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domingo, 17 de junho de 2018

A gula e a indigestão

  por estatuadesal

(Francisco Louçã, In Expresso, 16/06/2018)

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Continua a bolha bolsista, apesar da subida dos juros, e os bancos ganham pelos dois lados, pelo crédito que concedem e pelas operações financeiras que intermedeiam.


Para a grande banca, as notícias são boas. Os seis maiores bancos norte-americanos, Citigroup, Morgan Stanley, Wells Fargo, JP Morgan Chase, Bank of America, Goldman Sachs, anunciam que pouparam dois mil milhões de dólares em impostos, graças às concessões de Trump, e esperam ganhar ainda mais nos próximos anos. Com as taxas de juro mais altas, aumenta a margem bancária e, entretanto, os bancos também beneficiam da confiança nas Bolsas, realizando este ano mais 38% de lucro com vendas de ações. Tudo parece conjugar-se para uma bonança perfeita: continua a bolha bolsista, apesar da subida dos juros, e os bancos ganham pelos dois lados, pelo crédito que concedem e pelas operações financeiras que intermedeiam. Só que muita gula devia sugerir cautela: Clément Juglar, o médico que descobriu a estatística dos ciclos económicos, avisava que a razão da crise é a prosperidade, depois da festa vem a ressaca.

Miragem americana

A Reserva Federal acompanha este entusiasmo e autorizou estes seis bancos a gastarem 72 mil milhões de dólares em compras das suas próprias ações e em dividendos, financiando assim a ilusão sobre o valor da empresa e beneficiando de duas formas os capitais investidos em cada banco. Parece um milagre: a subida dos juros, que tendencialmente arrasta a queda das Bolsas, parece contrariar a lei da gravidade e as ações continuam em valores elevados (em parte pelo truque da aplicação de resultados na compra das próprias ações). É a situação em que todos enganam e todos são enganados, mas ninguém se pode queixar.

Há algum nervosismo, houve mesmo um susto em fevereiro deste ano, quando Alan Greenspan, que durante dezanove anos dirigiu a Fed e foi um dos promotores da desregulamentação e da globalização financeira, anunciou que existem duas bolhas, no mercado de ações e no mercado de obrigações, e os mercados tiveram um momento de pânico. Passou depressa, a Fed continua a subir juros e as Bolsas continuam confiantes.

Uma das razões para esta anormalidade é a certeza de que as autoridades compensarão o sistema financeiro se houver riscos e perdas. Ora, há duas formas de exercer esse apoio pelo soberano: baixar os impostos (à Trump, mas a UE não lhe fica atrás, com a maravilhosa invenção do crédito fiscal por impostos diferidos) e facilitar os esquemas. As duas estão a ser usadas.

Esquemas offshores

Um relatório recente da Oxfam sobre os bancos europeus, com dados de 2015, mostra como estes esquemas funcionam. O caminho é simples: registar os resultados em offshores. Assim, para os vinte maiores bancos europeus, um em cada quatro euros de lucro passou a ser resultado de operações declaradas em paraísos fiscais, com 12% de faturação registam-se 26% dos lucros (os bancos norte-americanos usam o mesmo processo, dois terços da sua redução de impostos é conseguida por aplicações em paraísos fiscais). O que leva a situações curiosas, como o facto de estes vinte maiores bancos terem obtido 4900 milhões de euros no Luxemburgo, mais do que no Reino Unido (o centro financeiro europeu), na Suécia e na Alemanha (a maior economia europeia). Desses lucros, 638 milhões vêm de paraísos fiscais onde estes bancos não têm sequer um porteiro. Ou, também revelador, registando o mesmo volume de negócios no Mónaco e na Indonésia, adivinhe onde conseguem dez vezes mais lucro.

A ovelha negra alemã

O problema é que, neste mundo deslumbrante, há ovelhas negras. A nossa é o Deutsche Bank, e é logo o maior banco europeu, e alemão, ainda por cima. Segundo “The Economist”, o Deutsche Bank gastou 40 mil milhões com pessoal numa década, o que lembra prémios generosos, mas só obteve um aumento de lucro de 2% no ano passado, tendo perdido substancialmente na sua operação de investimento, ou seja, na especulação financeira. É precisamente aí que está mais exposto, porque o DB gera uma carteira de 43 biliões em derivativos. É um valor nocional, aliás o seu valor real de mercado é desconhecido e as autoridades europeias de supervisão bancária evitam cuidadosamente meter-se no assunto, mas é uma montanha de dívida.

O DB é um perigo ambulante, cuja solidez depende unicamente da sustentação do Governo alemão (a garantia implícita tem um valor económico elevado e foi o que salvou o banco desde o crash financeiro da década passada). Os próprios acionistas avaliam o banco em 40% do seu valor contabilístico e está para ver se a possível fusão com o Commerzbank, que seria uma grande operação de Merkel, é suficiente para limpar e reorganizar um gigante de pés de barro.

Gula antes de tudo

“Não vejo isso a acontecer brevemente, mas um dia haverá uma nova crise e os países com dívidas públicas mais baixas têm menos hipóteses de serem atacados pelos mercados”, explicou em Lisboa Klaus Regling, o chefe do mecanismo europeu de estabilidade. É curiosa esta certeza conformista sobre a nova crise, mas é mais revelador que um político apresente os mercados financeiros como um lobo exterminista. Tudo certo, a bem dizer.

Pode então prolongar-se esta bonança que engorda os grandes bancos? Sim. Mas o preço é acumular fatores de risco. O BCE anunciou que, embora em montantes reduzidos, continuará até dezembro o seu programa de injeção de liquidez e que tentará manter os juros baixos até ao verão de 2019, mas não é certo que possa manter o segundo prazo. De facto, Draghi está a condicionar o seu sucessor e a sua escolha tem um único motivo: concluir o mandato sem que ocorra uma nova crise europeia. E para isso precisa que a banca alemã e a banca italiana não sofram abalos, ou seja, que Merkel faça pela fusão do Deutsche e do Commerzbank o que a Comissão Europeia não permitiria a nenhum outro governo, e que todos se esqueçam da Itália.


Kim e Justin

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A Justin Trudeau está reservado um círculo especial no inferno de Dante. Ele é “fraco” e “muito desonesto”, escreve Trump e reforça o seu ministro do Comércio, Wilbur Ross. Macron, tão abraçador, ficou aborrecido, e Merkel, tão contida, acha que a raiva não é boa conselheira. Do outro lado do mundo, Kim Jong-un, o rocket man, que era “baixo e gordo”, passou a ser “talentoso” e “bastante inteligente”, até porque tem umas praias magníficas, onde se podiam construir condomínios apetecíveis e atrair os turistas chineses e sul-coreanos, cheios de dinheiro. Trump está de olho no negócio. Assim, a cimeira do G7 falhou e a de Singapura resultou.

Uma e outra ficam-se por declarações de intenções, mas para os seus aliados tradicionais e muito fiéis Trump reservou a evocação de motivos de segurança para taxar as importações de aço e alumínio, enquanto para Kim reservou a promessa de visitas e entendimentos. Com uns começa a guerra, com outro suspende a guerra. Conclusão que tirarão os aliados: o mundo é imprevisível. Conclusão dos inimigos: Trump é previsível.


O eixo Roma-Viena-Berlim

Foi na quarta-feira, numa conferência de imprensa em Berlim, que o ministro do Interior, Horst Seehofer, da ala bávara do partido de Merkel, anunciou um eixo Roma-Viena-Berlim sobre a imigração. O anúncio é extravagante, surpreende que um ministro do Interior alemão dê uma conferência ao lado do primeiro-ministro da Áustria, Sebastian Kurz, mas sobretudo que anuncie uma viragem da política alemã sobre os refugiados.

Seehofer contou que tinha falado com Salvini, o líder da extrema-direita italiana, ministro do Interior, e que “é sua vontade que Roma, Viena e Berlim trabalhem juntos ao nível dos ministros do Interior nas áreas da segurança, combate ao terrorismo e na questão essencial da imigração”. O Aquarius já estava à procura de porto de abrigo, a questão política da imigração está em cima da mesa de reuniões de emergência entre Conte e Macron, e um ministro alemão toma a iniciativa de anunciar um eixo entre Berlim e dois governos com a extrema-direita.

No meio de tudo isto, Merkel e Macron encontram-se na próxima semana para tentar compor as propostas para a cimeira do fim do mês. Tudo se vai decidir, continuam a prometer, mas para Merkel tem de ser tudo em pequeno: poucos milhões para um orçamento de investimento europeu, uma força de intervenção rápida subordinada a Bruxelas e, para ter a certeza de ser recusado, um sistema europeu centralizado de acolhimento de imigrantes. O eixo Roma-Viena-Berlim encarregar-se-á de abater essa proposta. O problema é que parece que esse eixo começa a ter voz.

No 1.º aniversário da tragédia de Pedrógão Grande

  por estatuadesal

(Carlos Esperança, 17/01/2018)

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A comunicação social procede à mórbida celebração do incêndio. Enquanto requeima as vítimas em imagens repetidas até à náusea e se resssufragam as almas em remissas televisionadas, com mais pessoas do que crentes, impede-se o luto dos que sofrem a dor da ausência dos que o fogo devorou, a sangrar por dentro.

Há nesta lúgubre ostentação da tragédia o aproveitamento que, desde o início, serviu objetivos políticos que apenas o delírio do presidente da Misericórdia e do PSD de Pedrógão atenuou com os suicídios que imaginou em transe partidário e oportunismo antidemocrático.

Foram mais respeitados os mortos que um carvalho paroquial esmagou no adro da igreja ao tombar sobre uma procissão, na Madeira, mas tiveram menos sorte os estropiados e os herdeiros dos falecidos porque os fundos da diocese eram para a salvação das almas e os do Estado para reparar os danos oriundos de matas particulares e da inclemência do tempo.

Das 13 pessoas mortas no Funchal, incluindo uma criança, pela queda da árvore, em 15 de agosto do ano passado, não mais se ouviu falar, nem dos 49 feridos, 12 dos quais em estado grave, se sabe quantos vieram a falecer. As famílias de 13 mortos e os numerosos estropiados terão certamente missa, mas não terão o PR, o PM e a Dr.ª Cristas, dois por exibição pia e um por chantagem ímpia, para os carpir.

Hoje, percorre-se a estrada da morte, em sucessivas romagens televisivas que dilaceram os sobreviventes, enquanto a presidente da comissão de vítimas, esgotada a angariação de inscrições no CDS, se desdobra em entrevistas, disponível e com visual cuidado.

Os mortos não merecem e os vivos podiam ser poupados ao chumbo derretido que lhes aviva as feridas por cicatrizar, com as imagens que alimentam a patologia televisiva.

Salvem os homens!

  por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 15/06/2018)

Guerreiro

António Guerreiro

Quando, há poucas semanas, foi revelado um estudo que mostra que as mulheres em Portugal ganham menos do que os homens e estão sub-representadas nos postos de chefia, havia também aí uma informação implícita: a de que é grande a força da inércia, mantendo assim uma situação que irá chegar ao fim em pouco tempo porque já não há nada que a legitime e mantenha viva essa força; quando, na semana passada, foi anunciada a composição do novo governo espanhol, com mais ministras do que ministros, não havia razão nenhuma para percebermos essa novidade como demagógica inflação ideológica, mas como uma correspondência com a verdade do mundo em que vivemos.

A dominação masculina chegou ao seu fim, sem o estrondo de uma revolução, muito embora seja uma verdadeira revolução que veio interromper, no nosso tempo, o curso do mundo. Sociólogos e historiadores falarão, a propósito deste declínio surpreendente, na extinção da família em que se baseava o patriarcado e no esvanecimento da “lei do Pai” ou, literalmente, da própria figura do pai (quem não conhece hoje mulheres solteiras, com um filho ou mais, que abdicaram de atribuir uma função e pedir responsabilidades ao pai da criança?).

Eu preferia falar, aqui, de um outro fenómeno que é, desde há algum tempo, objecto de estudo: o falhanço dos rapazes, na escola, em comparação com o sucesso das raparigas (nesse estudo sobre o défice salarial das mulheres em Portugal, era também revelado este novo dado: as mulheres têm mais habilitações escolares e académicas do que os homens), o que já levou alguns governos a estudar a hipótese de criar quotas masculinas para alguns cursos.

Nos países ocidentais, a situação é esta: os rapazes atingem um nível de formação menos elevado, preferem fazer estudos mais breves e abandonam com mais frequência o percurso escolar. Segundo dados oficiais, em França, 43% dos alunos masculinos chumbam nas provas do final do ensino secundário (o baccalauréat), contra 20% das alunas; dois terços dos jovens que saem sem qualificação do sistema escolar são rapazes; nos Estados-Unidos, na Inglaterra, na América do Sul e mesmo na Ásia Central, as mulheres são maioritárias na Universidade. Na Austrália, tal como na maior parte dos países europeus, a diferença entre o número de homens e o número de mulheres que obtêm um diploma é de 10%  a favor das mulheres; e, na Noruega, essa diferença é de 18% .

Estes números são fornecidos num artigo assinado por Martin Dekeiser no último número (Maio-Agosto), da revista francesa Le débat. Nesse artigo, que faz parte de um dossier sobre Le maculin en révolution, somos ainda informados de que nos países mais desenvolvidos os homens começam a ter mais dificuldade em arranjar emprego do que as mulheres e de que nos Estados-Unidos, de 1970 até hoje, a contribuição das mulheres americanas para a economia doméstica passou de 7% para 43%.

Porquê este desinvestimento escolar dos rapazes e a cadeia de consequências que dele advém? Porque é que há uma tal diferença de atitude em relação à escola e à sociedade? Porque é que as raparigas com origem nos meios pobres são muito mais bem sucedidas do que os seus congénere masculinos na elevação social? As respostas a estas perguntas são ainda muito hesitantes, mas o que é de ciência certa é que a imaturidade prolongada é hoje uma marca muito mais saliente nos homens do que nas mulheres.

Eles tendem a ser incapazes de assumir a plena responsabilidade sobre o seu modo de vida. Não se trata daquela cultura “jovem”, que depois da Segunda Guerra inventou a adolescência como categoria sociológica e cultural. Trata-se antes de uma juventude retardada, só representável enquanto patologia social.

Banco de Livros Escolares de Válega (BLEV) - doação/troca gratuita de livros escolares

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COMUNICADO

Caros Conterrâneos,

O Banco de Livros Escolares de Válega (BLEV), criado pela Junta de Freguesia de Válega, tem como objetivo apoiar a população valeguense, pretendendo maximizar a reutilização de manuais escolares usados e manuais de apoio ao estudo, como gramáticas, dicionários, etc. disponibilizando-os gratuitamente a quem deles necessite.

Numa altura em que se aproxima o novo ano letivo (2018/19), o recurso ao BLEV pode ser uma boa solução, principalmente devido às contingências económicas de muitas famílias, mas também face à escassez de respostas para o encaminhamento de manuais escolares usados.

Assim sendo, a Junta de Freguesia de Válega agradece, antecipadamente, a todos as pessoas que, voluntariamente, queiram contribuir com a doação de manuais escolares usados e manuais de apoio ao estudo, que foram adotados no ano letivo (2017/18), ao nível do 2.º e 3.º Ciclos do Ensino Básico e do Ensino Secundário.

A doação de livros escolares referentes ao ano letivo 2017/18 pode ser efetuada até ao final do mês de julho na secretaria da Junta de Freguesia de Válega, onde também poderá ser consultado o respetivo regulamento.

Com os melhores cumprimentos,

A Junta de Freguesia de Válega,

Válega, 14 de junho de 2018

Entre as brumas da memória


Dica (772)

Posted: 16 Jun 2018 01:06 PM PDT

The G-7. FiascoIt's Time to Isolate Donald Trump (Roland Nelles)

«The G-7 summit once again made it clear that U.S. President Donald Trump is intent on treating America's allies worse than its enemies. Europe must draw the consequences and seek to isolate Trump on the international stage.»

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Sob a condição humana

Posted: 16 Jun 2018 09:57 AM PDT

Miguel Sousa Tavares, Expresso 16.02.2018 (Excerto)

«Olhem para a célebre fotografia da Cimeira do G7 em Charlevoix, no Canadá. É daquelas fotografias que ficarão para a História. Um contra todos. Um, Donald Trump, que nem sequer se digna levantar-se para enfrentar os outros seis, que estão de pé, à roda da mesa, tentando em vão demovê-lo de partir para uma guerra comercial contra dois terços da população mundial. Trump nem se levanta, nem responde, nem contesta, nem sequer os olha. Parece um menino mimado, a fazer uma birra. Um menino mal-educado, que chegou tarde ao encontro e partiu antes de todos, despedindo-se à francesa e insultando o seu anfitrião depois de partir e mais uma vez rasgando o mísero acordo, só de palavras, que havia assinado. Acham que ele se preocupou? Não, com aquela fotografia ganhou a reeleição e nem vai precisar da ajuda dos russos nem da batota da Cambridge Analytica para ser reeleito. O comum dos americanos gosta daquela pose — “America first”. O comum dos americanos não vê além do próprio umbigo, são medíocres, ignorantes e arrogantes, como o seu Presidente. E o comum dos americanos é a maioria. Antes, Obama ganhou porque o seu adversário, McCain, não era suficientemente mau, antes pelo contrário, para atrair o comum dos americanos. Pela democracia se destrói a democracia: Trump é a demonstração perfeita. Mas também o ‘Brexit’, Kurtz, Orbán, Salvini e tutti quanti.

Ao contrário do que sucedeu no Canadá, não sei por que razão a maior parte dos analistas não anteviu que o encontro Trump-Kim Jung-un ia ser um sucesso. Dois iguais reconhecem-se quando se encontram e têm tudo para se entenderem por instinto, tal como Trump previra. Encontraram-se dois aldrabões de feira, dois despenteados mentais, dois tresloucados nucleares ao estilo “Dr. Strangelove” do Kubrick, dois vaidosos compulsivos que primeiro satisfizeram os respectivos egos a ameaçar o mundo com uma destruição apocalíptica e depois se rebolaram de puro prazer autocontemplando-se perante 2000 jornalistas como os anjos milagreiros que tinham salvo a Humanidade da guerra que eles próprios iam lançar. No seu íntimo, já se imaginam em Estocolmo, a receber a meias o Prémio Nobel da Paz — e não é sonho fora do alcance. Se tudo isto acabará, de facto, no desarmamento nuclear da Coreia do Norte ou com Kim a comer um McDonald’s na Casa Branca, ninguém sabe ao certo. Tudo é feito de aparências, de egoísmos, de muros, de fachadas, de fake news e tweets no lugar onde antes estava a informação, das redes sociais onde antes estavam os livros, dos aldrabões e demagogos onde antes estavam os líderes. Talvez no fim reste apenas a música e a música será aquilo que nos permitirá não endoidecer, à medida que vemos tudo o resto perder o sentido. E esperaremos, quietos, indefesos, impotentes. Assistiremos ao triunfo dos porcos, à morte acelerada da natureza — até à morte da natureza humana. Talvez tenha sido disto que Anthony Bourdain quis fugir. Ou talvez já não haja fuga, apenas espera. Talvez, como escreveu Cesare Pavese, já estejamos mortos, mas não sabemos.»

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No Facebook ou numa TV perto de si

Posted: 16 Jun 2018 07:14 AM PDT

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Não se ponham a dançar em conjunto

Posted: 16 Jun 2018 03:11 AM PDT

José Pacheco Pereira no Público de hoje:

«Marcelo vai-se encontrar com Trump no final deste mês. É um encontro protocolar e normal entre dois Estados que têm relações diplomáticas. Não tem sentido pôr em causa que o encontro aconteça. Mas... o terrível “mas”...

Sabe-se que Trump não lê quase nada do que lhe é enviado pelos diferentes serviços e o resultado é que a informação que provavelmente lhe é dada antes do encontro com Marcelo deve caber em meia folha em letras grandes. A julgar pelos precedentes conhecidos deve incluir a transcrição fonética ou coisa parecida do nome de Marcelo, os pontos de litígio entre os dois países, com relevo para a Base das Lajes, e — e é aqui que as coisas se complicam — um perfil psicológico do Presidente português. A folhinha dirá coisas sobre os “afectos”, talvez sobre as selfies e a popularidade de Marcelo, aconselhará o Presidente americano a ser igualmente próximo e íntimo, como foi com Macron e Kim. Imensas palmadas nas costas, muita linguagem corporal. E essa sugestão será certamente seguida por um presidente que gosta da encenação e da coreografia. O problema é o... outro Presidente que gosta das mesmas coisas, Marcelo Rebelo de Sousa. Por isso, a tentação vai ser grande de andarem a mostrar como gostam um do outro e a usar o narcisismo e a vaidade para marcar pontos. Ambos. Durará uns minutos, mas será penoso de ver.

Trump não sabe nada sobre Marcelo e Portugal, mas Marcelo sabe mais do que o suficiente sobre Trump para nos poupar o espectáculo e reduzir a coreografia ao mínimo. Trump é um adversário da União Europeia, da OTAN, do sistema de globalização de que Portugal faz parte, dos acordos que Portugal assinou com os EUA e que este rompeu sem consideração por nada e sem qualquer política consistente que não seja a de agradar à sua “base” e ao seu ego. Trump é um perigo para a paz e a estabilidade mundial, um amigo demasiado próximo de Putin, Kim, Duterte, Erdogan, acabou por elogiar em termos entusiásticos o novo Governo italiano, apoiou Le Pen, os racistas ingleses e alemães, e de transformar o bom do Canadá em inimigo da América. A lista seria longa, mas aponta sempre para a mesma coisa: machismo, poder, autoritarismo, força e violência.

Quando Marcelo for ter com Trump, terá de ter em conta que a maior repercussão da sua viagem vai ser o tweet de circunstância que ele faz quando encontra os seus congéneres estrangeiros, no intervalo dos frisos de militares, bombeiros e polícias que ele gosta de colocar como paisagem de fundo, para além de Kim Kardashian. Não é até impossível que ele lhe faça um daqueles elogios guturais que costuma fazer, “nice guy”, “very clever guy”, vindo do “beautifull sunshine country, Spain. I’m sorry, Portugal”, “I love bullfights”, e inanidades do género. Pode até perguntar-lhe sobre as oportunidades de negócios imobiliários nas praias do “Mediterrânio”, e se Portugal também quer uma Torre Trump — “I’m joking, President Marcell”.

Senhor Presidente, o nosso, faça tudo para o evitar ter por perto. Mande aumentar a distância dos púlpitos. Deixe a promiscuidade para a alt-rightportuguesa, que tem bons contactos no “trumpismo”. Fale-lhe nos imigrantes que isso basta para o pôr maldisposto, e, quanto às Lajes, não vale a pena ter muita esperança, porque ele deve achar que “custa muito dinheiro” e ainda lhe pede que aumente a contribuição para a OTAN. Nada de bom para Portugal virá do lado de Trump, muito menos dos republicanos, e pouco dos democratas, e lembre-se que a mossa que Trump está a fazer às democracias também cá chegará, ou melhor, já cá está. Talvez repetir na América o discurso do 25 de Abril sobre o populismo tenha mais sentido.

Com Trump é preciso distância, cara cerrada, no máximo esboços de sorrisos, mais esgares do que esboços, com o ar mais enjoado do mundo. A chanceler Merkel faz isso bem. Trudeau e Macron andaram a bajulá-lo e saiu-lhes mal. Bem feito! Marcelo não deve, nem precisa de ser mal-educado, mesmo com o protótipo da má-educação que tem à sua frente, mas deve ter em conta que nos está a representar, e intimidades com Trump são um insulto ao povo português.

Lembre-se, que, quando Trump for para dentro da Casa Branca, entre o último aperto de mão e a porta, ele já se terá esquecido de tudo, do seu nome, de Portugal, de tudo. Mas nós não.»