por estatuadesal
(Francisco Louçã, in Expresso, 09/06/2018)
A aliança entre protofascistas da Liga e calculistas do 5 Estrelas demonstrou ser uma ameaça para os imigrantes, o primeiro alvo, e para os trabalhadores, a segunda vítima
A A Itália, fundadora da UE e a sua terceira maior economia pós-Brexit, foi um retrato feliz do pós-guerra: um sistema bipartidário consolidado, uma economia criativa e exportadora, um deslumbramento europeísta. Agora, com vinte anos de euro, regista um PIB per capita menor do que o do virar do século, ainda não recuperou da recessão de há uma década, acumula a terceira maior dívida pública do mundo, o seu sistema político desagregou-se e tornou-se o país mais eurocético. Alguém ainda insiste em dizer que não há um sintoma italiano?
Tudo ia correr bem
Já ninguém se lembra, nem os próprios, mas alguns europeístas rejubilaram com a eleição italiana de março. O 5 Estrelas era então apresentado como um partido inclinado a aliar-se a Renzi e ao Partido Democrático, portanto confiável no seu institucionalismo europeu.
O facto é que o Governo italiano, com a aliança entre os protofascistas da Liga e os calculistas do 5 Estrelas, demonstrou ser uma ameaça para os imigrantes, o primeiro alvo, e para os trabalhadores, a segunda vítima. Na mistura inviável de ideias copiadas dos catálogos neoliberais, salgadas com algum pastiche eleitoralista, destaca-se o IRS plano de 15 ou de 20%, favorecendo os mais ricos, tudo puro Trump. Outras promessas, como a de um Rendimento Básico a 780 euros, prometido para todos, mas agora restrito a uma parte da população e sugerindo a contrapartida de mercantilização dos serviços públicos, são puro Friedman. Se assim falha nas contas e se resulta nas ameaças, o Governo Conte é uma impossibilidade obtusa mas um risco democrático.
No fim ganha sempre a Alemanha
Ao chegar aqui, a Itália deve queixar-se de um dos monstros da UE, a União Bancária, que agravou as assimetrias e os riscos globais. Essa União foi imposta sem garantia comum de depósitos, mas não sem um cálculo preciso: ficam de lado os bancos regionais alemães e protege-se o seu campeão, o Deustche Bank. As duas decisões são erradas, mas no fim do jogo ganha sempre a Alemanha.
A União Bancária só foi aprovada depois da recapitalização da banca da Europa central. Por exemplo, ao grupo Hypo Real Estate o Governo alemão deu uma garantia de 145 mil milhões, que já custou mais de 20 mil milhões. Nenhum outro governo pode agora fazer o mesmo. Outras regras são instrumentais: dos 417 bancos regionais alemãs, que representam 22,3% do total do crédito no país e que estão muito ligados ao partido de Merkel, só um está submetido à supervisão do BCE.
O caso do Deutsche Bank é também esclarecedor. Como as autoridades europeias não cuidam do risco de mercado, só de risco de crédito, ignoram as ameaças sistémicas. Protegem assim o maior banco europeu, de pés de barro. A autoridade europeia de supervisão reconheceu mesmo que “nem sequer foi perguntado qual era o valor (real) dos seus derivativos em carteira” (o valor nocional é de 42 milhões de milhões de euros), porque acha que essas perguntas são indelicadas. Mas a Itália pode queixar-se das dificuldades de negociar com as autoridades europeias a salvação de alguns dos seus bancos, ou de ter reduzido o valor do seu sistema financeiro em 35% entre 2015 e 2016.
O desmantelamento de Itália
Com 426 mil milhões de dívida ao Eurosistema (o saldo devedor no Target2), a Itália é um exemplo de como a ação do BCE favoreceu os mercados financeiros alemães. As compras de ativos pelo Banco de Itália, no âmbito do programa do BCE, resultam em transferências de liquidez para a Alemanha, que tem um saldo positivo de um bilião de euros. Por isso, o banco JP Morgan sugeriu, num estudo surpreendente, que a melhor solução para Itália seria sair do euro.
O raciocínio é este: com a moeda única, nenhuma economia em dificuldades pode monetarizar a dívida ou usar a depreciação cambial, só pode usar a anulação de dívida ou a desvalorização interna. A Grécia usou pouco a primeira e muito a segunda, o resultado é lamentável. Ora, a Itália tem uma posição líquida de investimento internacional pouco negativa e por isso uma medida drástica de saída do euro atingiria mais as outras economias do que a sua. Segundo o banco, o euroceticismo italiano é então justificado e razoável.
Ainda há europeístas preocupados
Foi esta semana na Gulbenkian, na apresentação do livro “Europe’s Crisis”, editado por Manuel Castells, com a colaboração, entre outros, de João Caraça e Gustavo Cardoso, que se discutiu o “colapso da social-democracia”. Segundo Castells, “a social-democracia, mesmo que respeitável para o capitalismo e a economia de mercado, era intermediária entre a brutalidade do mercado e a necessidade de um certo bem-estar da população. Em certo sentido era a ala reformista do sistema e relacionava reforma social, estabilidade, e em simultâneo, gestão da economia e adaptação às tecnologias”. Mas, acrescenta, essa intermediação morreu. Temos assim “a tempestade perfeita: a gestão financeira da crise que deu prioridade aos bancos, o confronto entre os Estados-nações, e quando os Estados poderosos utilizaram a crise para impor o seu controlo. O caso da Grécia foi paradigmático”. Isso leva-o a um ceticismo profundo sobre a União Europeia: “Entre a população existe a convicção de que as instituições europeias não são legítimas. E tudo isto foi recebido com extraordinária arrogância pelas elites europeias”.
Jorge Sampaio, o europeísta mais lúcido em Portugal, foi mais contundente: “Um dos principais problemas é estarmos em negação desde 2005”, criando-se “expectativas largamente defraudadas”. A responsabilidade deriva do fracasso da social-democracia: “Os partidos sociais-democratas estão sem um programa político convincente que mobilize as populações. Deixaram de convencer e estão sem resposta face aos múltiplos problemas europeus”.
Estas palavras suscitaram a reação de Francisco Assis, que, sem a elegância de citar o alvo, mas respondendo diretamente a Sampaio, escreve no “Público” contra as “criaturas” que dão “sinais particularmente deploráveis”: “Para os seguidores desta posição pueril, todo o mal que descortinam no espaço político europeu radica na ‘decadência’ da União Europeia e na sua incapacidade de responder às expectativas das suas pobres vítimas”. Em contrapartida, Ana Catarina Mendes mostra no “JN” como teme o impasse: “É tempo de se dizer com clareza: ou a Europa muda, e é por isso que nos devemos bater ativamente e com voz própria, ou a UE não tem futuro”.
O próximo ano da UE e as eleições europeias vão ser mesmo um tempo de definição.
Armadilhas nos professores
A Lei do Orçamento, votada pelo PS e pela esquerda, define que as negociações fixarão o prazo do descongelamento e reposição de carreiras na função pública. A norma tem uma redação torturada: “A expressão remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integradas em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o efeito, é considerada em processo negocial com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”. Mas deve ser lembrado que a leitura desta norma ficou esclarecida por uma mudança essencial: onde estava “expressão remuneratória de tempo de serviço” (portanto só de uma parte desse tempo) ficou escrito “do tempo de serviço” (portanto de todo).
O Governo afirma agora que só negociaria parte do tempo, mas que, por ter ficado zangado com a recusa dos sindicatos, exclui aplicar o “tempo e o modo para a sua concretização”, não há mais conversa e fica o corte eterno. Há nisto duas armadilhas. Primeira, o Governo traz o conflito para o Orçamento, recuando na palavra escrita. É a armadilha política. Segunda, o Governo quer mostrar que não negoceia com sindicatos, só impõe a sua vontade. É a armadilha social.
Os sindicatos, que propõem um ajustamento até 2023, estarão a ser cautelosos. O Governo, em contrapartida, quer o conflito para punir os professores. Escolha estranha, vinda de um Governo que ganhou as graças do eleitorado por ter superado o tempo do “empobrecimento” e do susto que foi a troika e o PSD-CDS em São Bento.