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domingo, 29 de abril de 2018

A norte do paralelo nada de novo

Novo artigo em Aventar


por João Mendes

C

Foi com este abraço que Kim Jong-un e Moon-Jae-in selaram a amizade do momento. Passearam-se pela zona desmilitarizada, fizeram juras de amor e chegaram mesmo a dar as mãos. O mundo exultou, a fake imprensa atribuiu o momento histórico a Trump e a região respira de alívio. Alegadamente.

Quem não respira de alívio, e fica na exacta mesma situação em que se encontrava antes deste belo episódio de marketing político, é o povo norte-coreano. Lá, agora como antes, impera um regime totalitário. Não há liberdade, qualquer tipo de liberdade, não há condições de vida dignas para a maioria e a senhora que lê as notícias no canal do Estado é sempre a mesma. Ler mais deste artigo

sábado, 28 de abril de 2018

Os pensadores da Nova Esquerda: Eduardo Lourenço

28 Abril 2018

Carlos Maria Bobone

A propósito da publicação de "Tolos, Impostores e Incendiários", virámos o livro para dentro de casa. Como pensa a Nova Esquerda portuguesa? Este é o primeiro de uma série de cinco artigos.

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À lente aproximada dos dias comuns, o título ou é tolo ou malvado. De facto, o primeiro livro de Eduardo Lourenço, Heterodoxia I, já ultrapassou sozinho a idade da reforma, o que diz quanto baste da mocidade do autor. A novidade de Eduardo Lourenço, porém, pode ser tomada, não como uma provocação mesquinha, mas como um elogio. Eduardo Lourenço é novo porque o comparamos, não connosco, mas com os grandes espíritos da História.

Mais a mais, a ideia vem de outro lado. Acabou de sair pela Quetzalo livro Tolos, Impostores e Incendiários – Os pensadores da nova esquerda, de Roger Scruton. Nele, Scruton debate com os grandes figurões da esquerda contemporânea a uma luz que também podemos voltar para os pensadores portugueses.O pensamento pós-marxista não passou apenas por Sartre e Foucault, chegou também aos fundos da Europa: haverá mais, que também merecerão análise; mas entre todos, Eduardo Lourenço será com certeza dos mais importantes.

A esquerda de Eduardo Lourenço já não é a esquerda jacobina da Revolução Francesa ou da Comuna, nem um instantâneo da cultura soviética. A sua ideia de Heterodoxia, aliás, não podia ser mais clara em relação a isto. Apesar de escrever na revista Vértice, de acompanhar com interesse o neorrealismo e os movimentos de oposição ao Estado Novo, a ideia de Heterodoxia é já uma porta de saída da ortodoxia comunista, do sistema total de Marx e da sua dialética materialista.

“Tolos, Impostores e Incendiários: os pensadores da nova esquerda”, de Roger Scruton (Quetzal)

Nisto, Eduardo Lourenço acompanha as figuras que inspiraram Roger Scruton no seu livro sobre os pensadores da Nova Esquerda. Como Sartre, como Foucault ou como Zizek, Eduardo Lourenço mata o pai para o ressuscitar como irmão. Nunca deixa a esquerda, mas não abdica de lhe propor um código de conduta. A sua não é uma esquerda já construída, mas uma esquerda que ainda pode ser pensada e renovada.

Eduardo Lourenço, porém, tem uma particularidade que escapa a outros pensadores de esquerda. Diante das disputas titânicas de Sartre com Aron, ou da sanha que motivam Chomsky ou Zizek de cada vez que abrem a boca, Eduardo Lourenço foi mais vezes tomado como um pensador consensual do que propriamente como um pensador da Esquerda.

É certo que o seu feitio diplomático ajuda: vemos nas suas análises literárias que há poucos autores contemporâneos a quem Lourenço não dispense uma palavra simpática. Aliás, é vulgar vermos Eduardo Lourenço a alçar figuras de segunda a patamares filosóficos que eles dificilmente alcançariam sozinhos. É difícil dizer, por muito que gostemos de Ruben A. ou de Nuno Bragança, que a Torre de Barbela de um ou a prosa semi-experimental de outro não saem favorecidas da análise de Lourenço. Este espírito, porém, não justifica completamente a aceitação geral do seu pensamento.

Pouco depois de sair Heterodoxia II, Eduardo Lourenço viu-se obrigado, por interposta pessoa, a esclarecer o crítico Óscar Lopes: ele não era, como cria o crítico, um autor católico. Heterodoxias, aliás, podia ser quase tomado como uma forma de explicar porque é que não era católico. Este pequeno episódio não é apenas mais um relato para a biblioteca monumental de erros da crítica; é, acima de tudo, prova dos equívocos a que se pode prestar a obra de Eduardo Lourenço.

Dado o espectro de interesses de Eduardo Lourenço – cuja genealogia ainda está por fazer --, é normal que o seu pensamento seja apreciado em quase todas as frentes. Pode criticar o idealismo Absoluto, o Catolicismo, a Filosofia Portuguesa, o neorrealismo, o comunismo, mas reserva-lhes sempre uma pureza inicial teórica que guarda uma margem de apreço.

Lourenço, para já, tem um método de crítica que favorece a confusão. Enquanto apóstolo da “realidade situada”, é vulgar que a sua crítica a um fenómeno histórico se faça através da restauração de um purismo teórico. Isto é, um tradicionalista pode facilmente julgar Eduardo Lourenço um involuntário “mestre da contra-revolução”, como António Sardinha fazia com Teófilo Braga. Para Eduardo Lourenço, o tradicionalista só tem consciência de si quando os seus valores estão ausentes. Ora, esta ideia, presente na fórmula “a Aristocracia Histórica não era tradicionalista, mas a tradição mesma” pretende, antes de mais, criticar um movimento: a existência de tradicionalistas provaria a falência do Estado Novo como projecto tradicionalista. Claro que, o ensaio também poderia servir para um tradicionalista perceber como os seus valores estavam ameaçados, ou a que é que corresponderia um verdadeiro tradicionalismo teórico. Para Lourenço, porém, a teoria pura não serve ao Homem situado.

A crítica acaba, assim, por funcionar também como pára-raios contra os criticados. Já com os neorrealistas se segue o mesmo método: louva-se o interesse, restaura-se uma intenção inicial e explica-se de que modo é que não foi cumprida, de que modo é que, na realidade, não é verdadeira.

Ora, dado o espectro de interesses de Eduardo Lourenço – cuja genealogia ainda está por fazer –, é normal que o seu pensamento seja apreciado em quase todas as frentes. Pode criticar o idealismo Absoluto, o Catolicismo, a Filosofia Portuguesa, o neorrealismo, o comunismo, mas reserva-lhes sempre uma pureza inicial teórica que guarda uma margem de apreço. E se isto lhe granjeia admiradores em vários quadrantes, lestos a talhar nacos do seu pensamento, obnubila a compreensão daquele que é um dos seus traços principais: o traço de pensador de esquerda.

O espírito de heterodoxia

Eduardo Lourenço é um pensador de esquerda em vários aspectos, e muitos deles fragmentários (marca, aliás, que ele atribui à esquerda como a entende). Há, no entanto, algumas linhas principais que podem ajudar a perceber o pensamento de Eduardo Lourenço, e em que medida é que este pensamento se revela como próprio da esquerda.

A abertura de “Heterodoxia I”, de Eduardo Lourenço, publicado originalmente em 1949

Para começar pelo princípio, uma das linhas mestras é-nos dada pelo título do primeiro livro, que Lourenço retoma mais duas vezes. Heterodoxia, ou o espírito de Heterodoxia, é já de si um programa.

Para Eduardo Lourenço o espírito de Heterodoxia consiste, antes de mais, em recusar um caminho único. Ora, uma das coisas mais interessantes em Eduardo Lourenço é que ele próprio consegue perceber como podem ser fátuas ou perigosas afirmações como esta, que geram aplausos apaixonados desde que não exijam grandes trabalhos de raciocínio. Por isso, é ele próprio que põe obstáculos à sua ideia. A heterodoxia não significa o nihilismo, isto é, não recusa os caminhos. O nihilista julga que todos os caminhos estão errados, o céptico julga impossível saber se os caminhos estão errados, o heterodoxo simplesmente não sabe. Como é óbvio, a heterodoxia como método é igualmente céptica. Mesmo que não o diga, quem escolhe como método não aceitar nem recusar soluções fá-lo porque não acredita que  possa vir a saber que uma solução está certa; como diz o próprio Eduardo Lourenço, “a heterodoxia é a consciência da pluralidade histórica das ortodoxias”.

A heterodoxia parte do princípio de que há algo da verdade que nos está vedado, acha “que ninguém pode atingir adequadamente a Verdade, nem falhá-la completamente”

O problema, porém, está na possibilidade de haver reflexo vital neste nem/nem heterodoxo. Ponhamos, por exemplo, a questão do ateísmo. Que significa o agnóstico – aquele que representa o heterodoxo na querela de Deus, aquele que não escolhe acreditar nem deixa de o fazer? Significa que, a cada momento, terá de viver como se Deus existisse ou não existisse. A ortodoxia, no fundo, não significa mais do que definição. A própria ideia de recusar a ortodoxia já implica uma certeza, uma definição: o Homem vive como se não houvesse um único caminho, é esta a sua definição. O próprio Eduardo Lourenço admite que “a luta é sempre entre ortodoxias” e que as heterodoxias criam a sua própria ortodoxia. A definição é própria da razão, é própria do Homem.

Já Zizek, no seu recente “A Europa à deriva”, notou o espantoso elitismo da esquerda contemporânea. Ora, este elitismo já se revela na linguagem de Eduardo Lourenço no prólogo sobre o espírito de heterodoxia. A heterodoxia torna-se, de um método, num valor; além de não ser “fácil”, passa também a ser “o respeito”, a “humildade de espírito”, e isto em condições adversas.

Eduardo Lourenço admite-o, embora com matizes que lhe permitem dar um salto. Isto é, admite que a ortodoxia é própria do Homem, porque oferece paz e continuidade, o “desejo mais profundo do Homem”. Ora, colocar a ortodoxia como desejo e não necessidade permite dar o desejado salto. A ortodoxia é percebida como uma tendência e a heterodoxia o espírito que a contradiz. A heterodoxia “não é fácil”, é desinquietação e é contrária à tendência natural do Homem.

É desta fórmula, aliás, que ressumbram dois aspectos típicos da esquerda e contrários à sua genealogia. Em primeiro lugar, o repúdio por aquilo que é natural no Homem. Também o estruturalismo fala de estruturas reaccionárias ocultas de que o Homem tem de se libertar, também as forças da reacção no marxismo mais canónico são estranhamente persistentes, também no feminismo de Simone de Beauvoir o caminho é de desmontagem. A esquerda não é apenas herdeira de Rousseau, ou pelo menos interpreta muitas vezes o seu estado de Natureza num sentido ultra-estrito. O Homem como ele é, na concepção da nova esquerda a que se associa o espírito de heterodoxia, deve ser desconstruído.

Ora, daí surge que aqueles que o desconstruíram, que foram contra a sua natureza reaccionária, formam uma plêiade de eleitos. Já Zizek, no seu recente “A Europa à deriva”, notou o espantoso elitismo da esquerda contemporânea. Ora, este elitismo já se revela na linguagem de Eduardo Lourenço no prólogo sobre o espírito de heterodoxia. A heterodoxia torna-se, de um método, num valor; além de não ser “fácil”, passa também a ser “o respeito”, a “humildade de espírito”, e isto em condições adversas. Os heterodoxos não só atravessam um longo e duro caminho contra si próprios, como ainda são humildes e suportam os ortodoxos, aqueles que os desdizem. Não se trata apenas do discurso da vítima sofredora já denunciado por Girard; esta narração permite colocar os eleitos, ao mesmo tempo, entre os sofredores e os oprimidos, isto é, no lugar que a esquerda toma como seu.

Scruton, no seu livro sobre a nova esquerda, explica como o intelectual se foi transformando, pouco a pouco, de “voz do operário” no próprio operário. Ora, o discurso sobre o espírito de heterodoxia – que tem ramificações artísticas na arte marginal, nos escritores malditos… — é mais uma das etapas deste caminho.

Eduardo Lourenço

O caminho do heterodoxo é ao mesmo tempo um caminho especial e um caminho sofrido. A estrutura natural empurra o Homem para um lugar de que o heterodoxo, numa luta titânica do indivíduo contra algo maior e mais forte, consegue superar.

Não negaremos, decerto, a existência destas estruturas superiores. De Saussure a Barthes, já vários pensadores explicaram com suficiente consistência de que forma a linguagem molda o pensamento, ou de que forma a sociedade é importante para a formação de uma personalidade, mesmo que ela não tenha consciência disso. Este, no entanto, é mais um dos aspectos em que o pensamento da nova esquerda se podia aproximar daquele que professam os teóricos da direita tradicional. Não por acaso, tanto Bonald como De Maistre procuram a mesma analogia entre o comportamento social e o funcionamento da linguagem que é feita, anos depois, pelos grandes pensadores do estruturalismo. O que é curioso é que aquilo que os tradicionalistas vêem como um indicador de Verdade, Barthes e companhia vêem como um indicador de mentira.

Para De Maistre, a estrutura indica o caminho; para Barthes, como para Eduardo Lourenço, a estrutura é o grande opressor. A filosofia deixa-se contaminar por uma narrativa marxista sem fundamento. O que é que prova a maldade da estrutura senão o facto de se apresentar como superior. Barthes aplicou a fórmula – os fortes são a reacção, os fracos a revolução – e tornou a estrutura, arbitrariamente, um mal em si mesmo. Eduardo Lourenço também nunca justifica, filosoficamente, a maldade social; no entanto, a sua predilecção pela liberdade como valor supremo parece indicar o caminho. O homem heterodoxo é o Homem livre; se a estrutura condiciona, impede o Homem de ser livre, pelo que é vista como inimiga.

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Livre para não poder ser mais nada

No seu primeiro volume das heterodoxias, Eduardo Lourenço identifica plenamente heterodoxia com liberdade. Para ele, “heterodoxia não é senão a obrigação de suportar a liberdade humana”. É certo que mais tarde admitirá a possibilidade de um ortodoxo livre; a inversão, porém, nunca será feita: é impossível que um heterodoxo não seja livre. A heterodoxia identifica-se, assim, como liberdade. A liberdade é sempre situada. É, aliás, o obstáculo que cria a liberdade. Numa parábola curiosa, Eduardo Lourenço mostra bem a sua estranha concepção de liberdade. Imaginemos dois Homens que querem chegar de uma encruzilhada a uma cidade. Um deles sabe o caminho, o outro não. O Homem que sabe o caminho estuga o passo e chega à cidade sem hesitações. O outro erra, vagueia, perde-se, hesita. Em todas as tradições filosóficas, o homem livre seria o primeiro. Se a liberdade consistir em fazer o que se quiser, o Homem quer chegar à cidade, pelo que, tendo meios para isso, é livre se conseguir chegar à cidade. Se o que nos torna livres é fazer o que nos é próprio, também será este o Homem livre. É na cidade que o Homem está livre, o caminho só pode impedi-lo de ser livre, caso não consiga chegar à cidade.

Para Eduardo Lourenço, porém, o Homem livre é o que vagueia. É o não saber, o obstáculo, que o obriga a decidir, a escolher. Para lá de todos os afagos à ideia de resistência presentes nesta ideia – os resistentes são os Homens livres, aqueles que lutam por remover o obstáculo opressor – há também nesta posição um esquecimento curioso. Poderíamos considerar livre aquele que vagueia, sim, mas apenas se ele não tivesse objectivo, isto é, se não tivesse obstáculo. A liberdade, aqui, é vista como um fim em si mesma; é, como já em Voltaire, uma liberdade opressora. O objectivo, para Eduardo Lourenço, é uma ortodoxia. Querer alguma coisa tira-me a liberdade; esta, para ser vivida como tal, tem de ser exclusiva: querer alguma coisa é já contrário à ideia de liberdade. Como no projecto iluminista, os Homens são livres de serem livres, mas não de serem mais alguma coisa.

Diz Eduardo Lourenço que Portugal falhou a Reforma, a criação da físico-matemática e a filosofia cartesiana e que, por isso, ficou arredado da cultura Universal (a única cultura que o é verdadeiramente, por ser para cada um). Esta ideia será retomada no Labirinto da Saudade em que mais uma vez se explica que, por não termos contribuído enquanto indivíduos para a ciência, falhámos o seu espírito, o espírito crítico.

Eduardo Lourenço usa outras formulações um pouco mais canhestras. “Livre é aquele que não faz o que é contrário à consciência da sua vontade”, por exemplo, que não nega a ideia anterior mas, num espírito de Pilatos, permite recuperar o melhor dos dois mundos. Por um lado, percebe que o Homem que faz o que quer é apenas escravo da sua vontade; por outro, a formulação negativa aproxima-o do espírito da heterodoxia, do “não” que a resistência e a nova esquerda querem erigir como sistema. A liberdade não consiste em fazer alguma coisa, mas em não fazer. Como no espírito iluminista mais lúcido, a liberdade só pode ser céptica, negativa, não pode construir nenhum projecto.

Esta ideia de que a liberdade se encontra à margem dos grandes objectivos da História e do Homem é tão importante que a principal unidade do seu Heterodoxia I está, então, na maneira como as várias ortodoxias – encapotadas ou não – cerceiam a liberdade.

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Dialética: a fénix política

A cultura portuguesa serve de exemplo no caso mais óbvio. Diz Eduardo Lourenço que Portugal falhou a Reforma, a criação da físico-matemática e a filosofia cartesiana e que, por isso, ficou arredado da cultura Universal (a única cultura que o é verdadeiramente, por ser para cada um). Esta ideia será retomada no Labirinto da Saudade em que mais uma vez se explica que, por não termos contribuído enquanto indivíduos para a ciência, falhámos o seu espírito, o espírito crítico. Embora Eduardo Lourenço não reduza o espírito de heterodoxia a um mero espírito crítico (mas também não explica em que é que são diferentes), há semelhanças óbvias entre eles: o não aceitar o que é imposto, a procura constante ou a verificação pessoal, que em Portugal só são apanágio de figuras insuladas. Isto não só porque as instituições históricas refrearam o espírito cartesiano, mas também porque, como vem explicado mais uma vez no Labirinto da Saudade, há uma consciência da existência “milagrosa” de Portugal, que acaba por funcionar como escape para a responsabilização pessoal.

Não façamos caso da copiosa relação, apresentada por Domingos Maurício, de livros seiscentistas portugueses que já mencionam os avanços de Descartes; mais do que a verdade histórica, interessa a ideia que Eduardo Lourenço faz de cultura. O atraso português faz-se por oposição à cultura Europeia, que é a verdadeira cultura universal, “o esforço espiritual que se supera aprofundando-se”, e que tomou para limites de si própria os limites do Homem. Isto é importante não só porque a cultura não está definida positivamente – não é a cultura de Sartre ou Sertillanges, mas a “consciência da própria contradição” entre os pensamentos. A cultura europeia é, assim, o lugar da tolerância e o espelho do Homem heterodoxo. Como a Europa, “o Homem é uma realidade dividida. O respeito pela sua divisão é heterodoxia”.

É por isso que a heteronímia pessoana, a desfragmentação, aparece como a grande empreitada literária contemporânea. Pessoa teria percebido este ser ambíguo, contraditório, e a desfragmentação seria a forma de libertar todas as pulsões contrárias que nunca sobreviveriam numa unidade narrativa tradicional.

Diferentes edições de “O Labirinto da Saudade”

Lourenço não só louva este desfazer da unidade, como critica a prisão narrativa existente, tanto na filosofia marxista da História, como no seu aparente contrário – a dialética do idealismo absoluto, que continua a ser totalitário.

Eduardo Lourenço, a respeito da filosofia da história, não se podia distanciar mais do marxismo ortodoxo: de facto, como é que o Absoluto material se manifesta de forma racional criando uma narrativa, que é a forma própria do espírito? No entanto, não está muito longe dos ataques à razão perpetrados por Foucault (embora, fiel ao seu estilo diplomático, Lourenço só critique “um certo tipo de racionalismo”), ou a qualquer tipo de superestrutura que crie unidade.

A relação de Eduardo Lourenço com a dialética, porém, é uma relação feita de reservas e paixões. Se é verdade que a dialética à moda de Hegel é vista como um sistema totalitário, em que o confronto recupera elementos contraditórios dentro de um mesmo sistema, também é certo que Eduardo Lourenço vê na criação dialética uma forma de superar a concepção puramente negativa da heterodoxia. O surgimento do novo a partir do contrário torna o confronto democrático, não uma mera luta entre inimigos à espera que um soçobre, não uma luta entre verdades, mas a ideia de que os pontos de partida não são estanques, que do confronto surgirá uma nova solução, e desta nova solução surgirá um contrário e um novo confronto, que produzirão novas soluções, numa linha soluçante de progresso.

Mais uma vez, não há verdade no Homem, a sua verdadeira essência está no desinquietar-se constante, na desconstrução e no surgir de novo.

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A Esquerda e o mito da Origem

Esta maneira de olhar para o Homem é também a maneira de olhar para o social. Isto é claro quando Lourenço critica as imagens irrealistas que Portugal, ao longo da História, vai fazendo de si. Claro que uma imagem colectiva tem de ser unitária e, por isso, generalizante: corresponde a uma tendência, não a um absoluto. Lourenço, enquanto admite que todos os povos têm de criar uma imagem de si próprios, só parece admitir uma “imagem lúcida”, que significaria a consciencialização, a desmontagem, isto é, a imagem fragmentada, que na prática nenhuma imagem pode ser.

É interessante verificar a importância da razão de ser, da origem, no pensamento da Esquerda. Embora as monarquias tradicionais pudessem sugerir que a origem – origem divina do poder, origem dinástica, origens históricas da nação… -- fossem um tema mais ao gosto da direita, a verdade é que há uma recorrência espantosa à origem como legitimidade no pensamento da esquerda.

Segundo Eduardo Lourenço, a esta ficção unitária, típica do nacionalismo que idealiza o povo, poucas vezes escaparam os historiadores portugueses, que tratam a história portuguesa como separada do mundo, quase irreal. Num exercício psicanalítico, Eduardo Lourenço atribui este aspecto ao nascimento milagroso que, ao mesmo tempo que nos dá um estatuto quase profético, de escolhidos, dá-nos também a fraqueza de não termos razão de ser (um raciocínio típico da esquerda clássica, que só vê o fundamento para o poder ou para a existência numa legitimidade de origem, nunca na diuturnidade da existência).

É interessante verificar a importância da razão de ser, da origem, no pensamento da Esquerda. Embora as monarquias tradicionais pudessem sugerir que a origem – origem divina do poder, origem dinástica, origens históricas da nação… fossem um tema mais ao gosto da direita, a verdade é que há uma recorrência espantosa à origem como legitimidade no pensamento da esquerda.

Enquanto na direita de tradição maquiavélica – a direita da Realpolitik – a origem do poder pouco interessa, o que interessa é o facto de existir o poder, enquanto mesmo a direita tradicional do Integralismo ou da Action Française viu no positivismo uma justificação mais poderosa do poder do que em qualquer mito original, enquanto, para os juristas da Restauração Portuguesa, a origem era um entre muitos, e sem especial relevância, argumentos para a legitimidade brigantina, na esquerda o caso é diferente: de Rousseau à esquerda psicanalítica, da nova esquerda das comunidades associativas como redutos puros de defesa do Homem, a origem é o grande fundamento do poder. Não interessa que o povo erre – é ele a fonte do poder, é a sua única medida; não interessa o que o Homem quer ser – há debaixo da construção algo que ele verdadeiramente é, que está na sua origem e que se impõe ao Homem como verdade sobre si próprio.

A liberdade de Eduardo Lourenço padece também deste mal. Até pode ser o grande reduto do Homem, mas se tem como fito ser preservada, em prejuízo da vontade, então esta liberdade heterodoxa é bem opressiva.

Carlos Maria Bobone é licenciado em filosofia

A insustentável leveza dos filmes do senhor procurador

por estatuadesal

(Por Jorge Wemans, in Público, 28/04/2018)

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Só a impunidade soprada pelos ventos de populismo que assola a Europa pode explicar o que tenho ouvido e lido como defesa da “grande reportagem” da SIC construída com base nos filmes dos interrogatórios dos arguidos do processo Operação Marquês. Não encontro outra explicação. E o que vejo assusta-me.


Vamos por partes.

1. A tal “grande reportagem” que a SIC montou com a divulgação dos filmes dos interrogatórios tem zero de investigação própria e nada de factos novos. O seu roteiro segue o discurso da acusação e a dita reportagem não é mais do que a ilustração dos milhares de páginas em que aquela se deu a conhecer. Ou melhor dizendo: os milhares de páginas impressos como certificado de tudo quanto sobre o caso já tinha sido tornado público pela via de flagrantes e repetidos atropelos ao segredo de justiça.

A suposta reportagem da SIC, entre outros atropelos éticos que não vêm agora ao caso e que não têm que ver com o segredo de justiça, rebaixa-se ao hediondo de substituir o preceito deontológico de “ouvir todas as partes com interesses atendíveis na matéria” pelos filmes em que os arguidos respondiam ao interrogatório policial. Ou seja, para simular que respeitava aquele dever deontológico, a SIC “foi ouvir” os acusados defenderem-se das acusações por ela lidas e ilustradas a partir do texto da acusação através... do próprio interrogatório a que foram submetidos! Não me recordo de ter assistido, em democracia, a tão repugnante entrega do papel do jornalista a procuradores e juízes. Total confusão de papéis, completa mistura de planos e violação declarada dos deveres para com os acusados e para com o público. Não estou a falar de lei, estou a falar de deontologia jornalística.

Divulgar à exaustão e sob a capa de peça jornalística imagens captadas durante interrogatórios só pode resultar da procura de audiência a todo o custo, ou da vontade de incentivar o desejo de realizar justiça pelas próprias mãos.

2. Pior do que esta “grande reportagem” com guião e imagens extraídos dos processos realizados por quem conduziu a investigação foi o desagrado que ela provocou na atual procuradora-geral da República. “Desagrado?” — senhora procuradora!... Claro que a ouvimos também dizer que vai mandar instaurar novo inquérito, mas essa parte era para rir, não é verdade? Quantos inquéritos já mandou instaurar desde que este folhetim da Operação Marquês começou? Nomeadamente os relativos aos crimes de violação do segredo de justiça que continuam e continuarão impunes. Alguém foi demitido, suspenso, ou incomodado? Não continuam procurador e juiz titulares da investigação impávidos e serenos sem se deixarem afetar pelos recorrentes crimes em que o seu trabalho se viu envolvido? O crime desagrada-lhe, senhora procuradora? Então, quando o condena (se foi isso que fez...), não faça logo a injunção para a necessidade de todos os operadores judiciários repensarem comportamentos nesta matéria. Ou caminhamos para regulação e legislação retroativas, esponjas branqueadoras de comportamentos imperdoáveis do aparelho que dirige?

Mas nesta tragédia de levezas alegretes à portuguesa, as cenas dos próximos episódios ainda seriam mais negras. Como quase sempre nos media portugueses, em que o que falta em matéria de informação sobra em opinião, boa parte desta veio mostrar que afinal estava tudo certo. Que a luta contra a corrupção, o desmascarar das trapaças dos poderosos, ou o interesse público se sobrepunham a tudo e a todos.

3. Sabemos quanto a corrupção de altos responsáveis políticos, empresariais, financeiros, académicos e culturais é um dos principais cancros da sociedade portuguesa e da nossa vida democrática. A Operação Marquês investigou a corrupção ao mais alto nível. Mas não há importância ou singularidade de um processo judicial que suspenda todos os direitos dos investigados, confira exceção absoluta de procedimentos legais, substitua os tribunais pelo julgamento popular, dispense a prova por existir convicção. Estes são os fundamentos do populismo que, como é sabido e é tristemente patente nesta Europa a que nos deixámos chegar, opera sempre do mesmo modo: escolhe e denuncia impasses políticos verdadeiros e problemas sociais reais; explica-os através de origens deturpadas e razões falsas; e propõe-se resolvê-los através de medidas radicais, excecionais e antidemocráticas.

Sorrateira ou explicitamente, são estes pressupostos que baseiam boa parte da opinião publicada a favor da “grande reportagem” da SIC. Não, não há nenhum “interesse público” que justifique a difusão das imagens dos interrogatórios. As expressões dos arguidos em interrogatório, o conteúdo do que ali dizem e o modo como se exprimem nada provam, nem são factos relevantes no apuramento da verdade. Só quem nunca foi sujeito a interrogatório por parte daqueles que lhe retiraram a liberdade pode supor que essa é uma situação “normal”. Mas, mesmo não a tendo vivido na pele, deve perceber que nesse contexto absolutamente excecional ninguém é como é. E, sobretudo, que ninguém naquela situação se preocupa com a sua eventual performance perante as câmaras. De resto, o populismo reinante opera também esta “confusão” entre duas coisas bem distintas: o que são as provas aduzidas pela acusação e o que são factos provados em tribunal. Nada se encontra definitivamente provado antes de este se pronunciar, ouvida a defesa e avaliadas as provas por ela apresentada. Phil Graham daria uma volta no túmulo se alguém lhe traduzisse a glosa portuguesa da sua célebre frase [1] que parece ter cristalizado neste desastre: “Os tribunais trabalham para a história, os jornalistas para o momento”!

4. Duas coisas são certas. A primeira, pouco importante e de nível pessoal: se alguma vez for sujeito a investigação policial, exigirei uma máscara antes de responder a quaisquer perguntas que me queiram fazer. Não quero correr o risco de me ver envolvido nestas cenas degradantes. A segunda, mais decisiva: a luta contra a grande corrupção em Portugal acaba de dar um gigantesco passo atrás. E, para o seu recuo, mais do que a desastrosa “grande reportagem” da SIC, contribuíram os seus alegretes defensores, exultantes com a pornográfica exibição das “provas” que reforçam as suas convicções. Minar a administração da Justiça sobrepondo-lhe o julgamento popular, substituir a prova pela convicção e retirar à vida democrática os procedimentos formais que também a caracterizam — aí está toda uma agenda para o sólido desenvolvimento do populismo à portuguesa.

As rendas excessivas da EDP no país da imprensa comunista

Novo artigo em Aventar


por João Mendes

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Fotografia: Paula Nunes@ECO

António Mexia é o exemplo acabado de um homem de sucesso em Portugal. Deu aulas, foi para a política, daí para organismos e empresas públicas, com a passagem da praxe pelo BES, e regressou à política, de onde em bom rigor nunca chegou a sair, para integrar o executivo Santana Lopes, entre Julho de 2004 e Março de 2005. Dai seguiu directo para a cadeira de presidente do Conselho de Administração da EDP, onde continua, hoje sob a batuta do regime chinês. Em 2014 recebeu de Cavaco Silva a mais alta condecoração da Ordem de Mérito Empresarial. Três anos depois, foi constituído arguido no caso relacionado com as rendas excessivas da EDP. Aquele percurso clássico.  Ler mais deste artigo

Competir no e ao centro

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 28/04/2018)

JPP

Pacheco Pereira

(Caro Pacheco. Grande palestra de balneário. Estás para a política como o Jorge Jesus está para a bola, és o rei da táctica para o PSD de Rio. Esqueces vários detalhes. Um deles, e de não pouca importância, é que se à esquerda do PS existir 20% do eleitorado, não há "centro" tal como tu o vês. E é para esse objectivo que PCP e BE vão lutar. E, como os portugueses, tem a noção perfeita de que o PS só prosseguiu muitas das políticas que beneficiaram muitos devido ao peso da esquerda nos acordos de governo, talvez não seja difícil que alcancem essa fasquia. E lá se vai o "centro".

Comentário da Estátua, 28/04/2018)


Há quem se dê bem com os quadros de análise esquerda versus direita. Não é o meu caso, que de há muito penso que é uma maneira muito redutora de olhar para a realidade política dos nossos dias. Mas a verdade é que, apesar de sempre o fazer com muita resistência, não pude escapar a essa dicotomia e usei-a nos últimos anos. Uma das razões é que a radicalização da nossa vida política nos anos do ajustamento tornou a fractura direita-esquerda uma realidade impossível de evitar, visto que a viragem drástica à direita materializada no Governo PSD-CDS, acompanhada pelo abandono por parte do PSD do seu património genético social-democrata, criou uma frente de direita de facto. Por seu lado, o acordo PS-BE-PCP gerou uma resposta com uma protofrente de esquerda. A dicotomia não era perfeita, porque o PS conseguiu manter uma identidade de centro-esquerda, facilitada pela viragem do PSD, que deixou parte do terreno político vazio e que o PS ocupou, impedindo a existência de uma frente de esquerda perfeita.

O que se passa nos dias de hoje é que, com a mudança da liderança do PSD, que abandonou parte dos aspectos mais agressivos da viragem à direita nos anos de Passos Coelho, a política recentrou-se para fora dos extremos, o que teve efeitos no PSD e no PS e a reacção entre irritada e utilitária do CDS e do PCP e do BE. As negociações entre PSD e PS, mesmo com escassa substância, tiveram o efeito de ajudar o PS a poder fazer uma política em duas frentes e o PSD de se demarcar da oposição muito agressiva que caracterizara os dois primeiros anos da “geringonça”. Não é, insisto e insisto muito, uma viragem consolidada e segura, mas é uma viragem. Pode agora começar a falar-se do centro, esse fantasma da política portuguesa que ninguém quer na bandeira, mas de que PS e PSD sabem precisar para ganhar eleições.

As próximas eleições que poderiam realizar-se no modelo frente de esquerda (PS+BE+PCP) versus frente de direita (PSD+CDS) podem agora realizar-se numa competição pelo centro político, uma entidade difícil de definir, mas que agrega uma parte muito significativa do eleitorado urbano, politicamente mais qualificado e informado, e que pode, quando no seu terreno aparece uma alternativa, escolher sem clubite identitária. Ou seja, premeia ou pune o partido que lhe pareça merecer essas atitudes, e que historicamente se desloca do PS para o PSD e vice-versa, em particular em função da performance governativa. Soares, Sá Carneiro, Cavaco, Guterres, Sócrates, Passos Coelho (em 2011), todos beneficiaram desse efeito, ou o desbarataram.

O problema para o PSD é que, à data em que escrevo, o PS tem muito mais condições para usufruir dessa ocupação do centro político, até porque mesmo com a “geringonça” pode manter-se no terreno do centro-esquerda e o PSD só agora se deslocou para o centro-direita-centro--esquerda, com o terreno ainda muito minado pelo seu passado recente e pelo corte muito ambíguo com as políticas do “ajustamento”. Na verdade, enquanto, do ponto de vista do eleitorado central, o PS tem feito quase tudo bem, o PSD fez apenas o recentramento com as negociações com o PS, mas errou ou não explorou todos os outros factores que pesam na competição ao centro.

De facto, a competição pelo centro é diferente do confronto frente de esquerda--frente de direita. Para o eleitorado mais informado e qualificado do centro, contam à cabeça três coisas com que o PSD tem tido muita dificuldade em lidar, quer por erros próprios, quer por falta de massa crítica partidária de um PSD muito desertificado de quadros políticos, muito dependente de políticos de carreira no interior do partido e por uma ruptura com vários sectores da sociedade, processo que se tem acentuado desde que Cavaco Silva deixou de ser primeiro-ministro.

O primeiro dos factores é fundamental para travar o populismo e a deriva abstencionista: a imposição de um quadro mínimo de atitudes éticas com medidas exemplares e oportunas de demarcação ante a corrupção, o tráfico de influências e actos de moral duvidosa, mesmo que não necessariamente ilegais. Rio vem com uma imagem de rigor ético e falou da necessidade de um “banho de ética”, o que era uma vantagem face a um PS ainda muito enterrado no “caso Sócrates”. Porém, sucede que nestas matérias a primeira impressão conta muito e raras vezes dá a oportunidade de uma segunda impressão, e os casos de Elina Fraga e Barreiras Duarte mancharam essa primeira impressão.

O segundo factor é a escolha das pessoas e das equipas, que, numa competição ao centro, é muitas vezes o grande equalizador entre quem está na oposição e quem está no governo. E aqui as escolhas de Rio para áreas fundamentais, quer no partido, quer no governo, são más. Há excepções, mas são poucas. No partido, as escolhas para cargos relevantes de pessoas que traziam um historial pesado de suspeitas e acusações de carácter judicial, ou que pura e simplesmente eram muito medíocres, trouxeram-lhe logo à partida o risco da perda da inocência ética e acabaram por ficar como zombies políticos incapazes de ter qualquer protagonismo nas áreas que justificavam o seu recrutamento. Nas escolhas para um protogoverno-sombra, há pessoas cuja experiência governativa foi insatisfatória e nalguns casos que transportam histórias obscuras quase desde sempre. É duro dizer isto, mas toda a gente, repito, toda a gente, sabe que é verdade. Rio devia estar a milhas dessas pessoas e não tem estado.

A sua única desculpa é que no PSD não abundam pessoas com capacidade para assegurar muitas áreas quer da oposição, quer da futura governação, e muitas das que existiam já há muito se afastaram. A quebra de prestígio partidário nos últimos anos torna relutante a colaboração de muitos independentes, com os quais o PS tem maior margem de manobra, mesmo com Sócrates às costas. Acresce que o aparelho partidário, na “jota” em particular, tem “queimado” qualquer recrutamento e ascensão de pessoas qualificadas e que saibam fazer mais do que viver nas redes sociais mandando “bocas” e servindo como fontes de intriga para os jornais. Neste contexto, era preferível ir buscar gente completamente nova e dar-lhes oportunidade de “se fazerem”. Aqui o CDS sempre foi melhor.

Por último, a competição ao centro faz-se muito pelo confronto de causas e propostas que correspondam aos problemas reais do país, que estão longe da agenda imediata e mediática. Não é só o programa eleitoral — é a condução quotidiana de um grande partido político reformista e moderado que seja capaz de reconstruir o seu património com posições e propostas de forma estudada e criativa, assente na sua identidade genética. E aí há muito para fazer, na educação, na saúde, no sistema político, no mundo do trabalho, na cultura, na Segurança Social, na emigração, na habitação, no equilíbrio regional, etc.

Embora os factores anteriores sejam um lastro negativo para assegurar a qualidade do trabalho programático, penso que tem todo o sentido haver um benefício de dúvida. Se o PSD souber ancorar-se no centro político, vai descobrir todo um terreno de actuação que é efectivamente alternativo ao PS e lhe pode dar um impulso eleitoral, caso o mereça. Para isso é também preciso recusar a histeria da “novidade” e da intervenção permanente, introduzir algum tempo reflexivo e mais lento, sem temer o papão do “vazio” que é hoje um instrumento para subordinar a política aos ritmos da actual comunicação. Aqui Rio tem vantagem e pode explorá-la.

Se nas próximas eleições o confronto se fizer ao centro, pode haver vantagem para os portugueses. Há apenas um óbice e esse demasiado importante: o centro pode significar o abafamento da questão europeia, debaixo de um consenso ambíguo que há muito existe sobre o seguidismo do PS e do PSD em relação a uma União Europeia que é hoje uma entidade pouco democrática e desrespeitadora da soberania das nações.

Esta circunstância pode matar tudo, ao impor a Portugal um modelo de estagnação que a prazo gerará radicalização social, com o risco de populismo. Nessa altura, voltamos à grande simplificação e ao reducionismo político, e o centro nunca se implantará como lugar da democracia.

Vamos ver.