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quarta-feira, 2 de maio de 2018

Confissões iniciais sobre a (minha) morte e a (minha) liberdade – Parte 1

Com este texto damos início a uma série de artigos sobre a problemática da eutanásia e do suicídio assistido, contribuindo assim para o debate que, em Portugal, começa a dar os primeiros passos.

O que significa que o TORNADO está aberto a outras contribuições e perspectivas.

  • 22 Fevereiro, 2016
  • José Carlos S. de Almeida
  • Já não sou um homem novo. Passei dos cinquenta e tenho consciência plena de que ultrapassei metade de um percurso, que se a nossa vida pode ser comparada com uma caminhada em direcção a um monte, sei que já fiz a parte do trajecto, a subida, e que agora é sempre a descer.

E a descer é mais rápido, com todos os santos a ajudar. Ora, quando penso no que o futuro me reserva ainda, sou por vezes assaltado com representações sobre a minha morte. Não é um pensamento frequente, mas não posso deixar de pensar nisso. Reconheço até que, mal assoma, trato imediatamente de o afastar.

Nem todos adoptam a atitude despreocupada de Epicuro que não temia a morte, porque enquanto vivíamos, a morte não existia e quando esta surgisse já tínhamos deixado de viver para nos preocuparmos com isso.

Só que nem sempre fomos mortais. Houve uma altura em que éramos imortais, pois a morte não existia, perante a intensidade da vida que se manifestava exuberantemente na nossa vida a correr.

Felizmente ou infelizmente, esse tempo já passou.

A partir de certa altura, a morte surge-nos com mais insistência. Encontramos muitos dos nossos amigos em velórios, depois de termos passado uns anos a encontrá-los em casamentos e baptizados. É uma lei da vida que a vida termine um dia. Para se morrer basta estarmos vivos.

Aos poucos, a morte começou a impor-se. Não é necessariamente terrível. A vida sem a morte, sem essa compressão, era inviável. A pressão da morte, a consciência do fim, intensifica os pequenos acontecimentos da nossa vida. Uma vida dilatada ao infinito era um convite a um apagamento do sentido, a uma diluição sem fim dos sentimentos, das emoções e dos afectos.

Essa diluição tornaria a nossa vida demasiado flat, sem marcas e sem acontecimentos marcantes, uma calmaria descolorida, sem sabor, um ir sendo que seria mais um deixar andar. Pelo contrário, a consciência de que existe um fim, coloca os acontecimentos sob a possibilidade de não se virem a repetir e intensifica a nossa vivência desses momentos. A morte não vem apenas dar um sentido à vida; vem tornar o viver como sendo a própria construção dum sentido.

Pensar na morte não é agradável. Quando ela irrompe no nosso quotidiano, somos assaltados por imagens pouco exaltantes. E no meio desses pensamentos lúgubres, aquilo que me assusta e assusta toda a gente é a ideia de uma morte dolorosa, antecedida por um longo período de sofrimento.

Sofrimento para mim e para os que na altura me rodearem, que serão por certo aqueles que eu amo e aqueles que mais me amam ou amaram. O sofrimento é sempre assustador, mesmo que uma certa moral nos tivesse educado a suportar o sofrimento e a dor como marcas duma humanidade heróica.

Quando penso nisso, também penso no que poderia ser uma morte fácil, rápida e sem dor. Uma boa morte. Se possível, ocorrendo durante o sono, sem consciência da passagem para o outro lado ou depois duma despedida assumida e festejada. Essa morte doce pode acontecer por acaso.

Mas hoje sei que também a posso desejar e planear e que em certos países do mundo e nomeadamente da Europa, perante situações de doença terminal ou de uma previsível situação que, por variadíssimas causas possa limitar assustadoramente uma vida digna, seja sob a forma de eutanásia ou de suicídio, assistidos por pessoal médico, é possível, desde que corresponda a um desejo expresso e reiterado do doente ou dos seus representantes.

Não é o caso do nosso país. Não é ainda o caso do nosso país.

Em Portugal, aqueles que me ajudassem e colaborassem nesse processo, mesmo sob a forma de ajuda ao suicídio (suicídio assistido), respondendo ao meu pedido e agindo por sentimentos de compaixão e piedade, iriam incorrer na práctica dum crime, pelo qual seriam julgados e, certamente, condenados.

Mesmo que a opinião pública ou o pessoal de saúde o não julgassem desse modo. Um modo que, aplicando cegamente a lei, é a forma mais injusta de pretensamente exercer a justiça.

No entanto, começam a surgir entre nós sinais de que as coisas começam a mudar, do mesmo modo que também assistimos às primeiras manifestações daqueles que pretendem que tudo continue inalterado. Um debate que, contudo, vimos a propósito da discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, mobilizando muitos dos argumentos que na altura já foram esgrimidos.

Porém, os problemas não ficam por aqui. Uma coisa é o que a lei pode vir a permitir e outra coisa é o que eu penso ou quero para mim. Eu posso defender que a lei garanta a liberdade de morrer de acordo com a vontade de cada um, sem ser a favor da solução eutanásica para o meu problema. É que quando chegar a altura não sei agora se serei capaz de tomar, então, a decisão de solicitar essa morte piedosa, uma morte que me leve durante um sono, uma morte indolor e doce, a eutanásia.

O problema é que não posso saber hoje se amanhã serei capaz ou desejarei essa morte. Eu não sei agora o que se irá passar com a minha vontade em relação a um momento que ainda está para vir. Honestamente, não posso adiantar nada sobre a minha coragem, a minha fraqueza, o meu desespero num tempo que ainda desconheço, num tempo que ainda está para vir.

Outra questão prende-se com a eventualidade de nessa altura me encontrar em coma e não conseguir manifestar a minha vontade e não a tendo expresso antes. E mesmo tendo manifestado a minha posição, estarão suficientemente seguros aqueles que me amam acerca da minha decisão, que a minha decisão ainda se mantém tal como a manifestei anteriormente?

Estes são alguns dos problemas que uma decisão antecipada sobre a morte levanta. Porém, outras questões anteriores também se colocam, a saber, se me é permitido dispor da minha vida e, portanto, da minha morte.

Trata-se duma decisão que está dentro da esfera das minhas faculdades? É uma decisão pessoal, defendem alguns. Mas é ainda uma decisão pessoal ou que se mantém na esfera íntima do indivíduo, quando para se concretizar terá que recorrer aos outros ou mesmo a instituições públicas?

O tempo da morte é sempre um tempo ainda a chegar. Era muito fácil começar a enumerar em abstracto tudo aquilo que um dia faria, tudo aquilo de que um dia seria capaz de fazer. Era muito fácil, mas não era honesto.

O que sei, contudo, para já, é que me é insuportável pensar que alguém que eu não conheço e que nem me conhece, que possivelmente nunca me viu noutra ocasião, que desconhece completamente o que eu penso, o que eu sinto, o que eu fui e sou, possa decidir por mim numa matéria que só a mim, ou a mim juntamente com aqueles que eu amo e que me amam, diz respeito.

O que eu sei desde já é que é incomportável e revoltante imaginar que alguém, precisamente quando me aproximo do fim, me possa condenar a uma pena de sofrimento prolongado e acrescentar à iminência da minha morte mais dores e sofrimento desnecessários.

No momento em que me devia preparar para me despedir daqueles que amo, em que quereria preservar uma imagem apaziguante e um rosto de serenidade, porque é assim que eu quero ser recordado, alguém que não me conhece decidirá que eu devo estar submetido a dores incalculáveis que me absorverão por completo e me impedirão de viver os últimos dias da minha vida de acordo com os meus desejos.

A legitimidade que possui para me tratar não lhe confere um poder absoluto para decidir sobre o que acha que é melhor para mim. Tal como os meus familiares não possuem esse poder se eu estiver em condições de pensar e decidir. Essa pessoa está a retirar-me a possibilidade de viver até ao fim como eu desejo, quando curiosamente me impede de me retirar de cena mais cedo. Essa pessoa aceita que seja ela a decidir e não aceita que eu decida?

O que é insuportável é que um desconhecido possa decidir aplicar-me uma pena que eu nada fiz para merecer.

Em nome de quê pode alguém fazer-me sofrer e recusar a minha vontade?

Neste momento, em Portugal, os médicos, os políticos e os legisladores, uns por acção e outros por omissão, decidem como é que eu e qualquer um que opte por morrer em Portugal, deverão terminar os seus dias; retiram da minha esfera jurídica ou negam que esteja no âmbito da minha vontade decidir como e quando pretendo morrer — entendem que não faz parte do catálogo dos meus direitos fundamentais o direito a morrer.

Argumentam em nome do direito à vida. Só que confundem o direito à vida com o dever de viver. O dever de viver a qualquer preço, independentemente da qualidade desse viver.

Ora, obrigar-me a viver pode não ser o modo mais dignificante de defender o direito à vida que tanto parecem prezar.

Continua a afirmar Pereira

Ladrões de Bicicletas


Posted: 02 May 2018 01:30 AM PDT

Pacheco Pereira tentou vir em defesa da disputa política em torno do chamado centro. Na realidade, o tal centro continua bem à direita, como tem a obrigação de saber, até pelas posições concretas do PSD sobre políticas públicas concretas. O cheque-saúde à paisana é só um exemplo. No final da crónica acaba por reconhecer que a sua linha não é sustentável por uma boa razão:
“Se nas próximas eleições o confronto se fizer ao centro, pode haver vantagem para os portugueses. Há apenas um óbice e esse demasiado importante: o centro pode significar o abafamento da questão europeia, debaixo de um consenso ambíguo que há muito existe sobre o seguidismo do PS e do PSD em relação a uma União Europeia que é hoje uma entidade pouco democrática e desrespeitadora da soberania das nações. Esta circunstância pode matar tudo, ao impor a Portugal um modelo de estagnação que a prazo gerará radicalização social, com o risco de populismo. Nessa altura, voltamos à grande simplificação e ao reducionismo político, e o centro nunca se implantará como lugar da democracia.”
O desrespeito da UE pela soberania, condição necessária da democracia, não é de hoje. Vem pelo menos desde Maastricht. Hoje é só brutalmente claro. Temo bem que, em nome do respeito pela UE desrespeitadora e do combate ao espectro de um certo tipo de populismo bem necessário, haja a tentação, por parte do tal centro, de introduzir ainda mais entorses eleitorais à representação proporcional da vontade popular democrática. Tal como a pós-verdade, também a pós-democracia tem origens no centro europeu. No fundo, Pereira acaba por confirmar que o eurocepticismo, em nome da soberania democrática, é hoje em Portugal uma das melhores formas de drenar o pântano intelectual e político do meio.

A macronização da política europeia ou talvez não, eis a questão!

UNIÃO EUROPEIA

A macronização da política europeia ou talvez não, eis a questão! /premium

2/5/2018, 0:07

A um ano das eleições europeias de Maio de 2019 e com 4 anos de governação do diretório franco-alemão à nossa frente, tudo, ou quase tudo, continua em aberto: macronização ou talvez não, eis a questão

No momento em que escrevo decorrem as visitas do Presidente francês e da Chanceler alemã aos Estados Unidos. É o diretório europeu em plena operação, à procura de um equilíbrio adequado face à “nova política americana”, seja lá o que isso for. Os resultados das duas visitas não foram brilhantes e duas ilações, bastante eloquentes, falam por si: na relação transatlântica o diretório europeu não existe, isto é, a União Europeia não existe e, sintomaticamente, os dois líderes europeus prestaram-se a isso com um intervalo de algumas horas, em segundo lugar, a exuberância imperial e protocolar da visita de Macron contrasta com a simplicidade e a discrição de Merkel. Espero, muito sinceramente, que esta cenografia e coreografia não se repitam no plano europeu.

Entretanto, falta um ano, um pouco mais, para as próximas eleições europeias de maio de 2019. Falta, igualmente, um ano, um pouco menos, para concluir as negociações sobre o Brexit (março 2019). Finalmente, temos um novo governo de coligação ao centro na Alemanha e a chanceler Angela Merkel prepara, agora, o início do seu quarto mandato. Na União Europeia, o Presidente Draghi termina o seu mandato em outubro de 2018 à frente do BCE e o Presidente Juncker da Comissão Europeia em outubro de 2019. A Itália, depois de eleições, está sem governo constituído e a Espanha continua sem resolver o problema da autonomia/independência da Catalunha.

Ao mesmo tempo, o nacionalismo, mais conservador ou mais populista, cresce em toda a Europa. Os regimes iliberais já formam governo em alguns países da Europa de Leste. A Europa parece oscilar entre a prometida “soberania europeia” do Presidente Macron e a vaga nacionalista, soberanista e iliberal de partidos e movimentos da extrema direita e extrema esquerda.

Tudo sem esquecer que os grandes dossiers da política europeia – imigração e refugiados, segurança, defesa e política exterior, união bancária (3º pilar), orçamento plurianual e novos recursos próprios, orçamento da zona euro e mutualização das dívidas públicas, política monetária pós-Draghi, energia e alterações climáticas, mercado único e regulação digital – continuam em aberto e a aguardar as próximas etapas.

A um ano das eleições europeias de Maio de 2019 e com quatro anos de governação do diretório franco-alemão à nossa frente, tudo, ou quase tudo, continua em aberto: macronização ou talvez não, eis a questão.

1. A “soberania europeia”, uma nova ambição para a Europa

Depois do movimento “república em marcha”, parece estar em curso a “grande marcha” sobre a Europa tendo em vista as eleições europeias de maio de 2019. Entre o discurso na Sorbonne de 26 de setembro de 2017 e o discurso no Parlamento Europeu de 17 de abril de 2018, a ambição europeia proposta pelo Presidente Macron não sofreu alterações substanciais, não obstante as eleições e os impasses na Alemanha, em Itália e em Espanha e o crescimento dos nacionalismos e populismos nos países do leste e norte europeus. Recordemos os tópicos essenciais dessa ambição europeia consagrada na expressão “a soberania europeia”:

  • Um orçamento específico para a zona euro (e um ministro europeu das finanças),
  • Mais convergência fiscal e social (um calendário para a harmonização),
  • Um programa europeu para financiar as coletividades locais que acolham refugiados,
  • Mais Europa da Defesa (a cooperação estruturada),
  • A generalização do programa Erasmus,
  • Uma taxa sobre as transações financeiras (um tema recorrente),
  • Uma taxa de carbono, também às importações (um tema recorrente)
  • Uma taxa sobre os negócios dos gigantes da tecnologia digital (mercado único digital),
  • A proposta de listas transnacionais para o Parlamento Europeu (não aprovada),
  • Uma proposta para proteger os direitos de autor e os criadores europeus,
  • A proposta de menos comissários na Comissão Europeia, de 30 para 15.

Como é evidente, não há feuille de routeou agenda europeia que resista às contingências internacionais e às interações fortuitas das políticas domésticas, já para não falar da natureza específica de cada um destas medidas programáticas, a sua distribuição espacial e temporal e o seu específico processo de tomada de decisão nas instituições europeias. É esta grande variedade do policy-processo primeiro grande obstáculo à macronizaçãoda política europeia. Digamos que falta sincronização à macronização da política europeia.

2. O homem e a política, o regresso do estilo De Gaulle-Mitterandien

Em EmmanuelMacron não é possível separar a personagem e a personalidade. O homem e o seu estilo ou o fascínio da representação simbólica e neste caso, também, investido de um duplo papel, a saber, a simbolização do império (diretório) franco-alemão. Na visita aos Estados Unidos o excesso de representação foi notório, ao ponto de ficarmos com algumas dúvidas acerca do género teatral que estava a decorrer à nossa frente. Sabemos, porém, que a União Europeia é uma democracia deliberativa multiníveis, extraordinariamente exigente do ponto de vista processual e procedimental e apesar do pragmatismo do diretório franco-alemão não é possível passar ao largo desse “pequeno detalhe” que é a negociação institucional e nas atuais circunstâncias é melhor não subestimar este aspeto crucial da convivência entre estados membros. Fica-nos, porém, um sentimento contraditório. Por um lado, apreciamos o fascínio da retórica discursiva e o lastro de sedução que ela deixa, como se fosse o argumento encantatório de uma peça literária e teatral, por outro, assalta-nos um sentimento paradoxal, ao mesmo tempo contraintuitivo e contraproducente, como se ficássemos a meio caminho de uma promessa que não sabemos como cumprir. Esta tentação para fundir ou confundir a personagem e a personalidade é a segunda grande dificuldade inerente à macronização da política europeia.

3. A política externa e a grande crise do multilateralismo liberal

Numa época marcada pelo narcisismo do presidente americano, o revisionismo do presidente russo, a ambição do presidente chinês, já para não falar de outros registos autoritários de importância igualmente relevante, só faltava mesmo a grandeza imperial do presidente francês, investido do papel da representação europeia. Esta constatação coloca, porém, a política externa e segurança comum da União Europeia num patamar de prioridade máxima e num contexto marcado por uma extrema imprevisibilidade. Os sinais são deveras preocupantes:

  • A época do internacionalismo liberal benevolente parece ter terminado,
  • O sistema multilateral atravessa uma crise profunda de confiança,
  • O período pós-guerra fria está em compasso de espera e sob uma tensão crescente,
  • O Reino Unido perde continuadamente poder desde o referendo sobre o Brexit,
  • Os Estados Unidos perdem a respeitabilidade e a reputação no plano internacional,
  • As regras e as instituições não são tidas em conta e são relegadas para plano secundário,
  • Os checks and balances não funcionam e os regimes iliberais aproveitam.

Num ambiente internacional extremamente contingente e exigente, a tentação quase imperial em ser investido desta dupla representação exterior, francesa e europeia, e ser o interlocutor privilegiado “entre mundos” deve ser prosseguida com prudência e moderação e não substituir o papel da diplomacia. Esta putativa pretensão nem sempre é boa conselheira e pode criar obstáculos desnecessários a uma benevolente macronização da política europeia.

4.  Um movimento reformista, algures entre os soberanistas e os federalistas

Para os soberanistas, que os há, também, com vários matizes, o discurso do Presidente Macron sobre harmonização, convergência e solidariedade, nos planos fiscal e social, significa, em primeira análise, mais centralização, mais transferências e mais federalismo. Logo inaceitável. Para os integracionistas, que os há igualmente com vários matizes, as democracias domésticas estão em risco se a Europa não reforçar a sua soberania democrática, o que implicará sempre o reforço do método comunitário de democracia deliberativa e maior volume de recursos próprios da União Europeia. O nacionalismo e o populismo iliberais são inaceitáveis e a autoridade da democracia não se confunde com a democracia autoritária, nas palavras do próprio Presidente Macron. Donde a procura de um “centro radical”, um movimento reformista, também europeu, que “vai morder” no campo instalado do partido popular europeu e do partido socialista europeu. Neste centro  radical, pela sua própria natureza, acredita-se que será possível temperar os vários ímpetos reformistas pelo simples jogo dos checks and balances do policy-process europeu. É uma operação política de grande envergadura, veremos se a fragmentação política doméstica é transposta para o sistema binário (PPE e PSE) que domina o Parlamento Europeu. Este enorme desafio é um obstáculo de monta à macronização da política europeia.

5. A prioridade à zona euro, um erro de avaliação estratégico?

A prioridade à zona euro implica colocar duas opções políticas que podem, de resto, ser complementares se, para tanto, existirem recursos bastantes: acelerar a integração da zona euro já existente passando a um patamar político superior ou, em alternativa, criar as condições necessárias para favorecer a convergência e integração dos estados membros que o desejem. A primeira opção cria uma Europa a duas velocidades, a segunda opção é uma demonstração de solidariedade política e visa impedir uma Europa a duas velocidades. A escolha do Presidente Macron é, em primeira análise, pela primeira opção, embora não rejeite uma política de convergência aos estados não-membros.

E quem está em condições de definir esta prioridade política tão elevada? Não é um diretório, não é um pequeno grupo de países iluminados ou um grupo de fundadores investidos de algum privilégio histórico. De facto, uma Europa a duas velocidades, no atual estado da arte do projeto europeu significará, muito provavelmente, o fim da aventura unionista tal como a conhecemos hoje. Tratando-se de um projeto político da maior importância essa opção é perigosamente divisionista no presente momento e pode ser o pretexto que faltava para provocar a desagregação da construção europeia. Por isso, mais do que a arquitetura da zona euro, interessará, na atual conjuntura, uma boa conjugação de policy-instruments, tudo o mais corre o risco de ser instrumentalizado ao longo do próximo ato eleitoral.

De resto, não creio que a garantia comum de depósitos, a resolução comum de bancos, a mutualização das dívidas soberanas, a política monetária do BCE pós-Draghi ou a transformação do mecanismo europeu de estabilização (MEE) em fundo monetário europeu (FME) façam parte da agenda alemã no futuro próximo. Donde uma dificuldade adicional, e de monta, para a macronizaçãoda política europeia para a qual é preciso encontrar um bom mecanismo de compensação.

6. O Grande Compromisso, entre a zona euro e a segurança coletiva?

Eis o que pode deixar os cidadãos mais tranquilos nesta fase do projeto europeu, a saber, um compromisso político equilibrado entre os progressos moderados na zona euro (que interessa apenas 19 membros) e os progressos necessários na segurança coletiva em sentido amplo (e que interessam a todos os estados membros), onde se incluem todos os problemas de segurança interna, os problemas de gestão costeira e fronteiriça e as grandes questões de política internacional. Este é, também, o mecanismo de compensação que o Presidente Macron necessita para fazer o trade off entre a zona euro e a segurança coletiva. O problema da macronização da política europeia é que ela elege uma agenda sobrecarregada de problemas sem que para tal possua os meios, os parceiros e a estratégia operacional que são requeridos. Esta “revolução macroniana”, sendo consistente em si mesma, é manifestamente incompatível com os recursos e a vontade política que parecem disponíveis. Além disso, quando se desdobra, nas suas diversas dimensões e variáveis, um dossier particular como é o caso da segurança coletiva apercebemo-nos imediatamente da delicadeza dos problemas implicados, do seu efeito-dominó e da grandeza dos recursos financeiros envolvidos. Digamos que sem um GPS especializado não é possível viajar pelo labirinto macroniano, nem ter uma ideia mais rigorosa das prioridades, do calendário e dos recursos financeiros implicados. Sem esta orientação pelo território macroniano, fica claramente prejudicada amacronizaçãoda política europeia.

7. Os cisnes negros da política europeia

Chegados aqui, restam, ainda, os “cisnes negros” da política internacional e europeia para perturbar a macronizaçãodo projeto europeu. E nem sequer são tão improváveis como isso. Senão vejamos. Uma crise grave no comércio global feita de retaliações sucessivas já aí está, um sobressalto nos Balcãs dá alguns sinais, uma agressão russa no Báltico, uma declaração de guerra israelo-palestiniana ou xiita-sunita pode acontecer a qualquer momento, novas vagas de refugiados de guerra (do médio oriente e da zona do Sahel), novos ataques terroristas, uma crise financeira grave nos mercados e nas bolsas, uma crise energética grave (corte de abastecimentos), uma crise grave com o a Turquia de Erdogan (a propósito dos refugiados),a demissão do governo alemão e eleições antecipadas não é impossível dada a manifesta fragilidade da chanceler neste mandato, o risco de resgate de um país como a Itália não está fora de causa, a mudança drástica de orientação na política monetária do BCE é provável, a expulsão de um estado membro da União Europeia por violação de direitos fundamentais pode acontecer.

Bastaria o enunciado destes cisnes negros para que a política externa, de segurança comum e defesa, no que diz respeito à sua prevenção estrutural, ao nível de ataque imediato e à mitigação de danos, adquirisse a condição de política europeia de máxima prioridade, na linha, justamente, do que dissemos no ponto anterior. Creio que o envolvimento do Presidente Macron nesta matéria, pela força das circunstâncias, será a sua principal prioridade. O mundo ocidental precisa de um protagonista acreditado e ele estará lá, mas não será fácil e, sobretudo, a política europeia e a política francesa poderão sair prejudicadas.

Notas Finais

As eleições europeias de maio de 2019 revestem-se de uma extrema delicadeza para o projeto europeu. Daqui até lá, tudo pode ser objeto de instrumentalização e manipulação se não for usada uma enorme prudência e bom senso, nas propostas, coligações e estratégias políticas apresentadas durante a campanha que se avizinha. Daqui até maio de 2019 é preciso impedir uma radicalização destes dois movimentos, o soberanista e o integracionista, e evitar que entrem em rota de colisão, colocando em risco todas as iniciativas mais moderadas e reformistas de melhoramento do projeto europeu. Em política não se pode avançar ao mesmo tempo em todas as áreas, sendo fundamental encontrar a “dose certa de europa” que mobilize a adesão do maior número de europeus. Aqui, o fascínio redentor de EmmanuelMacron pode ser extraordinariamente mobilizador, mas, também, extraordinariamente contraproducente.

Veremos, nos próximos meses, como irá funcionar o diretório franco-alemão. No Conselho Europeu do final do mês de junho, já teremos uma panorâmica mais aproximada seja no que diz respeito aos temas da agenda europeia como ao grau de adesão dos restantes estados membros face às primeiras propostas do diretório. Em relação ao comportamento das personagens, espero que a exuberância de Macron e a moderação de Merkel nos proporcionem a “dose certa de Europa” de que precisamos nos próximos quatro anos.

Seja como for, o diretório deveria ter muito mais cautela com este “regime binário” que hoje estrutura e governa a União Europeia e que não é do agrado de muita gente. Nesse sentido, espero, ainda, que Macron não abuse da sua “posição dominante” na atual conjuntura, tirando partido da fragilidade interna da chanceler e da sua fragilidade externa em matéria de relação transatlântica, com o único propósito de retirar ganho de causa para a reforma da zona euro. Os alemães não apreciariam seguramente tal gesto. Termino como comecei e esperando, muito sinceramente, que a cenografia e coreografia americanas não tenham replicação no plano europeu, até por uma razão adicional: em vez da macronização apoteótica da Europa, poderíamos assistir a uma polarização anti-Macron, por exemplo, a um retrocesso no processo de integração liderado por uma Itália e por uma Alemanha radicalizadas! A Senhora Merkel não gostaria, seguramente, de ser lembrada como a responsável maior do descalabro do bipartidarismo alemão.

Universidade do Algarve

O populista Varoufakis na República do Costaquistão

LIBERDADES

HÁ 18 MINUTOS

Os meios de comunicação social fizeram questão de aproveitar ao máximo a presença em Portugal de tão importante vulto do populismo pan-europeu. Um marxista errante na autodefinição.

Este ano o desfile comemorativo do 25 de Abril contou com a presença de vários convidados estrangeiros que estavam em Portugal devido a uma reunião destinada à construção de listas pan-europeias.

Foi na qualidade de líder desse movimento – o DIEM 25 – que Yanis Varoufakis desfilou na Avenida da Liberdade, entre sorrisos e selfies. Uma imagem bem mais consentânea com a fase inicial, quando foi ministro das Finanças do Governo do Syriza, do que com aquela em que foi destituído do posto.

Uma destituição que, na leitura do próprio e de uma parte considerável daqueles que marcaram presença no desfile, resultou da imposição alemã. Uma abusiva intromissão de Angela Merkel nos assuntos internos gregos.

Quanto à responsabilidade do próprio, designadamente devido à inexistência de um plano alternativo para a eventualidade – um eufemismo que significa «certeza» – de a Grécia voltar a necessitar de ajuda externa, nem uma palavra.

Ora, palavras, mais exatamente o direito à palavra, foi o que não faltou a Varoufakis. Os meios de comunicação social fizeram questão de aproveitar ao máximo a presença em Portugal de tão importante vulto do populismo pan-europeu. Um marxista errante na autodefinição.

Uma sorte para os portugueses porque ficaram a saber que, sem a luta grega, Portugal não teria logrado autorização da Alemanha para colocar a geringonça na estrada. Varoufakis não tem a mínima dúvida de que foi essa luta que retirou capital político a Angela Merkel e a forçou a não abrir uma nova frente tendo a formação do Governo em Portugal como alvo.

Como tal, a fazer fé nas palavras de Varoufakis, António Costa deveria estar eternamente grato ao Syriza da primeira geração. Aquela que ousou desafiar a prepotência teutónica numa conjuntura em que, segundo um número não despiciendo de analistas, o antigo ministro desequilibrava as contas gregas e procedia a alterações semânticas e, como tal, de reduzido ou nulo valor substantivo.

Não é seguro que António Costa venha a fazer publicamente esse agradecimento. Agradecer não é um ato muito consentâneo com alguém que não esconde a dificuldade em pedir desculpa quando tal se impõe. A regra do Costaquistão. Uma República de méritos próprios e de «inconseguimentos» alheios. Mesmo que esses «inconseguimentos» tenham deixado os cofres providos e as contas a caminho da consolidação.

Realidades que não convém publicitar. Não interessa ensombrar o brilho do mérito próprio. O único com direito a honras de primeira página e a abrir os espaços informativos.

Aliás, Varoufakis cometeu um erro de aprendiz. Não conseguiu sofrear a raiva contra Merkel, esquecido que, no Costaquistão, não convém desvalorizar a figura de Mário Centeno.

Voltando ao desfile, diga-se que o 25 de Abril comemora o dia da liberdade. Qualquer que seja a interpretação feita relativamente ao conceito. Por isso, há partidos populistas que fazem questão de a utilizar na designação.

Para fazer jus à data, Varoufakis teve direito a liberdade em dose reforçada. Assim, teve liberdade para, integrado na comitiva oficial do Livre, desfilar na Avenida da Liberdade e liberdade para propagandear nos media o modelo que pretende para o processo de integração europeu.

Um modelo subscrito pelos partidos populistas de esquerda e que faz do centralismo decisório do eixo Berlim-Paris e do populismo de direita os seus inimigos de estimação.

Sendo certo que a posição inicial também colhe junto de partidos não-populistas, não é abusivo afirmar que será reduzida a percentagem daqueles que se identificam com o modelo preconizado por Varoufakis e respetivos aliados. Um modelo cujo lema não andará longe do apelo: Populistas de esquerda de todo o mundo uni-vos!

Modelo que remete para a atual ideóloga de vários partidos populistas, Chantal Mouffe, viúva de Ernesto Laclau, o ideólogo inicial de dirigentes de partidos ancorados em reflexões pós-gramscianas. Uma doutrinação que teve a universidade como palco.

Num evento de caráter científico, curiosamente também realizado em Portugal, Mouffe afirmou que a solução para travar o avanço do populismo de direita passava por apostar no populismo de esquerda.

Um modelo que, a ser posto em prática, implicaria rebatizar a Avenida da Liberdade.

EDP/GES. As cinco perguntas a que Pinho tem de responder

01 Maio 2018

Pedro Raínho

Os investigadores do caso EDP querem fazer perguntas a Manuel Pinho. Os deputados querem fazer perguntas a Manuel Pinho. E os jornalistas querem fazer perguntas a Manuel Pinho. Há cinco essenciais.

Manuel Pinho já foi apanhado em contradições: disse que cortou toda e qualquer ligação com o BES enquanto exerceu funções de ministro de José Sócrates quando, afinal, durante todo esse tempo, continuou a receber nas suas contas sediadas em paraísos fiscais transferências mensais vindas do famoso ‘saco azul’ do Grupo Espírito Santo (GES). O Ministério Público tem uma estimativa de quanto recebeu o ex-ministro. Mas será que já se conhece o bolo todo? E os pagamentos teriam, de facto, uma contrapartida?

O Bloco de Esquerda já disse que quer ouvir o ex-ministro da Economia no Parlamento e mostrou que não está disponível para esperar pelos tempos da Justiça (que também lhe quer fazer perguntas) — vai, por isso, propor a criação de uma comissão de inquérito parlamentar. O PS valida esse modelo, tal como o CDS e o PCP parecem estar disponíveis para avançar nesse sentido; já o PSD não parece rever-se no modelo.

A ideia dos bloquistas era forçar a presença do ex-ministro sem ter de esperar por uma audição do Ministério Público. A presença de Pinho está garantida — o advogado, Ricardo Sá Fernandes, repete que “há disponibilidade” para ir ao Parlamento (o que, aliás, terá caráter obrigatório, se a comissão de inquérito for aprovada) — e até há abertura para falar. Mas apenas daquilo que não esteja relacionado com o chamado caso EDP, em que o ex-ministro foi constituído arguido. “A minha posição, enquanto advogado, é a de que [o ex-ministro] tem direito a permanecer em silêncio e, enquanto não for ouvido [pelo Ministério Público], a não prestar declarações”, diz ao Observador Sá Fernandes. Pinho ficará, por isso, em silêncio.

A proposta para a constituição da comissão de inquérito é formalizada pelos bloquistas esta próxima quarta-feira, mas o Observador antecipa alguns dos pontos sensíveis com que Manuel Pinho deverá ser confrontado.

14.963,94 euros todos os meses. Que dinheiro é este?

Os primeiros registos de transferências de dinheiro para contas detidas por Manuel Pinho que constam dos autos do caso EDP remontam a julho de 2002. Desde esse momento, e pelo menos até o ex-ministro sair do Governo, em 2009, caíam todos os meses nas sociedades offshore de Pinho quase 15 mil euros.

Manuel Pinho foi administrador executivo do Banco Espírito Santo (BES) entre 1994 e março de 2005. Próximo de Ricardo Salgado e membro da Comissão Executiva do BES, Pinho era igualmente administrador de outras sociedades do GES até tomar posse como ministro da Economia do Governo de José Sócrates. “Em 10 de Março de 2005, cessei a minha relação profissional com o BES/GES, uma vez que aceitei o convite para integrar o XVII Governo Constitucional”. Palavras do próprio ex-ministro em declarações ao Observador em janeiro deste ano. Então, de que dinheiro se tratava? Uma vez que Pinho cessou a relação profissional que mantinha com a instituição quando chegou ao Ministério da Economia, qual o motivo para continuar a receber pontualmente dinheiro de uma entidade do GES, então dirigido por Ricardo Salgado? Um acerto salarial? Uma compensação acordada com o banqueiro?

Daquilo que se conhece do chamado caso EDP — no âmbito do qual o ex-ministro foi constituído arguido, e que se cruza com a Operação Marquês e com o Universo Espírito Santo pelas informações que os procuradores que investigam o caso foram recolher aqueles dois processos —, Manuel Pinho recebeu cerca de 2,1 milhões de euros em contas bancárias na Suíça abertas em nome de duas sociedades offshore das quais será o beneficiário juntamente com a sua mulher.

Primeiro através da Masete II e, mais tarde, já como ministro, da Tartaruga Foundation, o ex-ministro recebeu aquelas verbas. Só no período em que exerceu funções públicas, Manuel Pinho recebeu 793 mil euros de entidades ligadas ao Grupo Espírito Santo.

Quanto é que recebeu? Mesmo?

Uma coisa é a informação que já foi tornada pública — ou seja, que o ex-ministro da Economia recebeu quase um milhão de euros enquanto estava no Governo. Outra, é a verdadeira dimensão deste caso.

Os deputados poderão confrontar o ex-ministro com pedidos de esclarecimento sobre o bolo total de pagamentos do GES de que Pinho beneficiou enquanto esteve no Governo. Num primeiro momento, o Observador deu conta de que Pinho tinha recebido um milhão de euros nas suas offshores, entre 2006 e 2012 e que metade desse valor lhe foi pago já enquanto governante.

Mais tarde, a revista Visão veio acrescentar novos dados. Os procuradores do Departamento Central de Investigação e Ação Penal responsáveis pelo chamado caso EDP tinham alargado o universo temporal da investigação e chegaram ao valor atual de dois milhões de euros. Valores pagos “por ordem de Ricardo Salgado” ao “aqui arguido, ex-ministro da Economia, Manuel Pinho”, defende o Ministério Público.

Entre esses valores estão 315 mil euros que entraram na conta pessoal de Manuel Pinho no Banque Privée Espírito Santo, o banco suíço do GES, entre 2013 e 2014 — já depois do episódio do gesto taurino que fez na direção do deputado Bernardino Soares no Parlamento e que o levou a forçou as suas funções no Governo e quando já estava de regresso ao GES. Pinho era o vice-presidente da subholdingdo BES África.

registo de verbas recebidas em três das quatro offshoresconhecidas pelo Ministério Público até ao momento. E os procuradores Carlos Casimiro e Hugo Neto já começaram a traçar ligações entre o dinheiro entrado e os investimentos feitos através das contas na Suíça. Por exemplo, os magistrados acreditam que parte do dinheiro terá servido para Manuel Pinho comprar um apartamento em Nova Iorque por 1.242.265 milhões de euros. Este valor, dizem no despacho de 11 de abril que o Observador noticiou uma semana mais tarde, “coincide, grosso modo, ao preço do apartamento comprado por Manuel Pinho, em Nova Iorque, através da sua sociedade Blackwade que controla a (à data, também sua) Tartaruga Foundation”.

Questões fundamentais: quanto dinheiro recebeu do GES? E quanto desse dinheiro foi pago enquanto esteve no Governo? E por que razão, já depois de assumir funções, foi alterada a conta onde eram feitos os pagamentos?

Qual foi a moeda de troca?

O Ministério Público tem uma tese: as verbas recebidas por Manuel Pinho foram o pagamento para o ex-ministro “beneficiar esses grupos empresariais [Banco Espírito Santo/Grupo Espírito Santo] e a EDP (do qual o BES era acionista) durante o tempo em que exerceu tais funções públicas” no Governo de José Sócrates.

Há duas fases distintas neste processo no que diz respeito às alegadas contrapartidas. Numa primeira, o ex-ministro terá tido como alegada contrapartida para conceder benefícios alegadamente ilícitos à EDP a contratação como professor pela Universidade de Columbia. Está em causa um patrocínio de cerca de 1 milhão de euros que a EDP deu a essa instituição de ensino superior norte-americana para a criação de conteúdos educativos na área da energia renovável. Pinho seria convidado para lecionar uma cadeira nessa área, tendo recebido um pouco mais de 130 mil euros de remuneração.

Num segundo momento, de acordo com o Ministério Público, Pinho recebeu pagamentos do chamado “saco azul do GES” para tomar decisões que o Observador desenvolveu aqui a pretexto dos benefícios alegadamente ilícitos de 1,2 mil milhões de euros que concedeu à EDP.

Mas em que momentos a empresa foi beneficiada? O MP acredita que a transformação de 32 contratos de aquisição de energia (CAE), celebrados em 1996 entre a Companhia Portuguesa de Produção de Eletricidade (posição herdada pela EDP) e a REN sobre 27 centrais hidroelétricas (barragens) e 5 centrais térmicas, em contratos com o regime de Custos para a Manutenção do Equilíbrio Contratual (CMEC), por um lado, e o processo de extensão da concessão do Domínio Público Hídrico (DPH) pelas 27 barragens desde o fim da vigência dos CAE até ao fim da vida útil dessas barragens, são incontornáveis.

Os procuradores consideram que Manuel Pinho assinou pelo próprio punho — e ignorando pareceres dos próprios serviços que iam em sentido contrário — diplomas que valeram benefícios de 1,2 mil milhões de euros concedidos à elétrica. Benefícios que terão sido garantidos quando o BES chegou a ter 3% do capital social da EDP. Ou seja, enquanto foi acionista da empresa de energia, o GES (de que o BES fazia parte) também beneficiou com as decisões do ministro, seu ex (e futuro) quadro.

Quantas offshores tem em seu poder?

A questão está relacionada com a necessidade de saber quanto recebeu, afinal, Manuel Pinho do GES enquanto desempenhou funções públicas.

Primeiro, havia informação de duas sociedades situadas nas Ilhas Virgens e que eram tituladas por Manuel Pinho. Depois, surgiu uma terceira sociedade. Agora, já são quatro: Tartaruga Foundation, Blackwade Holding Limited, Mandalay Asset Corporation e a Masete II.

Haverá mais sociedades constituídas em paraísos fiscais? Quantas? E que verbas vindas do universo GES entraram nas contas do ex-ministro? E há outras questões que decorrem do facto de Manuel Pinho ter várias offshores em seu nome.

Há sociedades no nome de familiares seus, como era prática de outros altos quadros do GES? Ou recebeu fundos do GES através de familiares, como Miguel Frasquilho e outros quadro do GES fizeram, como Observador revelou aqui e aqui?

Três questões derradeiras sobre este ponto: considera normal ter, já como ministro, recebido pagamentos através de sociedades sediadas em paraísos fiscais? Não estranhou que esses pagamentos fossem feitos por uma sociedade que nem sequer fazia parte do organograma do Grupo Espírito Santo, como era o caso da Espírito Santo Enterprises (o chamado saco azul do GES, que serviu para fazer pagamentos fora do radar a membros da família e, mais tarde, a administradores do grupo)? E o facto de receber pagamentos de entidades ligadas ao universo BES, que por sua vez eram acionistas da EDP, limitava-o nas suas decisões sobre processos relacionados com esta empresa ou, até, com este setor?

Antes e depois do Governo. Manuel Pinho e o universo GES

Manuel Pinho foi administrador executivo de instituições integrantes do GES até ter sido convidado a integrar o Governo de José Sócrates. Os pagamentos, já vimos, não cessaram com o assumir de funções. E a ligação com o grupo também não terminou com a passagem pelo Governo.

O convite pós-passagem pelo Governo ficou a dever-se, segundo Ricardo Salgado, a divergências na interpretação das condições apresentadas por Manuel Pinho para aceitar o convite de José Sócrates para integrar o executivo liderado pelo ex-primeiro-ministro socialista.

Em 2016, o Correio da Manhã escreveu que Pinho tinha exigido ao antigo BES uma autorização para que pudesse receber uma reforma antecipada aos 55 anos. Se tivesse luz verde, aceitava o convite de Sócrates e saía do banco sem pedir licença sem vencimento.

“O acordo estabelecido em 2004, que foi aliás reafirmado ou renovado, quanto às condições de reforma antecipada, em 2005 (e a confiança por mim depositada no seu cumprimento), foi, naturalmente, condição sinequa non para poder aceitar o cargo de ministro e para não solicitar ao banco, nessa ocasião, uma licença sem vencimento”, referia Pinho numa carta enviada a Ricardo Salgado. Ou seja, Pinho acreditava que o acordo era claro. O banco via o caso de forma diferente.

“O BES nunca reconheceu” ao seu ex-quadro (e futuro) quadro “o direito à reforma antecipada nos termos por ele reclamados, não apenas porque o regulamento de pensões do BES não permitia o exercício do direito nesses termos, mas também porque o referido acordo, a ter sido celebrado sempre seria nulo por violar a competência exclusiva atribuída à Assembleia-Geral do BES em matéria de pensões”, refere a contestação ao documento enviado pelo ex-ministro.

Em suma, o GES considerou que devia compensar Manuel Pinho pelo diferendo e convidou-o para reintegrar a instituição. Por isso, depois da passagem pelo Governo, Pinho foi convidado para “participar num projecto de reorganização das participações sociais detidas pelo BES através da BES África”. Foram essas as funções assumidas entre 2010 e 2014.

A questão é só uma — e à qual Manuel Pinho nunca respondeu: por que razão voltou ao GES depois de deixar o Governo?