mas nem Putin nem o Facebook puseram votos nas urnas. Insinuar que foram eles que ganharam as eleições é admitir que os cidadãos das nossas democracias são uma massa tão vulnerável e obtusa que Putin ou uma qualquer start-up digital podem, sozinhos, decidir quem vai ser o próximo presidente dos EUA. Seria um primeiro passo no raciocínio que levaria fatalmente à conclusão de que é demasiado arriscado deixar o povo escolher o presidente. Ainda bem que o ódio a Trump teve o efeito secundário de fazer algumas boas almas acordarem para os riscos das redes sociais ou para a malignidade da Rússia de Putin. Mas valerá a pena, só para deslegitimar Trump, desvalorizar também a democracia?

A razão para a expulsão de diplomatas russos

  por estatuadesal

(Por Carlos Matos Gomes, 26/03/2018)

militares

A derrota dos Estados Unidos e da Grâ Bretanha na Siria são a razão para a patética "guerra" de expulsão de diplomatas russos da Grã-Bretaha, dos Estados Unidos e dos seus satélites aliados na guerra perdida para fazer da Síria um Iraque a saque e base de apoio da coligação contra o Irão.

A história da morte dos agentes duplos em Londres é uma historieta para crianças e idiotizados.

A expulsão de diplomatas russos de Inglaterra a pretexto de uma alegada e nunca provada ação de envenenamento de um alegado agente duplo - sem qualquer prova - é um fellatio que a senhora May faz aos americanos como resultado da derrota da dita "coligação" na Síria. 

Os Estados Unidos (animados pela Inglaterra da May) respondem assim à derrota da sua manobra de desestabilização e ocupação da Síria. É disso que se trata.

A estratégia dos Estados Unidos de ocupar a Síria e de, a partir dali, construir uma base para o ataque ao Irão e ali instituir um regime fantoche e corrupto para vender o espaço para construção de oleodutos falhou redondamente.

A intervenção da Rússia em apoio do governo Sírio, a aliança da Rússia com a Turquia, a abertura de um porto no Mediterrâneo à China deixou os americanos e os seus agentes locais, Israel em estado de choque. O Médio Oriente deixou de ser uma coutada americo-israelita, como foi desde a II Guerra Mundial.

Por outro lado os americanos são obrigados a tratar a Coreia do Norte como um parceiro respeitável. Uma nova moeda está a surgir como alternativa ao dólar nos negócios internacionais.

Trump é uma figura desacreditada internamente, como Theresa May em Inglaterra com o Brexit. Nestas circunstâncias, arranjar um inimigo externo é a solução clássica.

É na palhaçada em que estamos. Esta palhaçada tem tudo para correr mal. Nós, os cidadãos do mundo desta parte do mundo estamos, mais uma vez, a ser arrastados para um jogo muito perigoso, comandados por tipos e tipas sem escrúpulos, capazes de tudo.

A Revista Militar do Exército dos Estados Unidos, uma fonte credível e que reflete o pensamento dos militares americanos reconhece a derrota (Ver aqui). Já o tinha feito anteriormente, a propósito do Vietname.

segunda-feira, 26 de março de 2018

Incêndios. Rio foi pela primeira vez ao terreno, mas não saiu de salas fechadas

26/3/2018, 18:49

Rio foi a um concelho afetado pelos fogos com uma grande comitiva. Demorou-se cerca de 2 horas. De sala em sala, ouviu associações e bombeiros, e prometeu pressão. Mas não pôs o pé na terra.



JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

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“É vital virmos ao terreno para compreender o que está escrito nos relatórios. Constatámos aqui o que já sabíamos, que o problema dos fogos tem a ver com falta de ordenamento, falta de fiscalização e com o completo falhanço da Proteção Civil”. Foi assim que Rui Rio se dirigiu aos jornalistas que esta segunda-feira o esperavam à porta da biblioteca municipal de Arganil, onde esteve mais de uma hora reunido com representantes de associações de apoio às vítimas dos incêndios.

Apareceu rodeado de gente, desde deputados e deputadas (“cerca de 16 ou 17”), ao líder parlamentar, Fernando Negrão, passando pelo presidente da câmara de Arganil (do PSD). E apareceu com um pin na lapela. Não um pin da bandeira de Portugal como o que Passos Coelho usava quando era primeiro-ministro e quando deixou de ser, mas um pin com o logótipo de uma das associações — a MAAVIM (Movimento Associativo de Apoio às Vítimas dos Incêndios de Midões).

A ideia era essa: “Ir ao terreno” pela primeira vez desde que tomou posse como presidente do partido. “Parece que [Rui Rio] vai começar a fazer oposição, vai visitar as zonas afetadas pelos fogos. Teve algumas falhas, mas está a dar alguns sinais de querer ultrapassá-las”, dizia este domingo à noite o ex-presidente do PSD Luís Marques Mendes no seu habitual espaço de comentário televisivo. Uma semana depois de ter sido divulgado o relatório da comissão técnica independente sobre os incêndios de outubro na zona centro, Rui Rio foi de facto com um grupo de deputados do PSD, liderados por Fernando Negrão, “ao terreno”. Mas não saiu de dentro de salas: primeiro, a sala da biblioteca municipal, onde se reuniu à porta fechada com representantes das associações das vítimas da zona centro e com representantes das associações de produtores florestais. Depois uma sala de aspeto solene, com uma mesa ao centro e cadeiras à volta para os deputados, no quartel dos bombeiros voluntários de Arganil. E a seguir, uma breve visita ao andar de baixo do quartel, onde estavam as velhas e obsoletas carrinhas de bombeiros.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Entre a sala da biblioteca e a sala dos bombeiros não era preciso percorrer nem 100 metros. Foi o que Rui Rio (e a comitiva do PSD) fez, sem encontrar “ninguém” pelo caminho. Ou seja, além dos representantes dos bombeiros e das associações, Rio não contactou com mais nenhuma pessoa: nem com bombeiros propriamente ditos, à exceção do comandante, nem com vítimas propriamente ditas, à exceção dos seus representantes. E não é que tenha sido por falta de convite.

Nuno Pereira pertence ao Movimento Associativo de Apoio às Vítimas dos Incêndios de Midões e esteve presente na reunião com Rui Rio na biblioteca municipal. Ao Observador, diz que teve oportunidade de dizer ao presidente do PSD que “ir ao terreno não é ficar em salas” e que lhe sugeriu mesmo ir à aldeia de Benfeita, Arganil, para ver o estado em que as pessoas que perderam casas e terrenos, entre portugueses e estrangeiros, vivem depois dos incêndios. Rui Rio terá mostrado interesse e até “perguntou onde era”. Nuno Pereira respondeu que era perto, ficava “a 20 minutos” dali, mas a sugestão não passou disso mesmo, de uma sugestão. A sugestão, de resto, já tinha sido feita num email enviado ao gabinete do PSD, quando lhe foi feito o convite para participar na reunião com Rui Rio, mostrou Nuno Pereira ao Observador — mas nessa altura não obteve resposta.

“Se houvesse aqui um milhão de votos…”, o Governo não falhava

“O dr. Rui Rio ouviu tudo o que tínhamos para dizer, ponto por ponto, mostrou interesse, mas a maior parte dos deputados, tirando os que são aqui do distrito e já cá tinham vindo várias vezes, não sabia do que é que estávamos a falar”, contam ao Observador Nuno Pereira e Mário Lopes, este último lesado dos incêndios de outubro com prejuízos agrícolas na ordem dos 2.700 euros. “Disse-nos que ia fazer chegar a quem de direito as nossas preocupações e garantiu que podíamos contar com ele para isso, mas também disse uma coisa engraçada: que se aqui houvesse um milhão de votos, isto não era assim”, continua Nuno Pereira, criticando a forma como o atual Governo está a conduzir o processo de apoio e indemnização às vítimas dos fogos trágicos de outubro.

O problema maior, diz, é a burocracia e os problemas de comunicação entre as várias entidades do Estado e as próprias vítimas. Pegando no exemplo de Mário Lopes, ali presente, Nuno Pereira e o pai, Fernando Tavares, presidente do Movimento Associativo de Apoio às Vítimas dos Incêndios de Midões (MAAVIM, o tal cujo logótipo estava pregado na lapela de Rui Rio) resumiram ao Observador as queixas que fizeram ao presidente “do maior partido da oposição”: centenas de pessoas inscreveram-se na plataforma da Direção Geral de Agricultura para verem os seus prejuízos avaliados e para, posteriormente, receberem indemnização, mas estão a ver a sua inscrição cancelada por ter sido feita antes de o Governo publicar a portaria oficial. Ou seja, pensando que já tinham preenchido tudo o que era preciso, deixaram o prazo escapar.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Temos aqui [num dossiê] centenas de casos destes, em que as pessoas estão a ver o apoio negado por não terem respeitado o prazo, apesar de terem preenchido os formulários. E quando pedimos uma explicação, o Ministério da Agricultura passa para o secretário de Estado, que passa para a Direção Regional De Agricultura e Pescas do Centro (DRAPC), que diz que não pode fazer nada”, relata Fernando Tavares ao Observador depois de terminada a visita do líder do PSD ao quartel de bombeiros voluntários de Arganil — e depois de ter entregue esse mesmo dossiê a Rui Rio.

A pressão de Rio. Oposição não pode “fazer”, só pode “fazer com que o país faça”

Da reunião, saiu uma promessa: o PSD vai “fazer o que a oposição pode fazer”. E o que é que a oposição pode fazer? Fazer, fazer não pode fazer nada, apenas “pressão” para que seja feita alguma coisa, disse Rui Rio. Questionado pelos jornalistas sobre como é que se pode materializar esse tipo de pressão, Rio respondeu que seria nas duas frentes: “No terreno e no Parlamento, nomeadamente com audições”. “Estamos a fazer o que a oposição pode fazer”, diria. Minutos depois, na sede dos Bombeiros Voluntários de Arganil diria a mesma coisa de outra maneira: “Espero contribuir para fazer a pressão adequada sobre as entidades responsáveis. Como oposição não nos compete o papel de fazer, mas compete-nos fazer tudo por tudo para que o país faça”.

Certo é que, tanto do lado das associações de apoio às vítimas, como da parte do comandante dos bombeiros, Rio recebeu várias sugestões para o problema da prevenção e combate aos fogos. O presidente da direção dos bombeiros argumentou que o “emaranhado de leis não conduz a lado nenhum” e pediu medidas concretas de prevenção estrutural e de planeamento florestal (que deve ser feito ao nível intermunicipal), nomeadamente com a criação de faixas de segurança à volta das povoações.

Já o comandante dos bombeiros, Nuno Costa, pediu profissionalização dos bombeiros, incentivos ao voluntariado e mais investimento no reequipamento dos quartéis. “Estivemos sozinhos com 9 veículos no dia 15 de outubro, não abandonámos as nossas populações, mas simplesmente não conseguimos chegar a todas elas”, disse Nuno Costa, contando a sua experiência no dia mais grave de incêndios de 2017. “Nos dias 15, 16 e 17 de outubro ninguém veio ver se os bombeiros de Arganil estavam vivos ou mortos, não houve nem um telefonema de conforto. Senti-me abandonado enquanto comandante”, disse.

Rio ouviu, concordou, prometeu “pressão”, e pediu uma estratégia ao Governo. “O apoio às vítimas não tem estado a correr como devia. As pessoas estão com dificuldades e os empresários não conseguem recuperar. Se já tínhamos uma economia débil aqui, com a desertificação, agora ainda está mais débil: é um efeito bola de neve”, disse aos jornalistas no final da primeira reunião, afirmando que o Governo tem de ter “uma estratégia própria para fiscalizar os apoios”, tem de “eliminar o excesso de burocracia” e “pôr a Proteção Civil a funcionar”.

O líder do PSD ouviu mais do que falou, dentro de portas, e cá fora, surgiu com alguns exemplos da “desorganização completa” que se verificou nos dias 15 e 16 de outubro, onde a tragédia dos fogos atingiu o seu pico: desde bocas de incêndio que têm dimensão diferente da própria mangueira, e, por isso, não funcionam, a centros de saúde que, por não terem energia, não puderam receber os feridos.

JOÃO PORFÍRIO/OBSERVADOR

Questionado sobre se as falhas deviam ser atribuídas exclusivamente ao executivo de António Costa, Rio não foi tão duro. “Não podemos dizer que a responsabilidade foi só naquele dia, naquele momento e naquele Governo que estava”. Mas, sim, num momento de tragédia, a primeira responsabilidade deve ser atribuída a quem tutela a Proteção Civil e a “quem alterou” os seus quadros “quando tomou posse”. “Isso em nada contribuiu para maior eficácia, antes pelo contrário”, disse, referindo-se às mudanças nos quadros da Proteção Civil feitas pelo Governo socialista pouco antes do verão negro.

Rio chegou a Arganil pouco depois das 11h. Saiu do carro com Maló de Abreu, membro da direção nacional do PSD e natural de Coimbra, e no local combinado já o esperavam cerca de 16 ou 17 deputados, incluindo o líder parlamentar Fernando Negrão e nomes como Pedro Alves, Margarida Mano, Rubina Berardo, António Topa, Maurício Marques, Cristóvão Norte, Duarte Marques ou Carlos Peixoto. Às 12h35estava a sair da biblioteca onde decorreu a primeira reunião, e às 13h25já estava a entrar no carro para seguir para Lisboa. “Não querem vir ali à Benfeita ver o estado em que está?”, perguntavam a quem os quisesse ouvir os membros do Movimento Associativo de Apoio às Vítimas de Midões enquanto a comitiva do PSD desmobilizava, dividindo-se nos vários carros para irem almoçar.

Quando Sá Carneiro expulsou diplomatas russos de Portugal por causa de uma cassete explosiva

26 Março 2018

Miguel Pinheiro

Portugal acaba de recusar expulsar diplomatas russos. Em 1980, Sá Carneiro fez o contrário: declarou quatro espiões "persona non grata" e iniciou a sua "guerra fria privada" contra a União Soviética.

A Guerra Fria privada de Sá Carneiro contra a União Soviética

  1. A gravação clandestina do discurso do embaixador russo contra a AD
  2. Um gravador colado no tampo do balcão a escutar os militares
  3. “Eu não sou o sobrinho da tia da comadre para andar a contar o que A disse a B”

O Governo português não está entre os 23 países que já mandaram expulsar diplomatas russos, em solidariedade com o Governo britânico de Theresa May na sequência do caso do envenenamento do ex-espião Serguei Skripal. Portugal limitou-se a dizer que tomava “boa nota das decisões” anunciadas por todo o mundo, numa posição que está já a ser alvo de várias críticas.

Em 1980, Francisco Sá Carneiro tomou uma decisão diferente — muito diferente. Na chefia do Governo maioritário da AD, o primeiro-ministro quis reduzir o peso soviético que existia em Portugal através do PCP e colocou o seu amigo e assessor militar, Carlos Azeredo, em contactos ultrasecretos e cuidadosos com a CIA. Tudo acabou com uma cassete com gravações explosivas, escondida do Presidente Ramalho Eanes e do Conselho da Revolução, guardada num armário-forte — e que valeu a expulsão de quatro diplomatas-espiões.

Os detalhes deste episódio estão contados no 13.º capítulo da biografia Sá Carneiro, escrita por Miguel Pinheiro (ed. Esfera dos Livros). Leia os excertos mais relevantes.

A Guerra Fria privada de Sá Carneiro contra a União Soviética

A mãe de Sá Carneiro assistiu pela televisão à tomada de posse do governo, a 3 de Janeiro de 1980. Quando viu as primeiras imagens, «sentiu o coração mais apertado» ao ver o filho e vários outros ministros de luto por causa do sismo que ocorrera dois dias antes nos Açores. Mais tarde, desabafaria:

– Todos aqueles rapazes de gravata preta… Fez-me tanta impressão, não pude deixar de considerar um mau presságio…

O simbolismo não impressionou o novo primeiro-ministro. Ele estava mais preocupado em enviar outros sinais: quis mostrar de imediato que a política portuguesa tinha mudado radicalmente. Durante toda a cerimónia, nunca cumprimentou a sua antecessora. E, no seu primeiro Conselho de Ministros, horas depois, decidiu suspender 67 diplomas publicados por Maria de Lurdes Pintasilgo depois da data das eleições, num período onde tinha perdido a pouca legitimidade que ainda lhe restava para legislar. Havia ainda outra surpresa: o governo pretendia substituir Pintasilgo no seu cargo de embaixadora de Portugal na UNESCO. Era um alvo que fazia todo o sentido: durante os últimos meses, a anterior primeira-ministra fizera questão de se apresentar ao país como a prova de que o socialismo utópico estava pronto a regressar ao poder.

Decididamente, o governo da AD não queria ter nada a ver com o socialismo – utópico ou real. Para mostrar isso mesmo, decidiu começar de imediato a sua «guerra fria» privada contra a União Soviética.

Decididamente, o governo da AD não queria ter nada a ver com o socialismo – utópico ou real. Para mostrar isso mesmo, decidiu começar de imediato a sua «guerra fria» privada contra a União Soviética. Logo no dia 7 de Janeiro, informou sobre o que se ia passar Gonçalo Ribeiro Telles (do PPM), Medeiros Ferreira (dos «reformadores»), Mário Soares (líder da oposição), Alberto João Jardim (presidente do Governo Regional da Madeira) e Mota Amaral (presidente do Governo Regional dos Açores). Depois, ordenou que se convocasse ao Ministério dos Negócios Estrangeiros o embaixador da União Soviética em Portugal, Arnold Kalinin, para lhe ser entregue uma nota oficiosa onde o governo apresentava «o seu mais vigoroso protesto» contra a invasão do Afeganistão por tropas de Moscovo. Ao mesmo tempo, foi chamado a Lisboa, para consultas, o embaixador português na União Soviética.

Seguiram-se muitas outras atitudes de desafio. Ainda em Janeiro, o Conselho de Ministros decidiu que ficavam «afectadas, até novo exame do assunto, as visitas e contactos oficiais de carácter político entre Portugal e a União Soviética», denunciou o convénio de cooperação cultural e científica entre os dois países, congelou a assinatura de um acordo diplomático e ameaçou suspender uma visita que Andrei Gromiko, ministro dos Negócios Estrangeiros da URSS, faria a Lisboa. Nesse mesmo mês, Sá Carneiro enviou um telegrama pessoal a Andrei Sakharov, o dissidente soviético que acabara de ser detido em regime de residência fixa, a manifestar-lhe a sua «profunda estima», «solidariedade» e «admiração». Em Fevereiro, o governo recusou atribuir vistos de entrada em Portugal a quarenta turistas soviéticos. Em Março, fez o mesmo a vários jornalistas russos. E em Abril restringiu a entrada de cidadãos da RDA. Em Maio, repetiu a recusa de vistos a cidadãos da URSS.

Sá Carneiro enviou um telegrama pessoal a Andrei Sakharov, o dissidente soviético que acabara de ser detido em regime de residência fixa, a manifestar-lhe a sua «profunda estima», «solidariedade» e «admiração». Em Fevereiro, o governo recusou atribuir vistos de entrada em Portugal a quarenta turistas soviéticos. Em Março, fez o mesmo a vários jornalistas russos.

Por causa destas atitudes, parte da oposição via Sá Carneiro como «um lacaio servil do Sr. Carter e dos Estados Unidos». E o presidente da República não percebia porque é que Portugal fazia questão de ser o país europeu a reagir mais rapidamente a todas as tentativas expansionistas da União Soviética. Havia duas razões para isso. Uma era política: numa entrevista que deu em Fevereiro à televisão espanhola, Sá Carneiro explicou que pretendia reduzir o «peso excessivo» que os soviéticos tinham em Portugal através do PCP. A outra era ideológica: o primeiro-ministro acreditava que os países comunistas pretendiam dominar a Europa e temia que a defesa do «neutralismo» por parte de alguns países ocidentais levasse à derrota das democracias. Um dia, falando dessa ameaça com o amigo António Maria Pereira, disse-lhe, com um sorriso de desânimo:

– Nesse caso, só nos restará, daqui a uns anos, quando a Europa estiver sovietizada, emigrar para os Estados Unidos. Se nos deixarem…

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A gravação clandestina do discurso do embaixador russo contra a AD

Antes de isso acontecer, porém, Sá Carneiro estava disposto a dar luta. Em Agosto de 1980, o pretexto ideal para isso entrou no gabinete do primeiro-ministro, trazido pelas mãos de Carlos Azeredo, seu assessor militar e amigo de infância. Entre outras funções, Azeredo tinha por missão manter contactos com os vários serviços de informações ocidentais a actuar em Portugal. Falava regularmente com ingleses e franceses, mas era o responsável pela CIA em Lisboa quem lhe fornecia, de forma discreta, os segredos mais relevantes. Sá Carneiro tinha-lhe recomendado «cuidado» ao lidar com os americanos – para evitar escutas, Azeredo e o espião da CIA só trocavam informações sensíveis em lugares isolados ou quando estavam a andar de carro entre Lisboa e Cascais.

Numa dessas viagens, o americano da CIA entregou dois documentos explosivos ao assessor militar de Sá Carneiro. O primeiro era uma cassete gravada de forma clandestina durante uma sessão organizada no Teatro São Luiz pela Associação de Amizade entre Portugal e a URSS – na fita, ouvia-se o embaixador russo a discursar e a criticar duramente a política externa da AD.

Numa dessas viagens, o americano entregou dois documentos explosivos ao assessor militar. O primeiro era uma cassete gravada de forma clandestina durante uma sessão organizada no Teatro São Luiz pela Associação de Amizade entre Portugal e a URSS – na fita, ouvia-se o embaixador russo a discursar e a criticar duramente a política externa da AD. O segundo documento era uma lista que ocupava meia folha A4 com cerca de dez nomes de espiões russos a actuar em Portugal a partir da missão diplomática soviética – um era do GRU, o serviço de informações militares, e os restantes do KGB.

Carlos Azeredo mostrou tudo a Sá Carneiro. Analisaram a lista e ouviram juntos a cassete. No final, o assessor militar defendeu que o governo deveria expulsar imediatamente Kalinin do país. Sá Carneiro pensou durante uns segundos e decidiu que, para já, bastaria fazer isso com os quatro espiões mais importantes. E explicou que esta opção era um cálculo político:

– Quanto a Kalinin, Carlos, esse também há-de ir embora como persona non grata, mas quando for mais oportuno e me der mais dividendos.

No final da reunião, pediu a Azeredo que guardasse os documentos num local seguro: foram colocados num armário-forte da Presidência do Conselho de Ministros.

Sá Carneiro agiu em absoluto segredo. Da lista inicial escolheu quatro nomes para servirem de exemplo: o capitão-de-fragata Vladimir V. Koniaev, formalmente adjunto do adido naval da embaixada mas na verdade espião do GRU; e Albert A. Matveev, ministro-conselheiro e número dois da embaixada, Alexandre S. Koulaguine, terceiro-secretário, e Youri A. Semenitchev, conselheiro da embaixada, todos do KGB, sendo este último o seu principal responsável.

O primeiro-ministro chamou depois Freitas do Amaral ao seu gabinete e mostrou-lhe o papel:

– Recebi de boa fonte uma lista de indivíduos do KGB e do GRU em Portugal. Estes quatro são os mais importantes e propunha-lhe que os declarássemos persona non grata e os expulsássemos.

O assunto foi a Conselho de Ministros a 20 de Agosto e, invocando a Convenção de Viena, o governo decidiu-se pela expulsão, por «intromissão nos assuntos internos portugueses». Os diplomatas tinham cinco dias úteis para fazerem as malas e abandonarem Lisboa. A 26, antes do fim do prazo, foram levados pelo embaixador soviético ao aeroporto da Portela e embarcaram num voo da Aeroflot. Era o fim do processo a que Sá Carneiro chamou «Watergate vermelho».

Não apresentou provas concretas ao vice-primeiro-ministro, que acumulava com a pasta dos Negócios Estrangeiros, mas assegurou-lhe que as actividades ilícitas daqueles espiões eram graves: estavam envolvidos em acções de agitação e propaganda nos distritos de Évora e de Beja, tentando boicotar a Reforma Agrária; serviam de intermediários para o financiamento soviético ao PCP e aos sindicatos da CGTP; e geriam um sistema de escutas telefónicas a embaixadas ocidentais.

O assunto foi a Conselho de Ministros a 20 de Agosto e, invocando a Convenção de Viena, o governo decidiu-se pela expulsão, por «intromissão nos assuntos internos portugueses». Os diplomatas tinham cinco dias úteis para fazerem as malas e abandonarem Lisboa. A 26, antes do fim do prazo, foram levados pelo embaixador soviético ao aeroporto da Portela e embarcaram num voo da Aeroflot. Era o fim do processo a que Sá Carneiro chamou «Watergate vermelho».

A expulsão de diplomatas soviéticos na manchete do Diário de Lisboa de 21 de Agosto de 1980 (Fundação Mário Soares)

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Um gravador colado no tampo do balcão a escutar os militares

No dia em que foi informado, no Ministério dos Negócios Estrangeiros, da decisão de expulsão dos quatro espiões, o embaixador Kalinin perguntou em tom de desafio ao chefe de Protocolo do Palácio das Necessidades se o presidente da República tinha sido consultado sobre a matéria. Isto só mostrava que o diplomata soviético estava bem informado. De facto, o governo tentou desde o início conduzir a política externa ignorando Ramalho Eanes. De resto, ele só foi avisado sobre o «Watergate vermelho» meia hora antes de o escândalo se tornar público.

O desconforto de Eanes era evidente. Queixou-se ao Conselho da Revolução, órgão a que presidia, de que «este assunto não lhe fora sequer dado a conhecer antes da tomada de decisão por parte do governo». Não era uma situação nova. Logo a 30 de Janeiro, o presidente tinha revelado aos conselheiros as suas «preocupações» com as mudanças introduzidas na diplomacia portuguesa.

O desconforto de Eanes era evidente. Queixou-se ao Conselho da Revolução, órgão a que presidia, de que «este assunto não lhe fora sequer dado a conhecer antes da tomada de decisão por parte do governo». Não era uma situação nova. Logo a 30 de Janeiro, o presidente tinha revelado aos conselheiros as suas «preocupações» com as mudanças introduzidas na diplomacia portuguesa. E um mês depois, a 27 de Fevereiro, promoveu uma discussão alargada sobre o tema.

O governo de Sá Carneiro tentou desde o início conduzir a política externa ignorando o presidente Ramalho Eanes

Falou-se na «excessiva autoconfiança», no «triunfalismo», na «arrogância» e na «agressividade» do governo ao tomar decisões contra a União Soviética e na «deselegância» com que, ao fazê-lo, menorizava o presidente. Um dos conselheiros admitiu que, no limite, a única forma de evitar uma «crise» entre Belém e São Bento seria demitindo o governo e convocando eleições legislativas antecipadas. Em caso de nova vitória da AD, o presidente deveria renunciar e recandidatar-se.

Garcia dos Santos, que acumulava o lugar no Conselho da Revolução com o cargo de chefe da Casa Militar do presidente da República, preferiu evitar o improviso e levou para a discussão um documento onde analisava o problema de forma extensa. Era suposto ser uma precaução, para evitar falar de mais, mas acabou por se revelar uma imprudência, uma vez que deixou um rasto de papel.

Nesse texto, afirmava que o executivo da AD tinha «fracas expectativas de estabilidade e eficácia» e defendia que as «grandes linhas» da diplomacia deviam ser protegidas das oscilações de governo. Por isso, achava que Eanes devia ter uma maior intervenção na política externa. Mais: se pressentisse uma «ruptura definitiva» com o governo, tinha obrigação de dirigir uma mensagem aos deputados a exigir que o parlamento fiscalizasse a acção do executivo.

Esta foi a parte sensata da discussão. Seguiu-se o delírio. No final da reunião, num corredor do edifício, o conselheiro Sousa e Castro terá sido ouvido a falar sobre «golpes». E, no dia seguinte, um grupo que incluiria, além dele, Vasco Lourenço, Melo Antunes, Vítor Alves, Franco Charais, Almada Contreiras e outros oficiais terá continuado o debate no bar do edifício do Conselho da Revolução. Aí, entusiasmados com as consequências da greve dos transportes decretada para 4 de Março, terão falado da hipótese extrema de derrube do governo através de um pronunciamento militar, que levaria ao afastamento dos chefes do Estado-Maior dos três ramos das Forças Armadas. O plano contabilizaria já o apoio dos Fuzileiros e do Regimento de Artilharia de Leiria. Num momento de exaltação, um dos conselheiros terá mesmo chamado «nabo» a Ramalho Eanes, pela sua incapacidade em conter Sá Carneiro.

Se tivessem olhado para baixo, talvez optassem por falar de forma mais prudente: com o objectivo de obter provas sobre o seu comportamento subversivo, o coronel de Infantaria António Vinhas tinha usado fita gomada para colar um pequeno gravador sob o tampo do balcão.

A cassete comprometedora e o documento apresentado por Garcia dos Santos chegaram rapidamente ao gabinete de Sá Carneiro. Numa manhã, chamou Carlos Azeredo e mostrou-lhe tudo. O assessor militar riu-se:

– O melhor é não ligares importância, porque o Conselho da Revolução só dispõe de canetas e de secretárias de duas e quatro pernas, completamente inofensivas.

Sá Carneiro não encarou o assunto com tanta displicência:

– É preciso fazer alguma coisa. Uma democracia que não se defende vigorosamente não tem o direito de sobreviver!

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“Eu não sou o sobrinho da tia da comadre para andar a contar o que A disse a B”

Carlos Azeredo falou com o chefe do Estado-Maior do Exército, que também pertencia ao Conselho da Revolução, para perceber se a história era verdadeira. O general Pedro Cardoso não só confirmou tudo, como ainda deu mais detalhes. Perante isso, Sá Carneiro promoveu o escândalo. Juntou todas as informações, entregou-as a Conceição Monteiro e pediu-lhe que as passasse a vários jornalistas, entre eles José Miguel Júdice.

Sá Carneiro promoveu o escândalo. Juntou todas as informações, entregou-as a Conceição Monteiro e pediu-lhe que as passasse a vários jornalistas, entre eles José Miguel Júdice. A 4 de Março, as notícias dos jornais O Dia e A Tarde – e logo depois de O Diabo – fizeram com que o país político acordasse em fúria.

A 4 de Março, as notícias dos jornais O Dia e A Tarde – e logo depois de O Diabo – fizeram com que o país político acordasse em fúria. Num comunicado publicado depois de uma reunião extraordinária do Conselho de Ministros, Sá Carneiro, aproveitando a divulgação do seu dossiê, falou contra uma «estratégia de desestabilização das instituições democráticas» e denunciou a «estranha conjugação» entre «dirigentes oposicionistas e alguns membros do Conselho da Revolução». Ainda de manhã, o conselheiro Vasco Lourenço afirmou que os artigos eram «uma pura invenção do princípio ao fim».

Eanes não foi tão longe – sabia que estava numa posição frágil e podia ser facilmente desmentido. Por isso, distribuiu um comunicado onde, com prudência, defendia que as notícias eram «falsas, embora aproveitassem aspectos verídicos de factos sem significado especial».

Em privado, não precisou de ser tão contido. Convocou Carlos Azeredo para a habitual reunião com os chefes do Estado-Maior e juntou-o na mesma sala com Pedro Cardoso, do Exército, Lemos Ferreira, da Força Aérea, Sousa Leitão, da Armada, e ainda Altino de Magalhães, vice-chefe do Estado-Maior General das Forças Armadas, e Artur Beirão, das Informações Militares. Exigiu que Azeredo lhe explicasse de que forma é que o primeiro-ministro tinha obtido informações confidenciais sobre as reuniões do Conselho da Revolução. Sem grandes detalhes, o assessor militar de Sá Carneiro disse que uma parte da informação, em papel e em fita magnética, tinha sido arranjada directamente pelo primeiro-ministro; e que a outra parte fora recebida por si em confidência.

Perto do descontrolo, o presidente intimou-o a revelar a sua fonte. Sem resultado:

– Eu não sou o sobrinho da tia da comadre para andar a contar o que A disse a B e B disse a C. Fui eu que informei o primeiro-ministro e estou pronto a assumir as minhas responsabilidades e não tenho mais nada a declarar.

Perante este impasse, o general Pedro Cardoso pediu a palavra e explicou que tinha sido ele a confirmar os pormenores da reunião do Conselho da Revolução a Carlos Azeredo. Eanes gritou contra aquela demonstração de deslealdade e, nos dias seguintes, tentou pressionar Sá Carneiro. O caso da discussão supostamente captada pelo gravador clandestino foi arrumado com a garantia de que ela não tinha sequer existido. Já as informações sobre a reunião do Conselho da Revolução eram mais graves. A 7 de Março, na habitual reunião de trabalho entre o presidente e o primeiro-ministro, depois de insinuar que o governo poderia ser o instigador das notícias, exigiu que o executivo pusesse a Polícia Judiciária a investigar de onde tinha partido a fuga de informação.

Sá Carneiro recusou e Eanes insistiu através de uma carta formal, que entregou no fim da reunião. A recusa manteve-se. O presidente podia espernear à vontade, mas, para o primeiro-ministro, o caso estava encerrado. Já tinha conseguido o que queria com aquele escândalo: mostrara ao país que os militares não sabiam fazer política num regime democrático.

Sá Carneiro recusou e Eanes insistiu através de uma carta formal, que entregou no fim da reunião. A recusa manteve-se. O presidente podia espernear à vontade, mas, para o primeiro-ministro, o caso estava encerrado. Já tinha conseguido o que queria com aquele escândalo: mostrara ao país que os militares não sabiam fazer política num regime democrático. Era mais uma prova de que, na revisão constitucional seguinte, o Conselho da Revolução devia ser varrido do regime.

Este episódio teve, porém, outra consequência: acabou com a pouca confiança política e pessoal que ainda havia entre Sá Carneiro e Eanes. Entre 7 e 28 de Março, os dois trocaram cinco longas cartas sobre o caso do «pronunciamento militar». Em todas, usando a subtileza das fórmulas protocolares, chamavam mentiroso um ao outro. O primeiro-ministro chegou a sugerir numa delas um novo método de diálogo que evitasse desmentidos mútuos: «Seria ele o de participarem nas nossas reuniões pessoas de confiança pessoal e política, como o chefe da sua Casa Civil e o meu chefe de gabinete, os quais poderiam elaborar uma breve acta.» Eanes recusou a proposta com uma frase humilhante para Sá Carneiro: «O que se ganharia em funcionalidade (…) seria quase certamente perdido em dignidade política.» (…)