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sábado, 9 de junho de 2018

Esta Europa ainda vai ser uma imensa Itália

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 09/06/2018)

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A aliança entre protofascistas da Liga e calculistas do 5 Estrelas demonstrou ser uma ameaça para os imigrantes, o primeiro alvo, e para os trabalhadores, a segunda vítima

A A Itália, fundadora da UE e a sua terceira maior economia pós-Brexit, foi um retrato feliz do pós-guerra: um sistema bipartidário consolidado, uma economia criativa e exportadora, um deslumbramento europeísta. Agora, com vinte anos de euro, regista um PIB per capita menor do que o do virar do século, ainda não recuperou da recessão de há uma década, acumula a terceira maior dívida pública do mundo, o seu sistema político desagregou-se e tornou-se o país mais eurocético. Alguém ainda insiste em dizer que não há um sintoma italiano?

Tudo ia correr bem

Já ninguém se lembra, nem os próprios, mas alguns europeístas rejubilaram com a eleição italiana de março. O 5 Estrelas era então apresentado como um partido inclinado a aliar-se a Renzi e ao Partido Democrático, portanto confiável no seu institucionalismo europeu.

O facto é que o Governo italiano, com a aliança entre os protofascistas da Liga e os calculistas do 5 Estrelas, demonstrou ser uma ameaça para os imigrantes, o primeiro alvo, e para os trabalhadores, a segunda vítima. Na mistura inviável de ideias copiadas dos catálogos neoliberais, salgadas com algum pastiche eleitoralista, destaca-se o IRS plano de 15 ou de 20%, favorecendo os mais ricos, tudo puro Trump. Outras promessas, como a de um Rendimento Básico a 780 euros, prometido para todos, mas agora restrito a uma parte da população e sugerindo a contrapartida de mercantilização dos serviços públicos, são puro Friedman. Se assim falha nas contas e se resulta nas ameaças, o Governo Conte é uma impossibilidade obtusa mas um risco democrático.

No fim ganha sempre a Alemanha

Ao chegar aqui, a Itália deve queixar-se de um dos monstros da UE, a União Bancária, que agravou as assimetrias e os riscos globais. Essa União foi imposta sem garantia comum de depósitos, mas não sem um cálculo preciso: ficam de lado os bancos regionais alemães e protege-se o seu campeão, o Deustche Bank. As duas decisões são erradas, mas no fim do jogo ganha sempre a Alemanha.

A União Bancária só foi aprovada depois da recapitalização da banca da Europa central. Por exemplo, ao grupo Hypo Real Estate o Governo alemão deu uma garantia de 145 mil milhões, que já custou mais de 20 mil milhões. Nenhum outro governo pode agora fazer o mesmo. Outras regras são instrumentais: dos 417 bancos regionais alemãs, que representam 22,3% do total do crédito no país e que estão muito ligados ao partido de Merkel, só um está submetido à supervisão do BCE.

O caso do Deutsche Bank é também esclarecedor. Como as autoridades europeias não cuidam do risco de mercado, só de risco de crédito, ignoram as ameaças sistémicas. Protegem assim o maior banco europeu, de pés de barro. A autoridade europeia de supervisão reconheceu mesmo que “nem sequer foi perguntado qual era o valor (real) dos seus derivativos em carteira” (o valor nocional é de 42 milhões de milhões de euros), porque acha que essas perguntas são indelicadas. Mas a Itália pode queixar-se das dificuldades de negociar com as autoridades europeias a salvação de alguns dos seus bancos, ou de ter reduzido o valor do seu sistema financeiro em 35% entre 2015 e 2016.

O desmantelamento de Itália

Com 426 mil milhões de dívida ao Eurosistema (o saldo devedor no Target2), a Itália é um exemplo de como a ação do BCE favoreceu os mercados financeiros alemães. As compras de ativos pelo Banco de Itália, no âmbito do programa do BCE, resultam em transferências de liquidez para a Alemanha, que tem um saldo positivo de um bilião de euros. Por isso, o banco JP Morgan sugeriu, num estudo surpreendente, que a melhor solução para Itália seria sair do euro.

O raciocínio é este: com a moeda única, nenhuma economia em dificuldades pode monetarizar a dívida ou usar a depreciação cambial, só pode usar a anulação de dívida ou a desvalorização interna. A Grécia usou pouco a primeira e muito a segunda, o resultado é lamentável. Ora, a Itália tem uma posição líquida de investimento internacional pouco negativa e por isso uma medida drástica de saída do euro atingiria mais as outras economias do que a sua. Segundo o banco, o euroceticismo italiano é então justificado e razoável.


Ainda há europeístas preocupados

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Foi esta semana na Gulbenkian, na apresentação do livro “Europe’s Crisis”, editado por Manuel Castells, com a colaboração, entre outros, de João Caraça e Gustavo Cardoso, que se discutiu o “colapso da social-democracia”. Segundo Castells, “a social-democracia, mesmo que respeitável para o capitalismo e a economia de mercado, era intermediária entre a brutalidade do mercado e a necessidade de um certo bem-estar da população. Em certo sentido era a ala reformista do sistema e relacionava reforma social, estabilidade, e em simultâneo, gestão da economia e adaptação às tecnologias”. Mas, acrescenta, essa intermediação morreu. Temos assim “a tempestade perfeita: a gestão financeira da crise que deu prioridade aos bancos, o confronto entre os Estados-nações, e quando os Estados poderosos utilizaram a crise para impor o seu controlo. O caso da Grécia foi paradigmático”. Isso leva-o a um ceticismo profundo sobre a União Europeia: “Entre a população existe a convicção de que as instituições europeias não são legítimas. E tudo isto foi recebido com extraordinária arrogância pelas elites europeias”.

Jorge Sampaio, o europeísta mais lúcido em Portugal, foi mais contundente: “Um dos principais problemas é estarmos em negação desde 2005”, criando-se “expectativas largamente defraudadas”. A responsabilidade deriva do fracasso da social-democracia: “Os partidos sociais-democratas estão sem um programa político convincente que mobilize as populações. Deixaram de convencer e estão sem resposta face aos múltiplos problemas europeus”.

Estas palavras suscitaram a reação de Francisco Assis, que, sem a elegância de citar o alvo, mas respondendo diretamente a Sampaio, escreve no “Público” contra as “criaturas” que dão “sinais particularmente deploráveis”: “Para os seguidores desta posição pueril, todo o mal que descortinam no espaço político europeu radica na ‘decadência’ da União Europeia e na sua incapacidade de responder às expectativas das suas pobres vítimas”. Em contrapartida, Ana Catarina Mendes mostra no “JN” como teme o impasse: “É tempo de se dizer com clareza: ou a Europa muda, e é por isso que nos devemos bater ativamente e com voz própria, ou a UE não tem futuro”.

O próximo ano da UE e as eleições europeias vão ser mesmo um tempo de definição.


Armadilhas nos professores

A Lei do Orçamento, votada pelo PS e pela esquerda, define que as negociações fixarão o prazo do descongelamento e reposição de carreiras na função pública. A norma tem uma redação torturada: “A expressão remuneratória do tempo de serviço nas carreiras, cargos ou categorias integradas em corpos especiais, em que a progressão e mudança de posição remuneratória dependam do decurso de determinado período de prestação de serviço legalmente estabelecido para o efeito, é considerada em processo negocial com vista a definir o prazo e o modo para a sua concretização, tendo em conta a sustentabilidade e compatibilização com os recursos disponíveis”. Mas deve ser lembrado que a leitura desta norma ficou esclarecida por uma mudança essencial: onde estava “expressão remuneratória de tempo de serviço” (portanto só de uma parte desse tempo) ficou escrito “do tempo de serviço” (portanto de todo).

O Governo afirma agora que só negociaria parte do tempo, mas que, por ter ficado zangado com a recusa dos sindicatos, exclui aplicar o “tempo e o modo para a sua concretização”, não há mais conversa e fica o corte eterno. Há nisto duas armadilhas. Primeira, o Governo traz o conflito para o Orçamento, recuando na palavra escrita. É a armadilha política. Segunda, o Governo quer mostrar que não negoceia com sindicatos, só impõe a sua vontade. É a armadilha social.

Os sindicatos, que propõem um ajustamento até 2023, estarão a ser cautelosos. O Governo, em contrapartida, quer o conflito para punir os professores. Escolha estranha, vinda de um Governo que ganhou as graças do eleitorado por ter superado o tempo do “empobrecimento” e do susto que foi a troika e o PSD-CDS em São Bento.

E lembraram-se de Marx!

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 09/06/2018)

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1 Já se passaram quinze dias sobre o Congresso do Partido Socialista e, como é habitual nos tempos que correm, quinze dias torna qualquer acontecimento uma antiguidade. É como se as coisas que não são imediatamente faladas e discutidas perdessem a importância, deixando de existir. Mas houve uma ou duas coisas no Congresso do PS, de que a eutanásia dos dias me roubou espaço e tempo de reflexão, e que poderão vir a revelar-se importantes num futuro a médio prazo.

Refiro-me ao discurso de Pedro Nuno Santos no primeiro dia de trabalhos e à subtil resposta para bom entendedor que António Costa lhe deu. Já tinha ouvido dizer que Pedro Nuno Santos era um representante da ala esquerda do PS, mas confesso que desconhecia que fosse também um ideólogo da mesma e um futuro candidato a secretário-geral em representação dela. Ao que parece, segundo análise unânime da imprensa, assumiu-se agora em ambas as condições e, para que dúvidas não restassem, até recorreu à exumação solene do cadáver de Karl Marx, 135 anos depois da sua morte e 44 anos depois da então ala esquerda do PS tentar arrastar os recém-filiados do partido com o slogan “Partido Socialista/Partido Marxista”. Os mesmos militantes que depois, para grande alívio deles, Mário Soares conduziria às batalhas inesquecíveis da Fonte Luminosa, do “Caso República”, da luta contra a Unicidade Sindical e do 25 de Novembro — ou seja, das batalhas pela liberdade — antes de os conduzir à Europa, trocando o marxismo pela modernidade e os slogans pela realidade.

Caminho esse que depois foi feito alternadamente com o PSD, por vezes aliado ao CDS, e sempre contra a resistência dos que se reclamam herdeiros do marxismo e do leninismo. E se hoje vivemos há dois anos e meio sob uma composição de poder que parecia impossível e absurda face a todo o histórico anterior é essencialmente por duas razões: porque os eleitorados do BE e do PCP (sobretudo este) se cansaram de ter apenas uma posição de exigência e pressionaram os seus directórios para experimentar viabilizar um governo PS; e, sobretudo, porque a desmesurada viragem à direita do PSD sob Passos Coelho, a sua insensibilidade social e o seu desprezo pela raiz centrista da sua origem, abriram caminho a uma maioria sociológica e parlamentar capaz de fazer diferente com melhores resultados — ou até mesmo de fazer igual parecendo fazer melhor. Ora, quando Pedro Nuno Santos comete a ousadia de afirmar que o PS nunca mais precisará do PSD para nada e, em contrapartida, parece entregar-se todo nos braços dos seus actuais e circunstanciais parceiros de poder, ele não apenas está a enfraquecer a posição negocial futura do PS para com estes, está também a cometer, à esquerda, o mesmo erro que Passos Coelho cometeu à direita: afrontar e desprezar a classe média, o célebre milhão de votantes que decide as eleições, os mais alfabetizados politicamente, os grandes pagadores de impostos. Rezam as crónicas que o congresso se levantou a aplaudir a tirada, o que é compreensível: sendo o PSD o principal rival de poder do PS, tudo o que seja atacá-lo entusiasma as massas. E, quando se está no poder, tudo entusiasma as massas. Aliás, também rezam as crónicas que, embora não tanto quanto a Pedro Nuno Santos, o congresso aplaudiu tudo e o seu contrário. Como é próprio dos partidos felizes, que não precisam de pensar.

Abençoado PS, que aplaude de pé uma liderança de futuro, que reclama a herança de Marx. De quem?

Não foi o caso de António Costa, que levava uma moção de estratégia muito bem pensada, mas a que ninguém ligou, o que também não quer dizer nada. Mas ele, sim, ligou ao que disse Pedro Nuno Santos e deu-lhe uma resposta ao nível do seu finíssimo jogo de cintura. Começou por dizer, como se se dirigisse a todos em geral, e não a ele, especificamente, que ainda não pensava reformar-se: “Esperem, que o vosso tempo ainda não chegou e atrás de tempo, tempo virá”. Depois, não teve uma palavra sobre os seus parceiros de coligação nem sobre alianças no futuro. E, numa semana em que a Comissão Europeia avisara contra os gastos excessivos na Saúde e poucos dias antes de ser a OCDE a recomendar cautela com os aumentos na Função Pública — duas das principais reivindicações apadrinhadas pelo BE e pelo PCP — António Costa não teve uma palavra sobre isso e preferiu afirmar como principal prioridade aquilo de que a CGTP e os partidos da extrema-esquerda nunca se lembram: o regresso dos que tiveram de emigrar durante a recente crise. Com isso, António Costa não apenas colocou as prioridades na ordem do que é mais justo e mais deveria mobilizar o país, como creio que também quis passar uma mensagem que refreasse alguma euforia patente entre os socialistas. É preciso ver além da espuma dos dias, como ele disse.

E, além da babugem e da crista da onda, está um mar a encrespar-se. Na frente interna, assistimos a uma desaceleração da economia, arrastada pelo abrandamento das exportações — que nos ensina que, a médio e longo prazo, a aposta nas exportações como fonte principal de crescimento é totalmente incerta e dependente de factores externos. Mais seguro é apostar na inovação e na produtividade e tentar substituir cada vez mais produtos importados por produtos made in Portugal. E, se o défice se mantém sob controlo, o enorme elefante da dívida continua na sala — igualmente enorme e inamovível. Na frente externa, tudo é mais incerto do que nunca. A queda de Rajoy e a sua substituição por Pedro Sánchez, em Espanha, está longe de garantir que Costa vá encontrar de imediato alguém que, juntamente com Macron, possa continuar a tentar demover a obstinada teimosia alemã em fazer o que precisa de ser feito para salvar o projecto europeu. E depois há o caso italiano, para seguir de respiração suspensa.

Nunca devemos subestimar os italianos, politicamente. Aliás, nunca se deve subestimar os italianos em nada, porque são o povo mais civilizado do mundo. Se eles agora escolheram para os governar uma coligação entre um partido xenófobo e quase fascista e outro criado por um palhaço e que se declara anti-sistema; se ambos se afirmam anti-União Europeia e fazem gala em dizer que não recebem ordens de Berlim nem de Bruxelas e que não temem sair do euro nem rebentar com a moeda única, tenham medo porque estamos a falar da terceira economia europeia, mas olhem com muita atenção para tentar perceber por que razão um país onde o debate político sempre foi mais avançado chegou a este ponto.

E se algumas das medidas radicais que o novo Governo projecta ensaiar — como o imposto sobre o rendimento de taxa universal de 15% para todos, sem isenção alguma, ou o rendimento garantido, igualmente universal e igual para todos — forem avante e se revelarem, não o desastre financeiro que todos os economistas prevêem, mas um detonador económico jamais ensaiado, fiquem estarrecidos porque é todo o sistema social europeu, todas as verdades que tínhamos como inabaláveis para sempre, que ficam em causa, de repente. E isso é apenas uma pequena parte do assustador mundo que temos pela frente, com as quatro grandes ameaças de que falava Stephen Hawking, por ordem de importância: a inteligência artificial, uma guerra nuclear, as alterações climáticas, a questão demográfica. Abençoado PS, que aplaude de pé uma liderança de futuro, que reclama a herança de Marx. De quem?

2 Não há nada a fazer com os alemães: são mesmo arrogantes, convencidos de que têm de dar lições a todos os outros. Há cinco anos, no auge da crise, cuja dimensão em grande parte nos impuseram sem necessidade, Angela Merkel, dignou-se visitar-nos por umas horas. Quando um jornalista lhe perguntou humildemente se a Alemanha nos poderia ajudar, respondeu que sim, poderiam importar alguns engenheiros portugueses (porque, surpreendentemente, em algumas áreas, os nossos engenheiros são melhores do que os alemães). Recebi isto como um insulto: nós pagávamos a formação dos engenheiros com os nossos impostos e, uma vez ela terminada, a Alemanha dava-nos a “ajuda” de os receber nas suas fábricas de excelência, onde se factura o maior excedente comercial do mundo. Desta vez, de visita de dois dias, António Costa levou-a a ver o que de melhor produz a tecnologia portuguesa ao serviço das multinacionais alemãs em Portugal. E, de caminho, lembrou que também tínhamos bons vinhos para exportar. “Nein!”, disse a chanceler Merkel, “na Alemanha também temos excelentes vinhos!”. A sério, Angela? Aquela droga do Riesling? Nem os vinhos, Angela? O país com piores vinhos do mundo nem sequer está aberto a importar vinhos decentes dos seus parceiros europeus? E depois de matarem a Europa com essa visão de Tio Patinhas, o que vão vocês fazer, sentados em cima de pilhas de dinheiro acumulado e de Mercedes e BMW que ninguém terá dinheiro para vos comprar?


Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

Entre as brumas da memória


Dica (768)

Posted: 08 Jun 2018 01:43 PM PDT

Making China Great Again (Evan Osnos)

«In an unfamiliar moment, China’s pursuit of a larger role in the world coincides with America’s pursuit of a smaller one.»

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Querida RTP

Posted: 08 Jun 2018 10:30 AM PDT

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Carlucci, essa criatura «cínica»

Posted: 08 Jun 2018 08:01 AM PDT

Francisco Seixas da Costa divulgou no Facebook o texto de um artigo publicado hoje no JN. Mas já que este jornal é useiro e vezeiro em não respeitar links (quantos textos de Manuel António Pina eu não perdi…), copio aqui na íntegra.

Carlucci

Há dias, uma televisão convidou-me a dar um testemunho, por ocasião da morte de Frank Carlucci, o embaixador que os americanos enviaram para Portugal, alguns meses depois do 25 de abril. Agradeci, mas não aceitei.

Faço parte de uma geração que, por algum tempo, viveu com a imagem regular de Carlucci na nossa (à época única) televisão. Aquela figura de rictus estranho, com umas patilhas de forcado, foi então uma espécie de vedeta nacional. Eu já era diplomata e tenho bem presente a sua importância na sociedade política portuguesa.

Segundo alguns historiadores, Carlucci terá convencido o chefe da diplomacia do presidente Nixon, Henry Kissinger, de que a deriva revolucionária portuguesa, subsequente ao 25 de abril, não condenava necessariamente o país a converter-se numa república socialista radical, que este via como uma espécie inevitável de "vacina" para a Europa ocidental. Para o embaixador, havia a opção de apoiar os líderes dos partidos moderados, tentando, com a ajuda de regimes pluralistas europeus, promover a instauração da democracia no país. O facto de isso ter assim sucedido é tido por muitos a crédito de Carlucci.

Por este facto, Carlucci transformou-se, aos olhos de alguns, num "herói" da democracia portuguesa, uma espécie de "santo padroeiro" do 25 de novembro. E os descendentes políticos dessa gratidão apresentaram, na Assembleia da República, votos (diferenciados) de pesar pelo passamento do político americano. Esse voto tem de ser respeitado. Quero, porém, deixar aqui claro que, se acaso fosse deputado, não me teria associado a ele, abstendo-me ou saindo da sala. Porquê? Porque não aplaudo cínicos.

Frank Carlucci apoiou os democratas portugueses, não pelo sentido humanista decorrente de uma opção a favor da vida política em liberdade no nosso país, mas exclusivamente porque esse era o interesse geoestratégico americano de ocasião. Mas não será isto um preconceito? Não creio. Em outras ocasiões, a História prova que o mesmo Frank Carlucci deu apoio, claro e deliberado, a golpes políticos conducentes à instauração de ditaduras e regimes opressivos noutras partes do Mundo. Com orgulho declarado e sem o menor remorso.

Aliás, não é necessário ir muito longe para constatar essa duplicidade: a mesma administração americana que enviou Carlucci, para substituir um diplomata que não tinha "visto chegar" a Revolução cujas consequências pretendia combater, era precisamente o mesmo que até então se mostrara plenamente confortável com o regime ditatorial de Marcelo Caetano. Desejo assim que Carlucci descanse em paz. Nada mais.

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Entrevista com Deus - Especial Dia Mundial do Ambiente

Posted: 08 Jun 2018 03:01 AM PDT

«Negócios: Esta semana, festejámos o Dia Mundial do Ambiente, bem como o Dia Mundial dos Oceanos, por isso nada como entrevistarmos aquele que é o criador disto tudo. Olá, Deus. Lembra-se de ter tido a ideia de criar o universo?

Deus: Olá, é um prazer estar aqui e em todo o lado ao mesmo tempo. Por acaso, lembro-me. Estava sem nada para fazer e dei por mim a pensar: olha, deixa-me cá ir à net. Mas não havia net. Pensei: ui, tu queres ver que me cortaram a net. Mas não. Era eu que ainda não tinha inventado nada. Por isso, decidi criar um universo, a ver o que acontecia.

Neg: E foi assim tão fácil?

Deus: Sim. Quer dizer, ainda fui ver se havia subsídios para quem quer criar universos, mas nada. Tive de fazer tudo do meu bolso. E depois a malta da agropecuária ainda se queixa.

Neg: E foi rápido?

Deus: Levei para aí uma semana. Podia ter levado menos tempo, mas no princípio havia uma escuridão enorme sobre todas as coisas, por isso tive de trabalhar à base das apalpadelas. Foi então que percebi que faltava a luz.

Neg: Foi quando inventou a luz?

Deus: Exacto. Fiz a luz e as rendas da EDP! Quando a luz veio, foi uma surpresa. Não fazia ideia de que o universo era um T3 e, finalmente, encontrei as meias que me tinham desaparecido. Vocês têm de perceber que isto de fazer o universo é bastante semelhante a fazer obras em casa. A primeira coisa é a electricidade. Sem luz, não dá para instalar os aparelhos, etc.

Neg: Mas não ficou por aí.

Deus: Não. Comecei a ficar com a síndrome do autarca. Já só me apetecia fazer mais obras e resolvi pôr um firmamento. Era para ter posto um firmamento todo em porcelana, mas o orçamento era uma loucura. Pouca gente sabe que aquilo é tudo em contraplacado. Daqui por mais oito biliões de anos, por causa das águas e da humidade, o firmamento vai começar a ficar baço e a dar de si, mas não dava para tudo.

Neg: Mas também entretanto, nós temos ajudado a estragar um bocado o nosso planeta. Enchemos os oceanos de plástico, poluímos o ar.

Deus: Sim, é verdade. Mas o vosso planeta já não era grande coisa. Aqui para nós, eu tinha um orçamento muito reduzido e gastei quase tudo a fazer Neptuno.

Neg: Como assim?

Deus: Por exemplo, para o vosso planeta ficar bem feito, eu precisava de ter terraplanado tudo e depois é que mandava pôr as placas tectónicas, com uns caixilhos em alumínio. Ficava mais feio, mas evitava que andassem a bater umas nas outras e a fazer terramotos. A terra precisava de uma marquise em alumínio.

Neg: Se pudesse voltar atrás, o que é que mudava no mundo?

Deus: Nada. Fazer universos é uma chatice porque não dá para fazer dois iguais, ou levas uma talhada da SPA. No fundo, Deus é uma espécie de Walt Disney. Cada universo que crio é um parque temático. Vocês não imaginam um universo que eu fiz com pão ralado. Não façam esse ar de superioridade. É um mundo muito melhor do que o vosso. As pessoas de Pão Ralado são felizes. Só quem já foi panado sabe do que estou a falar.»

João Quadros

sexta-feira, 8 de junho de 2018

Como fazer um buraco numa lei

Estátua de Sal por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 07/06/2018)

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Daniel Oliveira

O acordo a que o Governo chegou com os parceiros sociais é, do ponto de vista dos trabalhadores, modesto. Sobretudo tendo em conta o cenário político em que nos encontramos. Tem uma vantagem sobre quase todos as anteriores alterações da lei do trabalho: não há retrocessos significativos. Pode mesmo dizer-se que, no conjunto, há pequenos avanços. E é a primeira vez que isso acontece com uma alteração na Lei Laboral. No tempo que vivemos na Europa, de desmantelamento sistemático dos alicerces da regulação das relações laborais, isto já quase é motivo de celebração.

Há alguns ganhos que, podendo ser importantes, são em parte aparentes. A limitação do trabalho precário, em especial dos contratos a termo, é um deles. Chamou-lhe limitação, e não combate, porque a contribuição adicional de 2% para a segurança social por rotatividade excessiva aplica-se quando a precariedade é superior à média sectorial. Quem esteja abaixo ou dentro da média não paga nada. A medida visa estancar o crescimento do trabalho precário. Sabendo-se que Portugal é o terceiro país da Europa com mais trabalho precário, só sendo ultrapassado pela Polónia e Espanha, é pouco. Sabendo-se que toda a legislação anterior foi no sentido de facilitar o trabalho precário, é um avanço. Como acontece muitas vezes, nestes casos, o diabo está nos detalhes. E as exceções são tantas que fica difícil perceber o que fica dentro da rotatividade excessiva. Entre outras, o artigo não se aplica quando os contratos a precariedade resultam de “condicionalismos inerentes ao tipo de trabalho ou à situação do trabalhador”. Um pouco abrangente, não?

Um avanço claro é o fim dos bancos de horas individuais, embora no prazo de um ano, que não estejam acordados em negociação coletiva. Todos os bancos de horas nessas circunstâncias têm de passar a ser regulados por convenção coletiva ou em bancos de horas grupais, por vida de um processo de consulta coletiva aos trabalhadores. Ou seja, passará a ser impossível o trabalhador estar, como estava agora, sujeito a uma pressão individual para aceitar o banco de horas.

O debate sobre a caducidade das convenções coletivas de trabalho sempre era o mais difícil de todos. A posição dos sindicatos não permitia que estes, na prática, fossem alterados, levando a que mudanças na economia e no mercado não fossem refletidas nos acordos de trabalho em vigor. Isto, num país com pouca tradição negocial, deu argumentos para construir uma realidade laboral paralela à lei. Do lado dos patrões assistimos ao esquema manhoso de promover a caducidade das convenções coletivas para não estarem dependentes de qualquer negociação com os sindicatos. Neste acordo, a caducidade mantém-se. Mas houve algumas alterações positivas: um alargamento do núcleo de direitos individuais assegurados ao trabalhador em caso de caducidade da convenção (abrange agora os direitos de parentalidade e de higiene e segurança no trabalho) e de direitos protegidos pelo princípio do tratamento mais favorável (o trabalho suplementar passou a fazer parte desse núcleo). E passou a exigir-se fundamentação para a caducidade, que será controlada pelo Governo, e é instituída uma instância arbitral para avaliar os fundamentos da caducidade e para decidir se há ainda há possibilidade de conseguir um novo acordo. Mais uma vez, é pouco mas é um passo.

Onde as coisas andam para trás foi na extensão do período experimental para jovens à procura do primeiro emprego ou desempregados de longa duração. Não é a passagem de 90 para 180 dias que me choca. Não considero um tempo exagerado para o empregador estar seguro de um vínculo mais forte. Na realidade, até poderia imaginar mais tempo. Mas como não há qualquer dever de contratação (é natural) nem qualquer limite ao número de “experiências” (é absurdo), este aumento de tempo resulta num incentivo um expediente espertalhão, que tão bem conhecemos nas empresas portuguesas, de rodar gente para não contratar ninguém. Por 90 dias não compensava, por 180 dias começa a compensar. Sobretudo no turismo.

Esta foi, na concertação social, a moeda de troca dada aos patrões para as medidas relativas à precariedade. É o escape que lhes permite contratar por seis meses. Com a vantagem de, ao contrário do contrato a termo, não terem de pagar qualquer compensação no fim do período experimental e dos direitos laborais estarem numa espécie de parêntesis. Quem sabe o que aconteceu com a generalização dos recibos verdes percebe que está aqui a nova brecha. No mesmo sentido, mas com menor gravidade, vai o aumento dos contratos de muito curta duração, que eram 15 dias e passam a ser de 35, sem se limitarem de modo rigoroso os sectores e as situações em que podem ser utilizados.

E é nestas duas coisas que está a chave de todos os problemas políticos a que vamos assistir nos próximos dias. O Governo tinha um acordo com o Bloco de Esquerda sobre precariedade. O tema é o cavalo de batalha do Bloco e foi aí que colocou grande parte das suas fichas. O que fez Vieira da Silva? Foi para a Concertação Social com tudo o que estava acordado com o BE, dizendo aos parceiros sociais que não podiam tirar nada mas podiam acrescentar coisas novas. Como para o resultado final o que interessa não é cada medida mas o equilíbrio entre as várias medidas, algumas anularam parcialmente o que tinha sido acordada. O que Vieira da Silva deu com uma mão na negociação com o BE tirou com a outra na Concertação Social. E o mais grave é que não informou o parceiro parlamentar desta evolução.

Ao contrário do que aconteceu em quase todos os sectores, o Governo não permitiu que houvesse reversão das alterações feitas pela troika na lei laboral – redução dos dias de férias, redução do pagamento de trabalho suplementar ou diminuição das compensações por despedimento, por exemplo. Vieira da Silva não aceitou voltar à Lei Laboral de Vieira da Silva. Mesmo assim foi possível, em troca de um avanço no combate à precariedade, chegar a um acordo com o BE. Ao esvaziar parcialmente, ainda por cima à socapa, o alcance desse avanço, o ministro Vieira da Silva, muito provavelmente com a aquiescência de António Costa, entalou o Bloco no último ano em que julga precisar dele.

Ainda assim, este continua a ser o melhor acordo até hoje saído da Concertação Social em matéria de lei laboral. A única em que, genericamente, houve mais avanços do que recuos para os trabalhadores.

O que deixa o Bloco, que tem todas as razões de queixa, numa situação difícil: deve o Bloco pisar a casca de banana lançada por Vieira da Silva e António Costa, chumbando um acordo que esvazia parcialmente um ano e meio de negociações, prejudicando com isso os trabalhadores? Não. Mas deve, na sede onde as leis se aprovam, tentar remendar os buracos que propositadamente foram feitos para tornar mais ineficaz o combate à precariedade, não permitindo que o período experimental se transforme nos novos recibos verdes, onde cabe tudo o que lei tenta evitar.

O mundo sem nós

Estátua de Sal por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 08/06/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Quem, dotado de conhecimento empírico e sensibilidade rural, atravessar algumas zonas onde foi cumprida, com o máximo zelo, a ordem governamental de limpeza dos campos e florestas como princípio de precaução, depara-se muitas vezes com um cenário sem vida: toda a vegetação rasurada, a terra despida de acidentes vegetais, as árvores com os ramos subidos, mantidos à distância de tudo o que arde, a visibilidade total garantida, de modo a que nem um rato encontra lugar onde se esconder. Ali, a prevenção do acidente foi a causa do acidente. Perigoso redobramento este, em que a relação com a catástrofe se tornou catastrófica. Estes campos e florestas limpinhos, oferecidos à população urbana como imagem de um mundo desejável, onde foram anulados muitos dos riscos potenciais, são na verdade um mundo desenhado no ecrã por geo-construtivistas que põem em prática, antecipadamente, as projecções do Pior, sob o pretexto de as evitar. Não exageremos, baixemos o tom demagógico porque, ao menos, não temos mortes de pessoas, às dezenas. Não temos o Pior, temos apenas expropriação ecológica. E o Pior, estamos bem lembrados, deu-se de facto no ano passado, não por causa destes geo-construtivistas, que administram uma biopolítica das florestas e dos campos contra os desastres potenciais, mas por causa de outros geo e sócio-construtivistas que não saberemos nunca nomear porque fazem parte de uma cadeia histórica de transmissões e responsabilidades.

Quando os campos e florestas ficarem completamente limpos, de modo a evitar qualquer catástrofe, quando à beira das estradas forem abatidas todas as árvores que chocavam contra os carros ou avançavam para os focos de incêndio, teremos realizado o ideal da paisagem biopolíticamente construída por uma demência ortomaníaca. Aí, tudo é ordem e beleza, luxo, calma e voluptuosidade. É um convite à viagem? Pois é. Mas não convida ninguém a lá ficar.

Quando os jornais avisam, logo no princípio da Primavera, que este ano “podem” arder não sei quantos milhares de hectares e divulgam um “mapa de risco” elaborado por cientistas, o que significa este “podem”? Trata-se de um risco que se situa no campo do provável, ou de um risco puramente potencial? É preciso distinguir um do outro: o primeiro deve ser objecto de uma acção de prevenção, facilmente justificável, enquanto o segundo, o risco potencial, implica uma resposta muito mais difícil de executar e de legitimar. E se tivéssemos entrado numa zona de sensibilidade paranóica que já não consegue distinguir um do outro? E se esta biopolítica que procura a total imunização tivesse um “efeito boomerang” (já visível para quem está treinado a olhar a paisagem sem ser nos ecrãs ou através de lentes fotográficas)? Contra este argumento, pode-se dizer: antes isso do que o descuido que já matou tanta gente. Mas construir um mundo em que o ideal é a imunidade absoluta ao desastre e, no mais alto grau, à catástrofe é  começar a desencadear o Pior, um pouco da morte. Paul Virilio, o grande teórico da velocidade, inventor dessa ciência que é a dromologia, mostrou com eloquência que o acidente é consubstancial à substância. Esta não é o que existe antes daquilo que acontece (o desastre), mas o que existe ao mesmo tempo. Assim, inventar o navio é inventar o naufrágio. O desastre global, diz Virilio, dá-se quando há uma industrialização do “acidente artificial”. O acidente artificial, neste caso, é uma “limpeza” que se pretende tão eficaz, tão preventiva, tão imunizadora, que provoca boa parte do mal que pretende prevenir e dá-nos, numa forma abreviada, a imagem da catástrofe ecológica última: um mundo sem nós.