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sábado, 5 de maio de 2018

A história completa de como Sócrates dominou o PS

05 Maio 2018377

Rita Dinis

Rita Tavares

Primeiro, a JS da Covilhã. Depois, o poder em Castelo Branco, o lugar de deputado, o cargo no governo e a liderança. Ano a ano, pouco a pouco, conquistou o PS. Eis a história de um plano que deu certo

  1. Covilhã. Como Sócrates entra no PS
  2. Parlamento. O “provinciano” que chega a deputado
  3. Governo. Uma desilusão e uma guerra no Ambiente
  4. Liderança. O caminho na oposição até à conquista do PS

Covilhã. Como Sócrates entra no PS

Era o segundo fim de semana de julho e, por isso, lá estava ele. Num Mercedes, com calças verdes (ou, consoante as memórias, um casaco amarelo) que lhe davam um ar ligeiramente excêntrico. Nunca chegou a viver em Vilar de Maçada, concelho de Alijó, Vila Real, mas a terra que unia as raízes da mãe e do pai sempre fez parte do seu itinerário. Nem que fosse naquela paragem obrigatória de verão, quando a vila parava por causa das festas em honra de Nosso Senhor Jesus da Capelinha. Começou por ir levado pelo pai, meio a contragosto. Depois, já mais velho, ia pela força da vontade. Era, lá está, o segundo domingo de julho, algures na segunda metade da década de 70, e os rapazes mais novos da terra viam-no chegar ao volante com curiosidade. “Eu era um miúdo aos olhos dele, não me ligava nenhuma, mas ele fazia-se notar. Era o protótipo do rapaz popular, rodeado de pessoas que se via que gostavam dele”, conta ao Observador um conterrâneo, que se tornaria também político mas que não quer ser identificado.

Tinha um “magnetismo especial”. Era isso. Há aqueles miúdos que passam despercebidos e há os outros, os que exercem influência sobre o grupo — e que não gostam de perder em nada. Nem no xadrez. Sobretudo no xadrez, jogo que gostava de jogar mas onde não admitia ficar em segundo. Em comparação com os outros jovens da mesma idade, nascidos e criados no interior do país, este tinha mais estatuto, mais autonomia, mais mundo. “Naquela altura, há 30 ou 40 anos, o estatuto de uma família media-se pelo número de carros e de empregadas que tinha. Tinham carro? Tinham. Tinham empregada? Tinham: quatro. Tinham uma empregada só para as crianças? Tinham!”. Não era comum. “Era mais moderno do que as pessoas do seu tempo, que quanto mais seguissem o padrão, melhor”, conta outro amigo de infância. “Tinha vontade de ser diferente.”

Hoje, há quem olhe para trás e recorde uma “certa mitologia” que havia à volta daquela família de Vila Real. Parece que o avô materno, Júlio “Reco” Monteiro, que terá feito fortuna com as minas de volfrâmio e que mais tarde teria sucesso no negócio imobiliário, não queria que a filha Maria Adelaide casasse com o jovem arquiteto Fernando Pinto de Sousa. As duas famílias eram da mesma vila, mas enquanto os primeiros eram vistos como uma espécie de aristocracia rural, os segundos, de origens mais humildes, eram uma espécie de burguesia ascendente. Novos ricos. E isso não agradava a Júlio Reco. Os dois apaixonados levariam a melhor: Maria Adelaide casou-se com o arquiteto Fernando Pinto de Sousa, mas o casamento não durou, e — afronta das afrontas –, separaram-se anos antes do 25 de abril, quando a sociedade ainda reprovava o divórcio. Até nisso, os pais eram “mais modernos do que as pessoas do seu tempo”. Depois da separação, Zé, o filho do meio, ficaria com o pai na Covilhã; e Ana Maria e António José, filha mais velha e filho mais novo, debaixo das saias da mãe.

"Naquela altura, há 30 ou 40 anos, o estatuto de uma família media-se pelo número de carros e de empregadas que tinha. A família de Sócrates tinham carro? Tinha. Tinha empregada? Tinha: quatro. Tinha uma empregada só para as crianças? Tinha!”

Amigo de infância de José Sócrates

Mas esta não é uma história familiar, nem sequer é a história de José Sócrates Carvalho Pinto de Sousa, o Zézito que gostava de ser tratado pelo seu nome de filósofo. Esta é a história de como um jovem que não fez carreira na Jota subiu os degraus do poder, embalado por um vento favorável de sucessão de acontecimentos. Que depois virou tempestade — mas isso seria muito, muito depois.

Tudo começou quando, aos 26 anos, José Sócrates conquistou a liderança da federação socialista de Castelo Branco, em 1984, num feito que surpreendeu tudo e todos e que agradou a uma pessoa em particular: António Guterres. É que Sócrates só andava na juventude partidária há coisa de dois ou três anos e era praticamente um desconhecido na região. Primeiro fez frente a Guterres, conterrâneo do mesmo distrito; e, depois, tornou-se o primeiro líder de uma federação do PS a ser abertamente contra Mário Soares e a favor do grupo do ex-Secretariado, o famoso grupo que se reunia no sótão de Guterres em Algés. Como é que isto aconteceu? Com um plano minucioso arquitetado com o amigo Jorge Patrão. Tudo começou na Covilhã.

JS, um meio para atingir um fim

Foi uma “jogada de mestre”, descreve uma fonte que conheceu José Sócrates naquele congresso distrital de 1984, e que viria a acompanhá-lo desde então. O plano foi arquitetado por José Sócrates e por Jorge Patrão, o amigo de infância que o “convenceu” a entrar na política. Primeiro na JSD, depois na JS. Sim, na JSD, nos tempos quentes do pós-25 de abril de 1974. “Foi um incidente. Na altura, eu era um verdadeiro social-democrata, como aliás ainda sou hoje. E mantenho-me fiel a esses ideais do socialismo reformista. Por isso, em 74, inscrevi-me logo no primeiro partido com o nome de Social Democrata. Era um dogmático em relação à social-democracia e achava que esta seria uma boa resposta para as sociedades. Inscrevi-me no PSD juntamente com o meu amigo Jorge Patrão, que é hoje presidente da Região de Turismo da Serra da Estrela, e com o Luís Patrão, seu irmão”, disse Sócrates em 2001, numa entrevista ao jornal online da Universidade da Beira Interior, da Covilhã, quando já era ministro do Ambiente de Guterres. A saída do PSD aconteceu logo em 1975, no congresso de Aveiro, na mesma altura em que abandonaram o partido outras figuras, como Mota Pinto. Saiu quando se apercebeu, conta, de que “o nome PSD não correspondia aos ideais políticos de um partido liberal”.

“Primeiro, não tinha nenhuma vocação para a política partidária, e, depois, os meus interesses eram muito variados: teatro, filosofia, cinema, política também. Tudo aquilo que um jovem, nessa altura, num momento de tamanha turbulência tinha. Não sentia um interesse orgânico pela política.”

José Sócrates citado no livro “Sócrates – O menino de ouro do PS”

Depois da primeira incursão na JSD, Sócrates manteve-se fora da atividade partidária. Inclusive durante o tempo em que tirou o bacharelato no Instituto Superior de Engenharia de Coimbra e conviveu de perto com Luís Patrão, que era dirigente da associação académica e filiado na JS. Acabado o curso, Sócrates trocou a Covilhã, onde vivia, por Lisboa. Foi para Cascais, para um apartamento junto da mãe e dos irmãos, que entretanto tinham deixado Vila Real. Mas foi da família do pai que se aproximou — através do tio António Pinto de Sousa, que também vivia na Linha. Este foi o tempo das saídas, das festas, e de conhecer o estrangeiro: pegou num carro, certo verão, e foi com um amigo de Chaves rumo a Espanha, França e Holanda, de tenda às costas. Trabalharam nas vindimas e fizeram vida comunitária. O PS — e a JS –, por esta hora, ainda estavam longe das suas ideias. “Primeiro, não tinha nenhuma vocação para a política partidária; e, depois, os meus interesses eram muito variados: teatro, filosofia, cinema, política também. Tudo aquilo que um jovem, nessa altura, num momento de tamanha turbulência, tinha. Não sentia um interesse orgânico pela política”, contaria a Eduarda Maio, na biografia “Sócrates — O menino de ouro do PS”.

Isto mudou quando, em 1980, José Sócrates foi colocado, sem grande entusiasmo, como engenheiro técnico na Câmara Municipal da Covilhã, na área do saneamento municipal. Se até aqui só estava com os irmãos Patrão nas férias grandes, o regresso à Covilhã foi também o regresso ao contacto diário com os dois, que eram militantes na Juventude Socialista local. Foi nessa altura que Jorge Patrão o convenceu a filiar-se. Já aí, Sócrates tinha uma agenda: desde que Mário Soares ensaiara, em 1978, uma coligação falhada com os democratas-cristãos que, no limite, conduziu à vitória eleitoral do PSD de Sá Carneiro em coligação com o CDS de Freitas do Amaral, que os socialistas se dividiram entre o PS pró-Mário Soares e o PS do sangue novo, que se reunia no sótão de António Guterres em Algés, e onde estavam figuras como Jorge Sampaio, António Arnaut ou Vítor Constâncio. Era o chamado grupo do ex-Secretariado. Sócrates queria dar-lhes gás, e foi por isso que se juntou à Jota na Covilhã.

Mas que poder ou influência tinha José Sócrates para apoiar ou mudar alguma coisa? Nenhum, aparentemente, mas depressa encontraria uma maneira de intervir. Dinheiro, pelo menos, tinha. É que o avô materno, Júlio César “Reco” Monteiro, morrera no início da década de 80 e deixara a fortuna aos filhos. Para a mãe de Sócrates foi uma grande fatia, que distribuiu pelos seus filhos. Era, sobretudo, património imobiliário, mas José Sócrates fez questão de pedir a sua parte em dinheiro — iria usá-lo na política.

Fez frente a Guterres e tornou-se o seu delfim

O primeiro envolvimento político foi na elaboração das listas de deputados no distrito de Castelo Branco, nas eleições legislativas de abril de 1983, onde Sócrates e Jorge Patrão, que tinham peso na JS da Covilhã, se bateram para que António Guterres não fosse excluído da lista de deputados. Não tiveram sucesso — a direção nacional de Mário Soares quis limpar os membros do ex-Secretariado para não minarem a bancada no Parlamento. De qualquer forma, e apesar da oposição interna crescente, o PS de Mário Soares voltou ao poder (mas em bloco central, com o PSD de Carlos Mota Pinto). Paralelamente, travou-se a primeira verdadeira luta de José Sócrates, esta sim protagonizada por ele e pelo amigo Jorge Patrão: ganhar peso no partido.

No mesmo ano, realizou-se o V Congresso do PS e o plano de Sócrates e Patrão era pôr membros da JS da Covilhã como delegados ao congresso. Como é que isso se fazia? Primeiro, era preciso uma lista. Depois, dinheiro para a promoção da lista: aí entrou Sócrates, que financiou tudo, usando o seu ordenado da câmara e o seu Mercedes pessoal para as voltinhas de campanha pelo concelho. Se não chegava, pedia dinheiro à mãe. E, depois, era preciso que a sua lista ganhasse para poderem ser eles, os jotas, a indicar o nome da Covilhã para a comissão nacional do PS. Foi aqui que Sócrates teve de fazer frente a Guterres, e foi isso que lhe valeu a sua admiração.

José Sócrates numa intervenção no plenário do Parlamento, em 1988

Edite Estrela, que viria a ser amiga próxima de Sócrates nos tempos da Assembleia da República, e até madrinha de casamento, lembra-se bem dessa altura, porque foi quando o conheceu. “Foi António Guterres que me apresentou o José Sócrates, por volta de 1983, depois da confusão das listas a deputados no distrito de Castelo Branco nas legislativas de 1983. Jorge Patrão e José Sócrates tentaram pôr membros da JS da Covilhã no Congresso do PS e conseguiram, derrotando a lista apoiada pelo Guterres. Essa vitória impressionou-o. Guterres falava dele como um político muito promissor, com muita admiração”, diz ao Observador.

Regra número um: “Em democracia, quem ganha decide” (como viria a dizer José Sócrates cara a cara com António Guterres). Foi com esta máxima que a dupla Sócrates-Patrão se empenhou em ganhar a representação do PS da Covilhã no Congresso nacional do partido. Os dados eram estes: a concelhia da Covilhã era liderada por Alfredo Pinto da Silva, deputado constituinte e amigo próximo de Guterres; os jovens socialistas da Covilhã propuseram-lhe que alternasse a lista de delegados ao congresso entre um sénior e um jota, mas Pinto da Silva não concordou; a única solução era criar uma lista concorrente, só com membros da JS, com Patrão e Sócrates à cabeça. Essa lista acabou por concorrer contra a de Pinto da Silva, que apoiava Guterres, e contra uma outra, encabeçada pelo presidente da câmara da Covilhã e afeta à direção nacional de Mário Soares. O acordo é explicado ao pormenor por Fernando Serrasqueiro, na biografia “Sócrates — O menino de ouro do PS”: António Guterres não saiu nada favorecido com esta divisão naquele que era o principal concelho do distrito de Castelo Branco, mas Sócrates e Patrão não hesitaram.

Resultado? Cada lista elegeu dois delegados ao Congresso, e, surpresa das surpresas, a lista dos juniores foi mesmo a mais votada. Logo, era a eles que cabia escolher o nome para representar a Covilhã nos órgãos nacionais do partido. Quem não gostou disto foi António Guterres, que precisava de ver a sua posição consolidada no PS. Nas vésperas do Congresso, Guterres foi, ele próprio, ter com os jovens turcos à Covilhã para os convencer a juntar-se aos outros dois delegados eleitos pela lista afeta ao ex-Secretariado, e deixá-los ser eles a indicar o nome. Mas os jovens turcos não se amedrontaram com a presença de uma figura como Guterres, que por aquela altura não conheciam, e estavam irredutíveis. “Tivemos mais votos, portanto quem indica o representante da Covilhã para a comissão nacional temos de ser nós”, diria, citado na biografia de Eduarda Maio. Fim de história. Guterres tentaria novamente, já em Lisboa, na véspera do congresso, mas mais uma vez sem sucesso: “Pronto, ganharam”. Foi assim que Jorge Patrão, o amigo de sempre de Sócrates, foi eleito para a comissão nacional do PS.

À conquista da Federação de Castelo Branco (e um segundo takecontra Seguro)

Depois da concelhia, o distrito. Próximo passo: conquistar a federação de Castelo Branco. “A ambição política dele só se começou a notar mais quando foi para a federação de Castelo Branco, a partir daí é que tomou o gosto”, conta ao Observador um amigo próximo que prefere não ser identificado. É que se Jorge Patrão tinha sido o nome indicado pela Covilhã para os órgãos nacionais do PS, agora era a vez de ser José Sócrates a brilhar. O plano era derrotar os soaristas de Castelo Branco e fazer eleger Sócrates no congresso distrital de fevereiro de 1984. A tarefa não era fácil, já que os delegados afetos a Mário Soares estavam em maioria e tinham 30 lugares por inerência. Se conseguisse, Castelo Branco viria a ser uma das primeiras distritais a apoiar formalmente o ex-Secretariado (a fação de Guterres) em vez de apoiar Mário Soares, que na altura estava no Governo de mãos dadas com o PSD. E se José Sócrates fosse o homem responsável por liderar a primeira distrital que apoiava Guterres, certamente não seria esquecido.

“Foi o António Guterres que me apresentou o José Sócrates, por volta de 1983, depois da confusão das listas a deputados no distrito de Castelo Branco nas legislativas de 1983. A vitória na Covilhã impressionou-o. Guterres falava dele como um político muito promissor, com muita admiração.”

Edite Estrela

Assim foi. “O Jorge Patrão disse-me: agora vamos conquistar a federação de Castelo Branco. Federação? Eu naquela altura nem sabia como é que o PS se organizava. O Jorge é que me explicou tudo”, conta Sócrates na biografia de Eduarda Maio. O plano era fazer uma lista única de socialistas na Covilhã, que albergasse tanto soaristas como afetos ao ex-Secretariado. Depois do brilharete que os jovens turcos da Covilhã tinham feito no congresso do PS, estavam bem posicionados. Sócrates encabeçaria a lista, não só porque, lá está, era a sua vez de brilhar, como também porque, explica na mesma biografia, se Jorge Patrão era considerado radical aos olhos dos soaristas, José Sócrates (que na altura era pouco conhecido por este nome de filósofo, mas mais por José Pinto de Sousa) não tinha anticorpos e era considerado mais moderado.

Ainda assim, foi preciso um plano em duas frentes. Aos socialistas da Covilhã, Sócrates puxava pela rivalidade entre municípios e dizia que a única chance que tinham de ganhar o congresso aos socialistas de Castelo Branco (que ganhavam sempre) era as duas fações (soaristas e ex-Secretariado) unirem-se. Aos socialistas dos outros concelhos, incluindo Castelo Branco, o truque era não falar de rivalidades entre os municípios e apontar antes aos apoiantes do ex-Secretariado com a conversa de que tinham de se unir para ganharem o primeiro distrito a Mário Soares. Para isso, os socialistas da Covilhã eram imprescindíveis. Plano traçado, e até António Guterres se empenhou, ele próprio, em ver José Sócrates eleito líder da federação distrital de Castelo Branco. Apresentou-o a todos os homens do distrito que precisava de conhecer, recolheu apoios e espalhou a palavra.

Guterres e Sócrates na campanha das legislativas, em 1999. Guterres comentava com o seu staff: “Veste-se de uma maneira…”

O carimbo Guterres foi decisivo para os socialistas da Covilhã, encabeçados por Sócrates, terem conseguido eleger 21 delegados ao Congresso de Castelo Branco, numa lista única, que juntava de forma inédita no concelho soaristas com guterristas. Foi o suficiente para fazer frente à lista de Martins Pires, até então líder da distrital, afeto à direção de Mário Soares. A lista de Sócrates, que contou com os apoiantes do ex-Secretariado de Idanha-a-Nova e Penamacor, venceu o Congresso por uma margem estreita, mas venceu: 46 votos contra 44. A 12 de fevereiro de 1984, com 26 anos, José Sócrates tornou-se líder da federação socialista de Castelo Branco, conseguindo o feito a que se tinha proposto: ser a primeira federação a apoiar os socialistas do ex-Secretariado, oposição interna ao PS de Mário Soares.

Nos dias seguintes, a 17 de fevereiro, o Jornal do Fundão trazia a notícia sobre o Congresso: “Vitória do ex-Secretariado em maré de reconciliação”. “O desfecho do Congresso de Castelo Branco projetou Guterres. Muitos dirigentes nacionais têm curiosidade em conhecê-lo e a corte de Lisboa começa a abrir-se”, lê-se na biografia “Sócrates — O menino de Ouro do PS”. Mas não foi só Guterres a ganhar projeção com a eleição. O próprio José Sócrates ficou com maior protagonismo — e era apenas um engenheiro da câmara da Covilhã, que só tinha entrado para a Jota três anos antes.

Nas legislativas de 1985, que puseramm fim ao Governo de Bloco Central e elegeram Cavaco Silva como primeiro-ministro, o PS não ganhou em Castelo Branco e Sócrates não conseguiu o que mais queria nessa altura: ser eleito deputado à Assembleia da República. Ainda assim, recandidatou-se no ano seguinte a um novo mandato no distrito, e conseguiu manter-se como líder da federação. Por essa altura, Mário Soares tinha perdido o governo mas vencera as eleições presidenciais. Quem foi o adversário de Sócrates nesse segundo take distrital? António José Seguro, natural de Penamacor, que era muito crítico da gestão socrática no distrito, apelidando-a de “um clube de amigos”, segundo notícias recolhidas da altura.



Jornal Notícias da Covilhã de 11 de Abril de 1986

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No Notícias da Covilhã de 11 de Abril de 1986, José Sócrates é citado a descrever o porquê da recandidatura: “Em primeiro lugar, recandidato-me porque faço um balanço positivo do trabalho da atual federação. Podemos estar satisfeitos com o trabalho desenvolvido nos últimos dois anos, designadamente com o período que vai desde maio até às eleições presidenciais, durante o qual foi desenvolvido um intenso trabalho eleitoral. Depois da derrota eleitoral de 6 de outubro, o partido reagiu muito bem e todos os militantes arregaçaram as mangas, não se deixaram vencer pelo desânimo e, pelo contrário, encontraram na sua condição de socialistas mais razões para se afirmarem como homens de esquerda e como cidadãos interessados no desenvolvimento do seu país num prisma de solidariedade e de justiça social. Assim, também porque estou profundamente envolvido na nova postura que acho que o PS deve assumir no futuro e que corresponderá ao fecho de um ciclo que o PS teve nos últimos anos, caracterizado por uma liderança carismática muito forte e ao começo de um ciclo que com certeza o PS irá ver caracterizado pela renovação da proposta, projeto e modos de atuação interna do partido, me recandidato ao cargo que exerço”. A ideia era apoiar Vítor Constâncio como próximo secretário-geral do PS.

Sócrates contra António José Seguro, ganhou Sócrates. Reinou o “consenso na renovação”, como apelidava o Notícias da Covilhã no dia 24 de abril de 1986, na antevéspera do Congresso que iria votar as duas moções. Dos 76 delegados, 56 apoiaram Sócrates. Consolidada que estava a sua posição no distrito, foi precisamente nesse ano que conseguiu pela primeira vez chegar aos órgãos da direção nacional do PS, numa sequência previsível: Vítor Constâncio é eleito secretário-geral no congresso de junho; Guterres volta para o secretariado do partido e para a comissão política nacional; leva consigo José Sócrates e Jorge Patrão, os jovens turcos que o tinham ajudado — e que assim se tornam dirigentes nacionais do PS.

“A ambição política dele só se começou a notar mais quando foi para a federação de Castelo Branco, a partir daí é que tomou o gosto.”

Um amigo próximo de José Sócrates em declarações ao Observador

Tudo seguiu o rumo que Sócrates queria. O governo minoritário de Cavaco Silva acabou por cair, e, nas legislativas de 1987, que deram a primeira maioria absoluta a Cavaco, José Sócrates conseguiu uma vitória pessoal: é o número dois da lista de deputados por Castelo Branco, logo atrás de António Guterres, e aos 29 anos chega pela primeira vez à Assembleia da República.

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Parlamento. O “provinciano” que chega a deputado

Até António Guterres comentava com o seu staff: “Veste-se de uma maneira…”. “Calças verdes” ou “casaco amarelo” são duas das descrições que permanecem na memória de alguns dos socialistas quando lembram aquele José Sócrates recém-chegado ao Parlamento, em 1987. Estava a menos de um mês de entrar na casa dos 30 e, “do ponto de vista do padrão dos deputados, era diferente”, diz um socialista que se lembra dele nessa altura. “Era uma lufada de ar fresco no grupo parlamentar.”

A incursão de Sócrates nas elites políticas em Lisboa começara antes, ao ganhar o reconhecimento de António Guterres, depois de vencer a federação socialista de Castelo Branco. A partir daí, fevereiro de 1984, começou a frequentar os plenários no “sótão de Guterres”, onde conspirava o grupo de oposição à liderança do PS de Mário Soares.

No famoso sótão da casa que se situava no início de uma das avenidas principais de Algés, juntava-se, sobretudo nas vésperas de reuniões da Comissão Nacional do partido, um grupo que foi crescendo ao longo dos anos e que incluía nomes como Jorge Coelho, João Cravinho, António Arnaut, Fausto Correia, Arons de Carvalho, Galvão Teles. No primeiro volume da biografia de Jorge Sampaio, de José Pedro Castanheira, o antigo líder socialista descreve esta organização como “uma coisa relativamente temida”.

Já José Sócrates lembra, no livro “Menino de Ouro”, que “era talvez o mais novo” a marcar presença nas “notáveis reuniões” que descreve como “muito intimistas”: “Cabiam vinte ou trinta pessoas. Reuniamo-nos lá, estávamos ali a discutir até às tantas da manhã a preparar a comissão nacional do dia seguinte”. Sócrates foi convidado a participar por António Guterres, por liderar a federação de Castelo Branco, mas o seu papel neste círculo não foi de todo relevante. Aliás, quando questionados sobre a presença de Sócrates nestes encontros, alguns dos socialistas que faziam então parte do núcleo duro do sótão dizem mesmo não se lembrarem sequer da sua presença nas reuniões.

Quando foi eleito líder do PS de Castelo Branco, Sócrates tinha 26 anos, mas pouca importância no círculo que contava no PS. Era um opositor à liderança, mas mesmo nesse grupo ainda não tinha uma voz audível. Era sobretudo uma peça tida como estratégica, por Guterres, no conjunto do aparelho. Aguardava a sua vez, tal como outros nomes que por aquela altura começaram a frequentar o sótão — era também o caso de António Costa, pela Juventude Socialista. Além disso, o sótão perdeu algum fôlego pouco depois de Sócrates lá ter entrado, quando em 1986 Vítor Constâncio chegou à liderança do PS. As conspirações dos guterristas não ficariam, contudo, por aqui. E, na fase que se seguiu, Sócrates já contava. Mas já lá iremos.

Quando questionados sobre a presença de Sócrates no famoso sótão de Guterres, alguns dos socialistas que faziam então parte do núcleo duro do sótão dizem mesmo não se lembrarem sequer da sua presença nas reuniões.

Durante esse período de iniciação em Lisboa, o socialista da Beira Interior ficara à porta do Parlamento, não conseguindo ser eleito deputado. Mas em 1987 a moção de censura do Partido Renovador Democrático precipitou o país para eleições antecipadas. Ironia: o mesmo PRD que em 1985 inviabilizara a eleição de mais do que um deputado do PS por Castelo Branco — José Sócrates — abria agora o caminho a uma nova oportunidade na Assembleia da República a esse mesmo socialista, dois anos antes do que o próprio esperava.

A 19 de julho de 1987, José Sócrates voltou a concorrer como segundo da lista do PS pelo distrito. No país laranja da primeira maioria de Cavaco, Castelo Branco também não falhou no apoio ao PSD, mas o PS teve a percentagem de votos suficiente (22%) para conseguir eleger dois deputados pelo distrito. Finalmente, Sócrates chegava à Assembleia da República, a 13 de agosto de 1987, nada familiarizado com os compridos corredores alcatifados a vermelho, com as salas pomposas de mobília clássica, com os Passos Perdidos, com a agitação parlamentar. Levou para entregar nos serviços uma foto tipo passe com camisa apertada até cima, sem gravata, olhos bem abertos para a fotografia que ficou colada no seu primeiro registo biográfico.

O nome artístico no Parlamento. Ou quando o nome “é um destino”

De barba sempre bem feita, cabelo ainda sem o grisalho que o caracterizaria nos anos que se iriam seguir, chegou para a tomada de posse. Preencheu o registo biográfico dos deputados com as duas moradas de então, a da Covilhã e a de Cascais. Nas habilitações literárias, escreveu: “Bacharelato em engenharia civil pelo Instituto Superior de Engenharia de Coimbra”. No fim, assinou “José Sócrates CP Sousa”, mas o nome que assumiu como deputado foi simplesmente “José Sócrates”. Era sonante, invulgar, marcante. “Ele tem na cabeça que até o próprio nome é um destino”, explica um socialista que fez parte do seu núcleo duro em 2005.

Registo biográfico de Sócrates quando chegou ao Parlamento, em 1987

Mas em julho de 2004, na célebre entrevista ao Expresso do “animal feroz”, Sócrates não falou em destino ao lembrar esses anos — dizia ver naquele tempo “um deputado de província, de Castelo Branco…”. Apesar dessa imagem que conservava de si mesmo, a verdade é que a vontade de ter sucesso no palco lisboeta detetou-se cedo.

Quando chegou ao Parlamento, sentiu necessidade de se valorizar academicamente, era a sua forma de ganhar patine e ser respeitado nos salões políticos onde queria afirmar-se rapidamente. O meio era competitivo e entre os seus colegas do plenário repetiam-se os advogados ou deputados com formação em Direito. Sócrates era bacharel em engenharia civil, por isso aproveitou para tentar Direito, na Universidade Lusíada de Lisboa. Esteve inscrito no curso até 1993, mas nunca o terminou. O capítulo universitário havia de lhe trazer problemas muitos anos depois, mas é aqui neste ponto que começa a caminhada em busca de uma licenciatura, que já tinha percebido ser importante para chegar onde queria.

Rapidamente se aproximou de Armando Vara, que era já um deputado experiente (estava no Parlamento desde 1983, eleito pelo círculo de Bragança), mas também de outros nomes recém-chegados ao Parlamento, como Edite Estrela ou Laurentino Dias. Edite Estrela recorda-se de um Sócrates “tímido”. Já se tinham cruzado em Lisboa, numa reunião no Rato depois de Sócrates ter sido eleito líder da federação de Castelo Branco. Foi Guterres quem os apresentou, depois acabaram por tornar-se colegas de bancada no Parlamento e grandes amigos, tanto que foi Edite Estrela a aproximá-lo de Sofia Fava, a mulher com quem havia de casar em novembro de 1992.  A sua amiga socialista foi a madrinha e Laurentino Dias o padrinho, depois de terem sido os dois as testemunhas do primeiro encontro entre José e Sofia: um almoço junto ao Parlamento.

Anos antes desse momento, quando Sócrates chegou à Assembleia da República, ia com “ideias próprias, com determinação, apesar de alguma timidez”, recorda a deputada socialista, que justifica outra impressão que o amigo deixava em quem com ele falava por aquela altura (e não só): “A arrogância que alguns lhe atribuem às vezes não é mais do que timidez”.

Por essa altura, Sócrates queixava-se, a quem com ele mais convivia nesses tempos, das exigências que em Lisboa se colocavam a quem chegava do interior. Anos mais tarde, assumiria isso mesmo numa entrevista a um jornal online da Covilhã, o Urbi et Orbi: “As pessoas do interior, para se afirmarem na corte lisboeta, têm de ser muito mais talentosas do que as pessoas de Lisboa. Muito mais mesmo”.

Mas o estilo de vida de Sócrates não era propriamente provinciano. Nessa altura, convivia muito com os primos, filhos do irmão do pai, que viviam em Cascais. Frequentava a noite lisboeta, as discotecas da moda e os restaurantes mais requintados. E Sócrates ia, assim, cunhando um certo estilo cosmopolita. Edite Estrela garante que o amigo “não era o protótipo de deputado de província naquela altura, que não tinha mundo; viajava, tinha contactos, sobretudo lia muito”.

Estreia com o naturismo e o filão dos “temas da modernidade”

A 16 de dezembro de 1987, entrava nervoso no plenário. Levava como incumbência intervir no debate das propostas de Orçamento do Estado e das Grandes Opções do Plano para 1988, trazidas ao Parlamento pelo Governo de Cavaco Silva. Levantou-se na bancada socialista pela primeira vez para pedir a palavra ao presidente Vítor Crespo, que lha concedeu. Começou: “Sr. Ministro do Planeamento e da Administração do Território, é consensualmente reconhecido como sendo um obstáculo sério ao crescimento económico do país a realidade dualista do desenvolvimento regional português”. A intervenção foi sobre o impacto daquele Orçamento do Estado na região de Castelo Branco. Anos mais tarde, em julho de 2004, numa entrevista ao Expresso, havia de dizer que, mesmo já mais experiente, mantinha o nervosismo de sempre antes de intervir no Parlamento, sobretudo nos momentos críticos: “Aquela casa é muito exigente”.

Os primeiros passos na carreira política em Lisboa foram interrompidos abruptamente em março de 1988, quando lhe ligaram da Covilhã: Ana Maria, a sua irmã três anos mais velha, tinha morrido. Síncope cardíaca foi o motivo avançado pela família. Sócrates saiu disparado para junto da mãe e pediu até a suspensão temporária do mandato de deputado. Durante 25 dias (entre 18 de março e 11 de abril) acompanhou a família e fez o luto de um momento que descreve como aquele que lhe “fez diminuir o entusiasmo pela vida”: “Era muito alegre, mas a morte da minha irmã modificou-me”, disse na entrevista ao Expresso de 2004.

“Não foi fácil para ele aceitar ser secretário de Estado porque tinha sido o responsável por aquelas áreas no PS durante quatro anos e depois o cargo de ministro ficou para outra pessoa, mas Guterres achou-o imaturo.”

Antigo governante próximo de Guterres

Dias depois do regresso à Assembleia da República, fez a sua primeira intervenção no púlpito do plenário. A 19 de abril. Tema? A apresentação de um projeto do Partido Ecologista Os Verdes sobre o naturismo.

“Senhor Presidente, senhoras e senhores deputados: o projeto de lei em discussão respeita à prática do naturismo, entendido na perspectiva higienista e definido pela Federação Naturista Internacional como ‘a maneira de viver em harmonia com a natureza caracterizada por uma política de nudez em comum que tem por fim favorecer o respeito por si mesmo, o respeito pelos outros e o respeito pelo ambiente’”. Estas foram as primeira palavras da intervenção, que depois continuava elencando os benefícios do naturismo para a “saúde física e mental, para o desejável equilíbrio emocional, libertando as mentalidades de complexos de moral sexual, retrógadas e bloqueadoras”. Sócrates terminou dizendo que o PS ia acompanhar a questão, no debate que se seguiria na especialidade, e recebeu aplausos do PS e também do PCP e do PRD. Estava feita a estreia.

A partir daí, não parou. Apanhou o filão dos temas polémicos, ou com “marca de modernidade”, como nota um destacado socialista. A sida e a punição criminal de pessoas infetadas com o vírus que tivessem comportamentos de risco, a regionalização. Neste último com um ataque forte feito no plenário do Parlamento diretamente ao primeiro-ministro Cavaco Silva, que acusou de não querer dar poder às “periferias”: “Incomoda-o haver no país outros poderes que não o seu”. Era só o início daquela que iria ser uma das relações mais crispadas da sua carreira política.

O porta-voz de Guterres para o Ambiente

A afirmação definitiva de Sócrates deu-se quando António Guterres assumiu a presidência do grupo parlamentar. Guterres trilhava o seu próprio caminho rumo à liderança do partido e vincava no grupo parlamentar um círculo da sua confiança. Sócrates foi escolhido para a direção, juntamente com António Vitorino, Jorge Lacão, José Lello, Armando Vara e Edite Estrela. Aqui, Sócrates começou a ganhar um papel de relevo e era ouvido por António Guterres, que lhe entregou a coordenação de um tema de importância política ascendente: o Ambiente.

Foi aqui que Sócrates começou a ganhar protagonismo e relevância política perante os seus pares. Até então, remoía o complexo do provinciano, como revelou na entrevista já citada que deu ao jornal Urbi et Orbi: “Toda a gente que ocupa lugares de destaque sabe o que se passa até chegar à afirmação política numa corte muito invejosa, muito ciumenta, muito pequena, também, ela própria, provinciana. Olha sempre para quem vem perguntando se ele saberá pisar, se tem modos, se será inteligente e se estará à altura para participar”. Era esta a pressão que sentia ao chegar a Lisboa. Deu-lhe resposta mostrando-se cada vez mais cuidado com a imagem e com os locais que frequentava. Sabia que tudo isso teria peso e valorizaria a sua figura política.

Armando Trigo de Abreu, António Guterres e José Sócrates numa conferência de imprensa no Parlamento sobre áreas protegidas, em 1990

Nessa altura já Sócrates tinha crescido muito politicamente. Um exemplo: Guterres ouviu-o quando desafiou a liderança de Jorge Sampaio, depois do desaire socialista nas legislativas em que Cavaco Silva conquistou a sua segunda maioria absoluta.

Porta-voz do PS para a área do ambiente, o caminho até às legislativas e ao desejado — entre socialistas — fim do cavaquismo ainda era longo, mas Sócrates percebeu ali que lhe tinha sido entregue uma pasta de futuro. O país estava ainda pouco ou nada sensibilizado para as causas ambientais, mas entre os parceiros europeus esta matéria já ocupava espaço suficiente para se perceber que Portugal tinha de mudar rapidamente. E Sócrates agarrou a tarefa com a ambição de vir a chegar a governante nesta área no futuro próximo.

Informou-se, documentou-se, promoveu conselhos consultivos com especialistas da área para saber mais, preparou-se de forma quase obsessiva. Foi ganhando palco político à medida que fazia oposição nesta área, no Parlamento, ao Governo de Cavaco Silva. Percebeu cedo que havia muitos caminhos para explorar nos corredores parlamentares e um deles era a mediatização do trabalho que se fazia nos gabinetes. Por isso, marcava conferências de imprensa na Assembleia da República para apresentar as suas propostas antecipadamente aos jornalistas e, mais tarde, já bem mais lançado na área do Ambiente, chegou a contactar um publicitário de renome. Na biografia “Jorge Coelho, o todo poderoso”, Edson Athayde conta como foi o seu primeiro contacto com o Partido Socialista: um colega de outra agência de publicidade, Paulo Condessa, queria ajuda para criar uns cartazes de cunho ambientalista para um deputado socialista que se começava a destacar na área. Era José Sócrates.

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Governo. Uma desilusão e uma guerra no Ambiente

Na hora decisiva, quando António Guterres finalmente venceu as legislativas e escolheu os seus ministros, Sócrates ficou para trás e a ministra do Ambiente foi a independente Elisa Ferreira. Entre um político promissor e uma economista reconhecida, o primeiro-ministro socialista escolheu a experiência de Elisa Ferreira — embora tenha tratado logo ali do futuro de Sócrates, garantindo que teria um lugar na equipa do Ambiente. Foi assim que o socialista entrou pela primeira vez num Governo, como secretário de Estado Adjunto do Ambiente. Mas com uma frustração que se foi manifestando nos anos que se seguiram. “Não foi fácil para ele aceitar ser secretário de Estado porque tinha sido o responsável por aquelas áreas no PS durante quatro anos e depois o cargo ficou para outra pessoa, mas Guterres achou-o imaturo”, lembra um antigo governante próximo do então primeiro-ministro.

“As pessoas do interior, para se afirmarem na corte lisboeta, têm de ser muito mais talentosas do que as pessoas de Lisboa. Muito mais mesmo.”

José Sócrates numa entrevista ao jornal online da Covilhã Urbi et Orbi

Elisa Ferreira não conhecia Sócrates e exigiu a Guterres levar alguém da sua confiança para o Ministério, Ricardo Magalhães. A ministra acabou por partilhar com ele as matérias de maior relevo na área do Ambiente, deixando Sócrates limitado à gestão de duas áreas menores: a defesa dos consumidores e os resíduos. A guerra começou logo aí e era aberta. No gabinete não havia dúvidas do mal-estar e da falta de confiança entre os dois. Um antigo colaborador de Sócrates conta como o secretário de Estado Adjunto mantinha, a dada altura, uma espécie de agenda paralela. No Ministério da Rua do Século, as portas dos vários gabinetes estavam fechadas e, muitas vezes, Sócrates marcava reuniões e no resto dos gabinetes, incluindo o da ministra, não se sabia quem lá estava. “Elisa Ferreira não sabia nada da agenda dele”, além da parte que era pública, conta um elemento que trabalhava no Ministério nessa altura.

Mas nem tudo correu mal. Em alguns casos, as propostas com que Sócrates avançava para tomar a dianteira política do Ministério até constavam no Programa do Governo. “Ele escolhia temas que lhe davam protagonismo político, como os da defesa do consumidor, quando obrigou a PT a disponibilizar aos clientes facturas detalhadas. Muitas vezes eram questões polémicas, mas ele contava sempre com o apoio maioritário da opinião pública. Era muito habilidoso em conseguir sempre isso”, conta um destacado socialista. O próprio Sócrates lembrou, no livro “Sócrates — Menino de ouro do PS”, que “uma vez, numa reunião do Conselho de Ministros por causa de uma questão de direito do consumidor, ele [António Guterres] me disse: ‘Oh! Not again! Sócrates strikes again!'”. “Guterres reconhecia-lhe a obstinação e a capacidade de ter ideias”, admite um antigo colaborador de Sócrates.

"Ele escolhia temas que lhe davam protagonismo político, como os da defesa do consumidor, quando obrigou a PT a disponibilizar aos clientes facturas detalhadas. Muitas vezes eram questões polémicas, mas ele contava sempre com o apoio maioritário da opinião pública. Era muito habilidoso em conseguir sempre isso."

Um socialista que não quis ser identificado

A prova de que estava a construir um caminho próprio era que, na Rua do Século, já tinha uma equipa própria, com assessora de imprensa incluída (na maior parte das vezes, nos gabinetes do Governo, o assessor de imprensa do ministro é o dos secretários de Estado). Da sua equipa faziam então parte o chefe de gabinete Rui Nobre Gonçalves, Filipe Batista (que foi um dos mais discretos secretários de Estado Adjuntos do primeiro-ministro de que há memória, entre 2005 e 2009, no governo de José Sócrates), Maria Rui (assessora), a secretária Maria João e ainda um informático que controlava a execução da agenda do Governo (e que Sócrates chegou a levar para o gabinete de primeiro-ministro, anos depois, segundo conta um antigo colaborador).

Remodelado e um livro de citações para preparar discursos

No final de 1997, António Guterres aproveitou a saída de António Vitorino — por causa de uma suposta irregularidade no antigo imposto da sisa — para contornar outras dificuldades que existiam no Governo. O Ambiente era uma delas, por isso acabou por promover José Sócrates, colocando-o como ministro Adjunto do primeiro-ministro. “Passou para ministro Adjunto porque as coisas estavam a correr mal ao nível pessoal dentro do Ministério do Ambiente”. Manteve a pasta da defesa do consumidor e ganhou as do desporto e da toxicodependência. Este último era um tema com especial peso para Sócrates, que no livro “O menino de ouro do PS” confessa que a droga entrou pela sua família: “O meu irmão foi viciado em heroína, eu a a minha mãe passámos muito com isso durante alguns anos”.

Este foi também o tempo em que o seu trabalho político no partido se intensificou. Havia eleições para voltar a ganhar dali a dois anos. “Nessa fase, deu três voltas ao país, pelas concelhias, a fazer o caminho partidário”, conta um antigo colaborador que se lembra de o então ministro Adjunto ter no carro, sempre à mão, um livro de citações para ir estudando durante os trajetos de automóvel. Havia de tornar-se um hábito seu, citar autores para dar prova de uma certa dimensão intelectual que sentia faltar-lhe.

A preocupação com o que dizia e como dizia acompanhavam-no já nesta altura e, meses antes de entrar no Governo, já a adivinhar que as exigências curriculares iam colocar-se a um tempo nada distante, o socialista decidiu inscrever-se no Instituto Superior de Engenharia de Lisboa para completar a licenciatura em Engenharia Civil. Pouco depois, mudou: em 1996, inscreveu-se na Universidade Independente, onde concluiu o curso que lhe faltava. Mas este objetivo que perseguiu estava longe de estar encerrado, com as dúvidas sobre a sua licenciatura a acabarem na nulidade da mesma muitos anos mais tarde.

Finalmente a chefiar a pasta do Ambiente e a ganhar peso no PS

Nas eleições de 1999, António Guterres recandidatou-se e, depois da vitória, voltou a chamar Sócrates para integrar o Governo. Finalmente, a pasta do Ambiente. Esse tempo na liderança da pasta que conhecia bem foi o que o catapultou em definitivo para a ribalta política, com programas como o Pólis a correr várias cidades do país, mas sobretudo com a discussão intensa sobre a co-incineração. Esses dois anos foram também os da afirmação total do seu estilo político: obstinado, obsessivo na informação e pouco tolerante com quem estava abaixo. Começavam a ser famosas as fúrias do ministro do Ambiente. Sócrates é de temperamento difícil e tem o ponto de ebulição baixo, quem com ele trabalhou em qualquer dos gabinetes por onde o socialista passou ao longo da carreira política facilmente tropeça na memória de episódios de berros e discussões épicas.

Esse Executivo de António Guterres era novamente frágil no apoio parlamentar. Estava dependente do deputado do CDS Daniel Campelo e o primeiro-ministro escolheu José Sócrates para negociar com o parlamentar insatisfeito com a sua bancada. Campelo tinha feito declarações contra o líder do partido Paulo Portas, que queria chumbar o Orçamento de Guterres para 2001. “António Guterres pediu-me para falar com ele e para lhe perguntar se levava aquilo a sério. E foi isso que eu fiz. Telefonei-lhe e perguntei-lhe: ‘Olhe lá, isso que você está a dizer é a sério?’ E ele disse-me: ‘Ah! Sim, estou a falar muito a sério e vou fazer um requerimento ao Governo'”. Em troca de obras no seu concelho, Ponte de Lima, Daniel Campelo aceitava abster-se na votação do Orçamento e salvar o Governo. Guterres sabia da boa relação entre Sócrates e Campelo e aproveitou-a a seu favor.

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Liderança. O caminho na oposição até à conquista do PS

No fim do Governo Guterres, depois das autárquicas de 2001, Sócrates somava a passagem por várias pastas — mesmo na recta final ainda acumulou a pasta do Equipamento Social –, temas suficientemente mediáticos para já ser reconhecido publicamente, experiência negocial , traquejo político e respeito no partido. A sua vida pessoal também se alterou: tinha dois filhos, tinha-se divorciado de Sofia Fava, mudou de casa para um prédio nobre na cidade, para o terceiro andar do edifício Heron Castilho, na Rua Braancamp, mesmo junto ao Marquês de Pombal. Meses depois, a mãe, Maria Adelaide, mudava-se para o mesmo prédio, para outro andar. As aquisições dos dois imóveis seriam, muitos anos mais tarde, alvo de investigação judicial no âmbito da Operação Marquês, batizada assim precisamente pelo local de residência do seu protagonista número um.

Nesse tempo, Sócrates era habituée nos restaurantes mais in da cidade, sobretudo italianos. Movia-se com facilidade nos salões da política e tinha no seu círculo de amigos as figuras mais influentes do PS e outras em ascensão — e tinha também um grupo a que já dava nome e que incluía Armando Vara, Renato Sampaio, Fernando Serrasqueiro, José Lello, Laurentino Dias, Luís Patrão, Pedro Silva Pereira, Ascenso Simões ou Edite Estrela. Era um dos principais delfins de Guterres e tudo isto colocava-o, naturalmente, como uma das figuras de que se começou a falar para a liderança do PS no futuro. O próprio, não muito antes disto, havia de o negar numa entrevista ao Diário de Notícias. Confrontado com essa hipótese, Sócrates foi peremptório na nega e explicou porquê: “Primeiro, porque não tenho o talento e as qualidades que um primeiro-ministro deve ter. Segundo, porque ser primeiro-ministro é ter uma vida na dependência mais absoluta de tudo, sem ter tempo para mais nada. É uma vida horrível que eu não desejo. Ministro é o meu limite”.

Num jantar com Aznar, Guterres apresentou Sócrates como o próximo líder do PS em Portugal. Quem assistiu à cena teve poucas dúvidas de que aquela posição definitiva sobre nunca ser mais do que ministro já era passado. A semente estava mais do que plantada na cabeça do socialista.

O guterrismo ficava para trás, Ferro Rodrigues assumia a liderança do PS e Durão Barroso o cargo de primeiro-ministro. José Sócrates voltava ao Parlamento, mas com um estatuto muito distante do de deputado com complexos de provincianismo que lá entrara na década de 80.

No início de junho de 2003, o primeiro-ministro espanhol José Maria Aznar quis condecorar António Guterres, no Palácio da Moncloa, com a mais alta distinção para chefes de Estado e de Governo estrangeiros. O ex-primeiro-ministro levou um grupo de Portugal à cerimónia em Madrid e entre eles estava José Sócrates. Depois da condecoração foram jantar com Aznar e Guterres apresentou o seu ex-ministro como o próximo líder do PS em Portugal. Os presentes riram-se, Sócrates também. Mas quem assistiu à cena teve poucas dúvidas de que aquela posição tão definitiva sobre nunca ser mais do que ministro já era passado. A semente estava mais do que plantada na cabeça do socialista.

Além de deputado, nos tempos de oposição ao Governo Durão Barroso, Sócrates era também membro do secretariado nacional de Ferro Rodrigues. A liderança de Ferro recebeu um golpe brutal com o escândalo de pedofilia da Casa Pia e com a detenção do número dois do líder socialista, Paulo Pedroso. José Sócrates manteve a lealdade a Ferro, mas a sua popularidade no partido ia ganhando peso. Paralelamente, manteve um grupo informal que reunia os chamados “socráticos”. Depois, foi-se alargando a nomes como Jaime Gama, Francisco Assis ou António Costa. Com este último nunca teve propriamente uma amizade forte, era uma relação que ambos reconheciam como politicamente importante. Sócrates chegou a admitir, numa entrevista à revista Sábado em 2006, que, antes de assumirem a dianteira do partido como número um e número dois, entenderam-se quanto ao futuro: “Ficou claro nas nossas cabeças que no dia em que a questão da liderança se pusesse para a nossa geração, o tema nunca poderia transformar-se em palco de confronto”. Foi o mais longe que alguma vez um dos dois foi na admissão de que teriam uma espécie de pacto de não-agressão. Estariam os dois do mesmo lado e, quando um saísse, o outro avançava.

Um palco televisivo e o começo da contagem de espingardas

A imagem que Sócrates cultivava estava mais aprimorada do que nunca. Vestia-se nas melhores lojas e treinava à exaustão com Pedro Silva Pereira as suas intervenções na televisão. Desde 2002 que enfrentava todos os domingos Pedro Santana Lopes na RTP, num espaço de análise da semana. Um duelo premonitório, já que seria contra ele que viria a disputar as legislativas de 2005. “A televisão mata. Quem não tem nada para dizer só aguenta cinco segundos. Eu estive lá um ano e meio”, vangloriou-se Sócrates em julho de 2004 numa entrevista ao Expresso falando nesses tempos. Na mesma entrevista, também rejeitou que fosse um político superficial, de boa imagem mas pouco mais do que isso: “Eram 20 minutos. Portanto, não dava para ser uma coleção de clichés, nem de soundbites, era preciso expor. Era um desafio”.

Fora do plateau televisivo, na arena política, iam-se seguindo as conversas e jantares a medir forças nas bases do partido. Depois vieram as eleições Europeias de 2004, com a vitória socialista, e, pouco depois, a saída de Barroso para a Comissão Europeia e a decisão de Jorge Sampaio, então Presidente da República, de dar posse a Santana Lopes como primeiro-ministro. Ferro demitiu-se e o caminho abriu-se subitamente a quem lhe quisesse suceder.

Havia um apoio decisivo no aparelho: Jorge Coelho. E havia um nome preferido por todos para a liderança: António Vitorino. Na versão de Sócrates, contada no livro “Menino de ouro do PS”, ele próprio falou com Vitorino e tentou convencê-lo a avançar. Perante a nega, ter-lhe-á dito: “Desculpa, mas não tens o direito de nos responder dessa forma, tens o dever de pensar nisso”. Mas Vitorino manteve mesmo o “não” e declarou-o publicamente, numa conferência de imprensa a partir de Bruxelas, onde era comissário europeu.

“A televisão mata. Quem não tem nada para dizer só aguenta cinco segundos. Eu estive lá um ano e meio”

Sócrates, em julho de 2004, numa entrevista ao Expresso

Na recordação desses tempos Sócrates não se refere a outro nome que estava em cima da mesa para a corrida à liderança, o de António José Seguro. Eram ambos delfins de Guterres e assumidamente rivais, com uma relação muito distante e muito pouco amistosa. Seguro pensou avançar, mas Sócrates teve o apoio de Jorge Coelho.

Antes de anunciar uma decisão, Sócrates voltou a contar espingardas, o que na gíria partidária se traduz por perceber que distritais estão consigo. Pelo meio, Jorge Coelho tinha debatido a situação com os principais líderes locais do partido, numa reunião que pretendia secreta e que se realizou na Curia. No final, a posição do homem do aparelho contagiou quem ainda não se tinha decidido. O apoio a Sócrates ganhava expressão e o socialista tinha condições para avançar. Partiu com a esmagadora maioria das federações distritais do partido a seu lado. Enfrentou dois adversários de peso: João Soares e Manuel Alegre. Sócrates venceu as diretas com 78,6% dos votos, contra os 16,6% de Alegre e os 3,9% de João Soares.

O ministro do Ambiente, José Sócrates, com o secretário de Estado Pedro Silva Pereira e o ministro da Presidência Jorge Coelho, no ano 2000

O dia 1 da “esquerda moderna”

Aquele dia de julho estava quente e o passeio frente à sede nacional do PS, no Largo do Rato, estava carregado de socialistas e de câmaras televisivas a aguardarem a chegada do candidato a líder do PS. José Sócrates chegou entre apertos. Era aguardado por Jorge Coelho, que o recebeu com um abraço simbólico. Um dos apoios mais decisivos dos últimos dias tinha ali finalmente uma expressão para os repórteres de imagem registarem. Aconteceu o mesmo com o abraço a António Costa, outro dos apoios de peso.  A “sala da música” da sede do partido estava cheia de dirigentes do partido e de outros socialistas de destaque. José Sócrates tomou o púlpito e disparou o discurso ensaiado horas antes, com Pedro Silva Pereira, mas debatido nos últimos tempos com outros socialistas, como Sérgio Sousa Pinto, que foi depois o autor da sua moção ao congresso. Foi deste debate de ideias que nasceu o conceito da “esquerda moderna”, que havia de inaugurar naquele discurso, defendendo que esse deveria ser “o caminho” do PS.

Naquele final de tarde, com os diretos televisivos apontados para si, o rosto da tal “esquerda moderna”, num fato cinza claro e com uma gravata monocromática que rapidamente virou a sua imagem de marca, arrancava para sete anos de poder no PS. Ainda não tinha o teleponto que se preparava para inaugurar no congresso da sua entronização e que usaria dali em diante nas grande intervenções políticas. Tinha apenas uma folha na mão para guiar as suas palavras. As primeiras arrancaram logo o aplauso dos socialistas presentes:

“Decidi candidatar-me à liderança do Partido Socialista e, como sucedeu com todos aqueles que já exerceram esta função no PS, aquilo que me anima neste momento é a vontade de servir Portugal, nada mais do que servir Portugal”.

Onde estavas tu, passista, quando o teu herói elogiou Dias Loureiro?

Novo artigo em Aventar


por João Mendes

Uma turba passista encheu as redes sociais de indignação, por haver uns quantos socialistas a lamentar a saída de Sócrates do PS, socialistas esses que até elogiaram a governação do ex-recluso. Onde é que já se viu tamanha falta de respeito pelos portugueses?

Importa, contudo, saber onde estava esta malta quando Pedro Passos Coelho cumprimentou Dias Loureiro "de forma muito amiga e especial", durante uma inauguração em Aguiar da Beira, a que se seguiu uma sequência de elogios do então primeiro-ministro a um dos dois grandes responsáveis por uma das maiores fraudes bancárias da história de Portugal, que custou aos contribuintes alguns milhares de milhões de euros. Estariam ocupados a empreender? Estariam a manipular o Fórum da TSF ou a parir perfis falsos no Facebook? Estariam a observar desde o centro de operações liberal-fascista? Estariam no Panamá a contar notas desviadas através de matrioskas de paraísos fiscais? Estariam a visitar a campa de Salazar? Estariam numa acção de formação sobre como escapar ao pagamento da Segurança Social, ministrada pela Tecnoforma?.

Ninguém sabe.

Ladrões de Bicicletas


A social-democracia para além da «terceira via»

Posted: 04 May 2018 11:06 AM PDT

Não é preciso afastarmo-nos da esquerda nas políticas para, com os resultados obtidos, convencer muitos eleitores do centro

Pedro Nuno Santos

I. Num momento em que social-democracia está em forte retrocesso político em toda a Europa, o Partido Socialista em Portugal é uma exceção. Sem pretender dar lições a outros partidos da família social-democrata – cada partido opera num contexto nacional com oportunidades e constrangimentos específicos –, precisamos compreender o que nos permite ter hoje níveis de apoio popular elevados.
Como venho defendendo, a decisão tomada em 2015 de procurarmos construir com a esquerda parlamentar uma solução de governo maioritária, alternativa à viabilização de um governo de direita, pode ter salvo o PS do destino de outros partidos europeus da mesma família política.
A solução traduziu-se num programa político que restituiu a esperança de uma vida melhor a muitos portugueses. A configuração inédita da nova maioria enriqueceu a democracia, trazendo para a esfera governativa partidos que representam cerca de um milhão de portugueses. Mas foi o seu programa, que promoveu a recuperação de rendimentos e direitos, o crescimento económico e a criação de emprego, por um lado, e o respeito por quem trabalha ou trabalhou uma vida inteira, por outro, que gerou o nível de apoio de que o PS dispõe atualmente.

Teria sido bem diferente se tivéssemos feito o que alguns, mesmo dentro do PS, consideravam natural: a viabilização de um governo minoritário do PSD/CDS. Nesse caso, estaríamos hoje, certamente, na posição de outros partidos social-democratas europeus e incapacitados de disputar a liderança governativa em Portugal. Sobretudo, nunca teria sido possível construir com o PSD e o CDS o programa de mudança económica e social e de comprometimento com o Estado social público e universal, base de uma comunidade decente, que foi possível – apesar das diferenças com estes partidos – com o apoio do PCP, BE e PEV.
Num momento em que o PS reflete sobre o caminho a trilhar no futuro, temos não só de olhar para o que fizemos desde 2015, mas ir mais longe - para evitar o mesmo destino de muitos partidos irmãos - e refletir sobre o que aconteceu à social-democracia europeia.
II. Nos anos noventa, o centro-esquerda encontrou um paradigma de aparente renovação e de superação das derrotas sofridas nos anos oitenta, conhecido por “terceira-via”, que foi até à Grande Recessão de 2008 a referência principal da social-democracia na Europa.
Do ponto de vista ideológico e programático, a terceira-via tentou adaptar o papel do Estado às dinâmicas de um capitalismo global, repensando a centralidade e o significado de princípios como a igualdade, a liberdade e a solidariedade.
Do ponto de vista do papel do Estado, aceitou, por um lado, a introdução generalizada da lógica mercantil nos serviços públicos e, por outro, que os mercados fossem os únicos motores do crescimento económico. O Estado devia limitar-se a criar as condições para que os mercados funcionassem, com regulação minimalista, colhendo o dividendo orçamental para financiar as funções do Estado.
Do ponto de vista eleitoral, promoveu um discurso que visava explicitamente as classes médias mais qualificadas e as suas aspirações de mobilidade social, em detrimento das preocupações com os trabalhadores industriais dos setores tradicionais.
Mas, tal como a esquerda dos anos setenta e oitenta foi forçada a fazer uma autocrítica, hoje impõe-se fazer uma avaliação crítica da terceira-via. No plano ideológico, a fronteira entre a esquerda e a direita foi demasiado esbatida, e a corrida para o centro descaracterizou o nosso ideário ideológico, programático e linguístico, deixando que muitas bandeiras fossem apropriadas por forças à nossa esquerda.
No plano do modelo de desenvolvimento, a terceira-via deu prioridade à contabilidade do crescimento económico, independentemente do seu padrão: todo o crescimento da economia e do emprego era positivo, até porque gerava receita. A terceira-via abraçou um modelo de crescimento demasiado assente no imobiliário e no setor financeiro. Sim, sofreu o impacto da Grande Recessão; o problema é que participou na construção do modelo que a causou. Quando a bolha imobiliária estalou e o setor financeiro colapsou, o dividendo orçamental desapareceu e os governos tiveram de resgatar os bancos e cortar nos serviços públicos. E a terceira-via, que dependia do sucesso desses setores, caiu com eles.
No plano eleitoral, a terceira-via considerou garantidos os votos dos trabalhadores e que era possível falar apenas para as frações qualificadas das classes médias. Em algumas versões, promoveu mesmo o fim da aliança entre operariado e diferentes segmentos da classe média que dera coerência ideológica e força eleitoral à social-democracia.
Hoje, com raras exceções, os partidos social-democratas europeus são praticamente partidos das classes médias mais qualificadas. Isto não resulta apenas das transformações no mundo laboral. É verdade que o operariado industrial tem hoje um peso menor, mas a expansão do setor terciário gerou uma enorme massa de trabalhadores. Tantas vezes sujeitos a emprego precário, mal pago, rotineiro e sem expectativas de promoção, estes constituem a maioria do eleitorado, enquanto os profissionais liberais e as classes médias mais qualificadas continuam a ser uma minoria. Isto ajuda a explicar por que razão são poucos os partidos social-democratas que, na Europa, ultrapassam os 20% de apoio eleitoral. Por negligência ou escolha, a social-democracia deixou de representar os eleitores com baixas e média-baixas qualificações. Em muitos casos, passou a olhá-los como “deploráveis”.
III. Esta atitude é bem visível nas análises sobre o populismo na Europa. A ascensão deste, em particular o de extrema-direita, coloca desafios muito sérios, mas é, antes de mais, um sintoma de outros problemas: as regressões económicas e sociais das últimas décadas produziram justificadas reações de medo e ansiedade em grupos menos preparados para lidar com mudanças que não controlam e mais vulneráveis aos seus efeitos destruidores.
Combater o populismo sem tentar, antes, perceber o que o alimenta e, depois, sem procurar saber se e como é possível corrigir as suas causas, faz da crítica ao populismo pouco mais que mera projeção da arrogância das elites. Há mais de uma década que esta atitude impera no centro-esquerda e, no entanto, o populismo não parou de crescer. Seria bom repensar a forma de combatê-lo.
Esta análise não implica nenhuma “cedência” ao populismo. Ironicamente, quem cede são os que aceitam como clivagem central a distinção entre sociedades “abertas” e “fechadas”, pela simples razão que é precisamente essa a dicotomia que os populistas promovem. Centristas e populistas partilham a mesma visão de um mundo dividido entre um pólo aberto e outro fechado, divergindo apenas na valorização feita: onde centristas veem sectores dinâmicos e cosmopolitas, populistas veem elites corruptas; onde os primeiros veem grupos manipulados, os segundos veem o povo traído pelas elites. Mas ambos concordam que a clivagem esquerda-direita – que durante décadas deu identidade programática, autonomia estratégica e utilidade política à social-democracia – deve ser desvalorizada.
O resultado está à vista por toda a Europa: quando a social-democracia se demite de representar os que mais precisam do Estado como instrumento de desenvolvimento e proteção, os partidos populistas ocupam esse lugar; quando a social-democracia passa a falar sobretudo para os grupos ganhadores da globalização, ela deixa de ser politicamente necessária: qualquer partido centrista, liberal ou conservador pode fazê-lo com mais convicção.
IV. A esquerda soube evoluir em relação aos anos setenta e oitenta, mas é agora preciso que o saiba fazer em relação aos anos noventa e dois mil. Precisamos de olhar com humildade para os problemas, em vez de ceder à tentação de replicar modelos passados.
O mais apelativo da “terceira-via” era querer compatibilizar o que via como o melhor de dois mundos: do lado da produção, deixar os mercados funcionarem sem freios; do lado da distribuição, caberia ao Estado o papel de (mesmo que de forma punitiva) compensar os perdedores. Há vinte anos atrás talvez fosse possível acreditar que uma separação tão clara entre produção e distribuição de riqueza poderia ser eficaz e sustentável. Hoje, face ao crescimento dependente de atividades voláteis, à incapacidade geral para travar o aumento de desigualdades, ou à falta de credibilidade da social-democracia para proteger os mais vulneráveis, hoje é muito difícil aceitar essa divisão.
É, assim, urgente trabalhar – sem os fantasmas inúteis da “radicalização programática” e do “anti-capitalismo” – num diagnóstico sério sobre os desafios que a transformação do capitalismo e as dinâmicas laborais e demográficas colocam à social-democracia. Precisamos de corrigir os excessos liberalizadores cometidos nos últimos 20 anos e repensar o papel do Estado nas políticas de crescimento, regulação e inovação.
Em vez de esperar que os mercados destruam e criem, limitando-se a política social a apanhar os “cacos” gerados pela destruição criativa, o Estado necessita de melhor intervir previamente nos mercados, desenhando-os segundo critérios de justiça e eficácia. Trata-se, nuns casos, de limitar os mercados, como nos serviços públicos universais de educação e saúde (forçando o capital privado a investir em setores transacionáveis); trata-se, noutros, de limitar a ação dos mercados (no trabalho, na habitação, na energia, no ambiente) através de regulação inteligente; trata-se, noutros casos ainda, de construir mercados através de políticas de inovação onde o Estado deve ser capaz de definir missões coletivas, coordenando a atividade dos privados na resolução de problemas económicos, ambientais e sociais.
Se, por exemplo, o Estado português definisse como missão libertar o país da dependência de combustíveis fósseis num dado horizonte temporal e concentrasse recursos e incentivos aos privados para esse fim, não só estaria a dar resposta a problemas concretos (défice da balança de bens e qualidade de vida) e a potenciar os recursos naturais, como criaria novos mercados e oportunidades de inovação para o tecido produtivo, gerando emprego com salários mais elevados.
Esta não é uma agenda anticapitalista, mas também não é o liberalismo económico. É uma agenda social-democrata para o século XXI.
V. A relevância de toda esta discussão para o PS é dupla. Primeiro, o sucesso deste governo e desta maioria nada deve à terceira via. O PS não precisou de mercadorizar os serviços públicos, de liberalizar o mercado laboral, de diabolizar os “radicalismos programáticos”, de estigmatizar os mais fracos ou de ignorar os abusos do mercado para obter bons resultados sociais, económicos e orçamentais e para merecer o apoio popular.
Em segundo lugar, o PS deve evitar cometer os erros que contribuíram para que, em muitos países, se alienasse parte do eleitorado tradicional da social-democracia. É essencial, no plano ideológico, saber os valores em que acreditamos, evitando uma excessiva diluição das fronteiras com outros partidos; no plano programático, definir como esses valores se devem traduzir em políticas públicas de desenvolvimento económico e de proteção social; no plano eleitoral, saber quem queremos representar, compreendendo que o projeto social-democrata depende da construção ativa de uma maioria que vá dos trabalhadores menos qualificados às novas classes médias do privado e do público, da indústria aos serviços, do interior às cidades.
É o debate e a resposta a estas questões que garante a nossa autonomia e identidade, e não a discussão sobre se o PS deve ser “moderado” ou “radical”, que não só é espúria, como esvazia o debate que realmente interessa ter; sobretudo, é irrelevante para as pessoas. Para elas, o essencial é se as políticas são capazes de traduzir as suas intuições morais de justiça e de responder às suas aspirações materiais, individuais e coletivas. Essa tem sido a força deste governo e desta maioria, que nestes anos demostrou que não é preciso afastarmo-nos da esquerda nas políticas para, com os resultados obtidos, convencer muitos eleitores do centro de que o nosso projeto é mesmo aquele que lhes dá esperança de viver melhor em Portugal.
Pedro Nuno Santos (Público, 4 de maio de 2018)

O NOBEL IMPLODIU

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 05/05/2018)

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Clara Ferreira Alves

(Lá tive que publicar a D. Clara. A razão é simples: absteve-se de escrever sobre o Pinho e sobre o Sócrates, tema de onde, de certeza, iria sair asneira, as usual. Escreve sobre o escândalo dos bastidores de atribuição do Nobel da Literatura, e escreve bem.

Enfim, a conclusão é só uma: no melhor Nobel cai a nódoa.

Comentário da Estátua, 05/05/2018)


O que podemos esperar da Academia Nobel? Não passa de um grupo aleatório de gente, tão competente e incompetente como qualquer outra

O Nobel implodiu em vez de explodir, como lhe competia, visto que o prémio nasceu da dinamite. Parece que a Academia decidiu não atribuir o Nobel da Literatura este ano. À primeira vista, quando um prémio não é atribuído, deve-se a omissão à escassa qualidade dos presumíveis. O júri sai por cima. O que torna esta omissão interessante é que o júri sai por baixo. Parece que o marido de uma das distintas e augustas donas do veredicto, um tal de Arnault, andou durante anos a molestar, apalpar, incomodar e de um modo geral sodomizar verbalmente, senhoras que passavam por perto da sua mão lesta. Parece que até a princesa sueca não escapou ao dito Arnault. Esse povo gelado e nórdico, raça de vikings, Thors e Odins, gente considerada de superior civilização por comparação com os devassos povos do sul, os tais que gastam o dinheiro em copos e mulheres, como os portugueses nas sábias palavras de um desse tecnocratas europeus que estica a perna nos Algarves, bebe do branco e remata a assada de peixe com uma malga de café com leite, à boa maneira calvinista, e os calvinistas são todos superiores, esse povo gelado e nórdico, dizia, profundamente ordenado, disciplinado e educado, parece que é pior do que animal com cio no que às literaturas concerne. Com as queixas veio à tona uma espuma suja de escândalos sexuais tipo Metoo, que fazem dessa gente de pele branca e muita proteína uma cambada de Harveys Weinsteins.

A tal ponto descambou a reputação do famoso grupo de doutos jurados, e que, soube-se agora, contém um jurista, personagem útil, esse júri anos a fio secretíssimo, bem comportado e dedicado a ler todos os romances e poemas do mundo, a tal ponto descambou, dizia, que a Academia decidiu recolher a penates e fazer o ato de contrição. Demissões, revelações, expiações, que fazem da malta do prémio mais famoso do mundo um novelo de atores de telenovela mexicana. Ora, isto para a literatura com éle grande são ótimas notícias. Nenhum prémio contribuiu mais para criar assimetrias entre escritores e, arbitrária e politicamente motivado, enviesado, arrepelado, servir para estabelecer uma hierarquia fútil que nada diz sobre a excelência da literatura e diz tudo sobre as excelências do jurados. A famosa listazinha final, discutida e rediscutida, plena de intrigalhada e mexerico, manipulada atrás da cortina por fios geopolíticos e geoestratégicos, politicamente correta ou falsamente moralizadora, não passava de uma guerrazinha de egomaníacos abusando do poder imenso sobre uma escolha de imortais. Há anos que se sabia que nesta nomenclatura a linha reta nunca era a mais curta distância entre dois pontos. Coexistia com os nobelizados uma lista paralela de não nobelizados punidos por não serem suficientemente “humanistas”, e nisto do humano nada mais humano do que o desejo de apalpar outros humanos, ou por não serem suficientemente de esquerda, ou por serem de Israel, ou por terem a desdita de conviverem com uma ditadura. Philip Roth era misógino e gostava demasiado de mulheres, nada que o marido da dita senhora não aprovasse. Amos Oz era israelita, e Israel está proibido de ganhar prémios exceto no festival da Eurovisão. Jorge Luis Borges era um sujeito passivo da junta argentina, além de ser cego, o que não dá muito jeito para o ativismo. E Graham Greene, bom, Graham Greene parece que dormira com a mulher de um dos membros do júri, o que à luz dos recentes acontecimentos no sossego dos quartos adúlteros ou na claridade dos salões, não passaria de uma recomendação para o Nobel. Se toda a gente dormia com toda a gente ou tentava dormir, copular, não haveria razão para excluir esse católico pecador.

Todos os anos, chegado o mês da coisa, os escritores andam num virote, coração em taquicárdia, arremessados para a cesta dos favoritos. Ele é fulano e sicrano e beltrano, e de repente nunca é nenhum deles e é um desconhecido ou um chinês. O pobre V.S. Naipaul, Sir Vidia, que dizia que o Nobel não lhe importava um caracol, lacrimejou como uma donzela quando o ganhou. Estes efeitos deletérios do prémio não são explicáveis pela pecúnia. É a honraria, o banquete, a fatiota, as tiaras, e as vendas que disparam em flecha. Nem sempre. A grande poetisa Wislawa Szymborska, bem entrada em anos, não vendeu mais livros. E Doris Lessing recebeu o prémio quando já não precisava dele. Velha demais. As mulheres são sempre menos do que os homens neste baralho, estamos habituadas. Ao génio o que é do génio, fiquemos com a molestação.

Recolhida ao convento para a penitência, o que podemos esperar da Academia Nobel? Não passa de um grupo aleatório de gente, tão competente e incompetente como qualquer outra. Nenhum membro se distinguiu por saber escrever um grande livro ou poema ou por saber mais sobre literatura do que os literatos instantâneos.

O Nobel premiava em função de pressões políticas, diplomáticas, financeiras, em função de lóbis e agências, em função de pressões, poderes, dinheiros e vaidades. Claro que premiou bons escritores, tantos como os que deixou de fora. E, Nobel ganho, o escritor acabava. Arrastando as vestes, seguia-se quase sempre a morte, o olvido ou o livrinho menor. Com exceção de Gabriel García Márquez, um monstro literário que escreveu “O Amor nos Tempos de Cólera” depois do Nobel, uma obra-prima, quase todos os nobelizados se afundaram em obras epigonais de si mesmas. Saudemos a implosão.

Era o que faltava, mulheres com filhos

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 05/05/2018)

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A batalha constitucional para que a direita quer arrastar o país é sobre se as mulheres são donas de si ou se são instrumentos de uma religião.


Num dos mais confusos acórdãos da sua história recente, o Tribunal Constitucional navega em águas tumultuosas de conceitos de identidade genética para simultaneamente manter a procriação medicamente assistida e a gestação de substituição e para as tornar inviáveis na prática. Tanto assim é que, havendo abundantes especialistas em hermenêutica jurídica e outras artes interpretativas, não só é difícil descortinar o que pensa cada dessas pessoas sobre o dito acórdão, como não se consegue encontrar quem pareça saber o que fazer doravante. O Parlamento terá de reexaminar a questão, já se sabe, mas como acomodar as deliberações do Tribunal, isso é música de outra partitura. Como o Tribunal também mudou de opinião, revertendo espetacularmente a sua doutrina anterior, definida em acórdão de 2009, acresce ainda uma outra incerteza jurídica acerca dos casos de procriação já realizada ao longo de dez anos, criando um imbróglio difícil de resolver.

Ajustes de contas

Há nisto leituras políticas imediatas. O Tribunal decidiu dar uma bofetada ao presidente, que promulgou a lei logo que corrigida depois de veto inicial, entendendo, apesar de registar reservas, não só que esta seria constitucional como que deveria ser aplicada em nome de um bem maior, o apoio a mulheres que desejam uma gravidez. O Tribunal foi também instrumental numa luta política dentro da direita, dado que, com o PS e toda a esquerda, 16 deputados do PSD tinham aprovado a extensão da procriação medicamente assistida a todas as mulheres, e que 24 deputados do PSD, incluindo o então presidente do partido, Passos Coelho, se tinham juntado ao PS e a Bloco para aprovarem a gestação de substituição, aqui com a oposição da direita e do PCP. Ou seja, os deputados e as deputadas do PSD que apoiaram estas leis foram decisivos para a sua aprovação.

A guerra dentro da direita deve por isso ser observada com cuidado. Ela mobiliza dentro do Tribunal divergências filosóficas que estão a ser usadas para tentar moldar uma interpretação de normas constitucionais e que têm um alcance muito mais vasto do que as duas leis que agora foram torpedeadas. Aliás, os promotores do pedido de inconstitucionalidade, gente do CDS e PSD, deixaram meridianamente clara a razão pela qual procuravam inviabilizar a lei: numa das passagens citadas pelo acórdão, esses deputados manifestam a sua indignação pelo facto de que o alargado “acesso à PMA”, com a nova lei, “passa a ser considerado um direito reprodutivo de toda e qualquer mulher que o deseje, porque lhe apetece, independentemente do estado civil”.

Sugiro que releia a frase anterior. É que percebeu bem, nem há muito por onde enganar. Para o conservadorismo retorcido, se uma mulher que enfrenta dificuldades de fertilização quer ser mãe, pensando tratar-se de um “direito”, só porque o “deseja” ou, pior, “porque lhe apetece”, isso é chocante. Ainda por cima, “independentemente do estado civil”! Deite-se a adivinhar então porque é que o CDS e PSD, que rejeitaram a primeira lei de procriação medicamente assistida (uma mulher ter filhos quando a divindade lho recusou, onde se viu tal descaramento?) mas então não a levaram ao Tribunal Constitucional, cresceram agora em indignação. É que se uma mulher não casada, e desse modo em estado civil delinquente, procura ter filhos porque o “deseja” ou, abrenúncio, “porque lhe apetece”, isso é intolerável para o pensamento reacionário.

O Tribunal no meio da ponte

A questão não é menor. Se a mulher é solteira ou lésbica, para estes arautos da direita deixa de se aplicar o anonimato do dador para a fertilização, que antes toleravam. Nesses casos passa a ser preciso identificar o meliante, na presunção de que a relação dos pais com a criança deve ser interpelada pela revelação do nome do dador.

Ora, o Tribunal aceitou mudar a sua doutrina constitucional em nome desta iniciativa, mas não consagrou as suas razões. Admitiu a abrangência da procriação medicamente assistida e o direito à procriação de mulheres que tenham perdido o útero ou que, por condição médica, não tenham capacidade de gerar um filho, mas impôs regras, em particular sobre a identificação dos dadores, que têm como efeito limitar a disponibilidade de tratamentos. A única via estreita que assim deixou para os legisladores que procurem salvar o acesso dos casais inférteis e a maternidade de outras mulheres, incluindo a gestação de substituição, é redefinir as condições e as exceções do anonimato dos dadores.

Mas não se esqueçam de que a batalha constitucional para que a direita quer arrastar o país é sobre se as mulheres têm o direito de escolher ser mães ou se se devem conformar à natureza quando esta lhes dificulta que o sejam. Numa palavra, é sobre se as mulheres são donas de si ou se são instrumentos de uma religião. Não se espante, estamos no tempo de Trump.


A Rainha Vermelha fica sempre no mesmo lugar

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Afinal é isso mesmo, estamos a viver uma “tempestade quase perfeita”, diz o presidente (na foto) no dia seguinte à apresentação da proposta orçamental da União Europeia. Crise em Itália, crise em Espanha, ‘Brexit’, desentendimento sobre o futuro, Macron com Trump, cortes nos fundos sociais, a UE está como a Rainha Vermelha de “Alice no País das Maravilhas”, só corre para ficar no mesmo lugar e ainda ameaça cortar a cabeça a toda a gente. Tem feito uma e outra coisa com assinalável presteza.

Conhecida a proposta de orçamento, ouviram-se várias críticas, desde a timorata “distorção” até ao mais enfunado “mau começo”. De facto, as contribuições sobem infinitesimalmente, havendo cortes nos dois principais programas e aumento na defesa e segurança, mais umas verbas para mostrar serviço na ciência. E haverá negociações entre os que querem mais e os que querem menos. Mas permitam-me a pergunta: se ganhassem os que querem tudo, e não ganham, tudo serviria para alguma coisa? 1,3%? Não, a União não tem nem terá orçamento porque isso é uma impossibilidade política, os países que beneficiaram do euro não querem compensar os prejuízos que causaram porque essa é a natureza do contrato e, já agora, do poder.

Ainda assim, seremos servidos nas próximas semanas de tragicómicas tentativas de desenhar cenários alternativos e de convocar milagres avulsos. Os governos andarão a contar os tostões para poderem anunciar que afinal perdem menos na agricultura do que o que estava previsto, magnífica vitória. Anestesia pura. Nesta negociação, a Europa não existe. Não há plano, só correr no mesmo lugar; não há direção, só cortar cabeças.

A última reunião do Eurogrupo esclareceu os incrédulos sobre esta tempestade perfeita, nomeadamente na Grécia, cujo terceiro resgate termina em agosto. Os sábios ministros rejeitaram a insistência de Draghi sobre uma restruturação da dívida para uma almofada financeira, e o novo ministro das Finanças da Alemanha, o bondoso social-democrata Olaf Scholz, mostrou que não é preciso ter saudades de Schäuble: exigiu um mecanismo de controlo permanente sobre a Grécia. Teve quem o apoiasse.

Se alguém espera que estas rainhas vermelhas, que entendem que correu tudo bem nos últimos dez anos de crise, vão mudar de política, talvez seja melhor escreverem outra fábula. A UE respondeu à recessão reduzindo o orçamento. E agora torna as contas claras: só com o medo, a militarização e o securitismo é que as almas penadas da Comissão e do Conselho se mantêm unidas. O dinheiro está onde precisam que esteja.