Com este texto damos início a uma série de artigos sobre a problemática da eutanásia e do suicídio assistido, contribuindo assim para o debate que, em Portugal, começa a dar os primeiros passos.
O que significa que o TORNADO está aberto a outras contribuições e perspectivas.
- 22 Fevereiro, 2016
- José Carlos S. de Almeida
- Já não sou um homem novo. Passei dos cinquenta e tenho consciência plena de que ultrapassei metade de um percurso, que se a nossa vida pode ser comparada com uma caminhada em direcção a um monte, sei que já fiz a parte do trajecto, a subida, e que agora é sempre a descer.
E a descer é mais rápido, com todos os santos a ajudar. Ora, quando penso no que o futuro me reserva ainda, sou por vezes assaltado com representações sobre a minha morte. Não é um pensamento frequente, mas não posso deixar de pensar nisso. Reconheço até que, mal assoma, trato imediatamente de o afastar.
Nem todos adoptam a atitude despreocupada de Epicuro que não temia a morte, porque enquanto vivíamos, a morte não existia e quando esta surgisse já tínhamos deixado de viver para nos preocuparmos com isso.
Só que nem sempre fomos mortais. Houve uma altura em que éramos imortais, pois a morte não existia, perante a intensidade da vida que se manifestava exuberantemente na nossa vida a correr.
Felizmente ou infelizmente, esse tempo já passou.
A partir de certa altura, a morte surge-nos com mais insistência. Encontramos muitos dos nossos amigos em velórios, depois de termos passado uns anos a encontrá-los em casamentos e baptizados. É uma lei da vida que a vida termine um dia. Para se morrer basta estarmos vivos.
Aos poucos, a morte começou a impor-se. Não é necessariamente terrível. A vida sem a morte, sem essa compressão, era inviável. A pressão da morte, a consciência do fim, intensifica os pequenos acontecimentos da nossa vida. Uma vida dilatada ao infinito era um convite a um apagamento do sentido, a uma diluição sem fim dos sentimentos, das emoções e dos afectos.
Essa diluição tornaria a nossa vida demasiado flat, sem marcas e sem acontecimentos marcantes, uma calmaria descolorida, sem sabor, um ir sendo que seria mais um deixar andar. Pelo contrário, a consciência de que existe um fim, coloca os acontecimentos sob a possibilidade de não se virem a repetir e intensifica a nossa vivência desses momentos. A morte não vem apenas dar um sentido à vida; vem tornar o viver como sendo a própria construção dum sentido.
Pensar na morte não é agradável. Quando ela irrompe no nosso quotidiano, somos assaltados por imagens pouco exaltantes. E no meio desses pensamentos lúgubres, aquilo que me assusta e assusta toda a gente é a ideia de uma morte dolorosa, antecedida por um longo período de sofrimento.
Sofrimento para mim e para os que na altura me rodearem, que serão por certo aqueles que eu amo e aqueles que mais me amam ou amaram. O sofrimento é sempre assustador, mesmo que uma certa moral nos tivesse educado a suportar o sofrimento e a dor como marcas duma humanidade heróica.
Quando penso nisso, também penso no que poderia ser uma morte fácil, rápida e sem dor. Uma boa morte. Se possível, ocorrendo durante o sono, sem consciência da passagem para o outro lado ou depois duma despedida assumida e festejada. Essa morte doce pode acontecer por acaso.
Mas hoje sei que também a posso desejar e planear e que em certos países do mundo e nomeadamente da Europa, perante situações de doença terminal ou de uma previsível situação que, por variadíssimas causas possa limitar assustadoramente uma vida digna, seja sob a forma de eutanásia ou de suicídio, assistidos por pessoal médico, é possível, desde que corresponda a um desejo expresso e reiterado do doente ou dos seus representantes.
Não é o caso do nosso país. Não é ainda o caso do nosso país.
Em Portugal, aqueles que me ajudassem e colaborassem nesse processo, mesmo sob a forma de ajuda ao suicídio (suicídio assistido), respondendo ao meu pedido e agindo por sentimentos de compaixão e piedade, iriam incorrer na práctica dum crime, pelo qual seriam julgados e, certamente, condenados.
Mesmo que a opinião pública ou o pessoal de saúde o não julgassem desse modo. Um modo que, aplicando cegamente a lei, é a forma mais injusta de pretensamente exercer a justiça.
No entanto, começam a surgir entre nós sinais de que as coisas começam a mudar, do mesmo modo que também assistimos às primeiras manifestações daqueles que pretendem que tudo continue inalterado. Um debate que, contudo, vimos a propósito da discussão sobre a interrupção voluntária da gravidez, mobilizando muitos dos argumentos que na altura já foram esgrimidos.
Porém, os problemas não ficam por aqui. Uma coisa é o que a lei pode vir a permitir e outra coisa é o que eu penso ou quero para mim. Eu posso defender que a lei garanta a liberdade de morrer de acordo com a vontade de cada um, sem ser a favor da solução eutanásica para o meu problema. É que quando chegar a altura não sei agora se serei capaz de tomar, então, a decisão de solicitar essa morte piedosa, uma morte que me leve durante um sono, uma morte indolor e doce, a eutanásia.
O problema é que não posso saber hoje se amanhã serei capaz ou desejarei essa morte. Eu não sei agora o que se irá passar com a minha vontade em relação a um momento que ainda está para vir. Honestamente, não posso adiantar nada sobre a minha coragem, a minha fraqueza, o meu desespero num tempo que ainda desconheço, num tempo que ainda está para vir.
Outra questão prende-se com a eventualidade de nessa altura me encontrar em coma e não conseguir manifestar a minha vontade e não a tendo expresso antes. E mesmo tendo manifestado a minha posição, estarão suficientemente seguros aqueles que me amam acerca da minha decisão, que a minha decisão ainda se mantém tal como a manifestei anteriormente?
Estes são alguns dos problemas que uma decisão antecipada sobre a morte levanta. Porém, outras questões anteriores também se colocam, a saber, se me é permitido dispor da minha vida e, portanto, da minha morte.
Trata-se duma decisão que está dentro da esfera das minhas faculdades? É uma decisão pessoal, defendem alguns. Mas é ainda uma decisão pessoal ou que se mantém na esfera íntima do indivíduo, quando para se concretizar terá que recorrer aos outros ou mesmo a instituições públicas?
O tempo da morte é sempre um tempo ainda a chegar. Era muito fácil começar a enumerar em abstracto tudo aquilo que um dia faria, tudo aquilo de que um dia seria capaz de fazer. Era muito fácil, mas não era honesto.
O que sei, contudo, para já, é que me é insuportável pensar que alguém que eu não conheço e que nem me conhece, que possivelmente nunca me viu noutra ocasião, que desconhece completamente o que eu penso, o que eu sinto, o que eu fui e sou, possa decidir por mim numa matéria que só a mim, ou a mim juntamente com aqueles que eu amo e que me amam, diz respeito.
O que eu sei desde já é que é incomportável e revoltante imaginar que alguém, precisamente quando me aproximo do fim, me possa condenar a uma pena de sofrimento prolongado e acrescentar à iminência da minha morte mais dores e sofrimento desnecessários.
No momento em que me devia preparar para me despedir daqueles que amo, em que quereria preservar uma imagem apaziguante e um rosto de serenidade, porque é assim que eu quero ser recordado, alguém que não me conhece decidirá que eu devo estar submetido a dores incalculáveis que me absorverão por completo e me impedirão de viver os últimos dias da minha vida de acordo com os meus desejos.
A legitimidade que possui para me tratar não lhe confere um poder absoluto para decidir sobre o que acha que é melhor para mim. Tal como os meus familiares não possuem esse poder se eu estiver em condições de pensar e decidir. Essa pessoa está a retirar-me a possibilidade de viver até ao fim como eu desejo, quando curiosamente me impede de me retirar de cena mais cedo. Essa pessoa aceita que seja ela a decidir e não aceita que eu decida?
O que é insuportável é que um desconhecido possa decidir aplicar-me uma pena que eu nada fiz para merecer.
Em nome de quê pode alguém fazer-me sofrer e recusar a minha vontade?
Neste momento, em Portugal, os médicos, os políticos e os legisladores, uns por acção e outros por omissão, decidem como é que eu e qualquer um que opte por morrer em Portugal, deverão terminar os seus dias; retiram da minha esfera jurídica ou negam que esteja no âmbito da minha vontade decidir como e quando pretendo morrer — entendem que não faz parte do catálogo dos meus direitos fundamentais o direito a morrer.
Argumentam em nome do direito à vida. Só que confundem o direito à vida com o dever de viver. O dever de viver a qualquer preço, independentemente da qualidade desse viver.
Ora, obrigar-me a viver pode não ser o modo mais dignificante de defender o direito à vida que tanto parecem prezar.