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segunda-feira, 7 de janeiro de 2019

A meritocracia não consegue redistribuir a riqueza?

  por estatuadesal

(Daniel Deusdado, in Diário de Notícias, 04/01/2019)

desigualdade

Quem não viu a edição deste fim-de-semana do DN perdeu um conjunto de artigos para guardar. Dois deles - páginas 72 e 73 - do Prémio Nobel, Joseph Stiglitz, e de Gordon Brown, antigo primeiro ministro britânico, deixam-nos no ponto certo para perceber, por um lado, a conta a pagar nas economias pelas loucuras de Trump; por outro, o enorme risco da globalização acabar em protecionismo exacerbado. Mas o fio condutor dos artigos tem na base, de forma implícita, a questão central do nosso tempo: como redistribuir a riqueza. Porque, no essencial, é sempre disto que estamos a falar.

Trump é o melhor produto da alucinação coletiva da América: diminui impostos aos rendimentos mais elevados e às grandes corporações, na ilusão de que isso gere mais investimento e emprego. O emprego, no entanto, é cada vez de pior qualidade e não resolve a equação dos que ficam de fora.

Aliás, uma sociedade onde os que têm rendimentos lutam pela diminuição da assistência à saúde (Medicare) dos outros está profundamente doente. É o expoente absoluto de como a meritocracia se transformou numa ideologia febril, que glorifica apenas a vitória individual e desdenha as causas que levam muitas dessas pessoas à exclusão.

O défice da América está já ao nível do trilião de dólares (bilião de euros) e agora, segundo Joseph Stiglitz, até os milionários se assustam sobre quanto vão custar todos os truques para garantir a reeleição de Trump. Porque, apesar do colossal défice dos Estados Unidos - na casa dos 5% -, a injustiça social continua a agravar-se.

Stiglitz assinala que o ataque à sinagoga judaica em Pittsburgh, onde morreram 11 pessoas em Outubro, lhe fez lembrar a "noite de cristal" de 1938, quando forças paramilitares atacaram judeus por toda a Alemanha com a conivência de Hitler. Apesar das diferenças, note-se o paradoxo: este atirador não é do Daesh nem um muçulmano a gritar "Allahu Akbar". Robert Bowers, branco, de 46 anos, é pura e simplesmente antissemita e anti-imigração. Um entre milhões.

O que pretendem estes atiradores repletos de ódio na América de hoje? Um emprego? Mais riqueza? Outra vida? Esta sociedade dividida entre os que "conseguem" e os que "não conseguem" desemboca onde?

"Nenhum país sozinho pode resolver problemas como a desigualdade, a estagnação salarial, a instabilidade financeira, a evasão fiscal, as mudanças climáticas, as crises de refugiados e a imigração", dizia Gordon Brown, no passado domingo, neste jornal. Isso significa que toda a globalização de mercadorias, de fluxos financeiros, a livre circulação de pessoas e, sobretudo, a partilha e transferência de conhecimento a uma velocidade estonteante pelas redes digitais, precisa de uma coerência entre países e classes sociais. Caso contrário, tudo isto é apenas "business", sem humanidade por detrás de cada rentabilidade.

A já caricatural estatística de que 80% da riqueza mundial está com 1% da população, acabará em desgraça se continuar a agudizar-se este rácio.

A Revolução Francesa, a Revolução Russa ou a Segunda Guerra Mundial tiveram na base sempre a mesma necessidade extrema de milhões de pessoas em acederem a condições mínimas de vida. Quando não o conseguem, daí até à guerra nunca é muito longe

A perplexidade maior é, afinal, verificarmos que a extraordinária conquista civilizacional do Ocidente, a meritocracia, ligada ao sucesso dos mercados e à própria democracia, não pode - ou não consegue - interferir com o curso de um desequilíbrio imparável, onde os que não dispõem de capital ou de saber (sejam pessoas ou países) ficam cada vez mais subjugados ao poder dos mais fortes. Isto num contexto onde os recursos naturais escasseiam, as condições ambientais agravam-se fruto da avidez do crescimento e, por fim - cereja em cima do bolo - o número de seres humanos mais abundante de sempre (nove mil milhões em 2050) vai ter a forte concorrência laboral de infinitos exércitos de robôs rentáveis e obedientes.

Portanto, e finalmente a questão prática: quem pode assumir uma eficaz redistribuição da riqueza gerada por este novo processo? O Estado - onde os seus funcionários tendem a cair na autopreservação e se multiplica a burocracia para evitar a corrupção? Ou os modelos liberais, como o da "caridade privada" anglo-saxónica? Na verdade, ambos estão a falhar. Há demasiados excluídos para não precisarmos urgentemente de uma nova resposta. E já sabemos que não é o populismo, porque ele se traduz essencialmente em ódio. Mas a democracia tem de ser muito mais do que conseguimos até hoje.

domingo, 6 de janeiro de 2019

Mário Machado, Manuel Luís Goucha e outros perigos, como o politicamente correcto

Novo artigo em Aventar


por João Mendes

Já aqui se falou dessa grande maleita que é o politicamente correcto, que, ao que tudo indica, está a destruir a sociedade ocidental, e cuja solução, verdadeiramente mágica, passa pela introdução de mecanismos de repressão e censura, operados pela sempre abnegada extrema-direita.

Quem também teme essa tal de ditadura do politicamente correcto é Manuel Luís Goucha, que em tempos não gostou de ser alvo do humor do 5 Para a Meia Noite e processou o programa. É por aqui que começa a valente sova retórica que Daniel Oliveira aplicou naqueles que, ao longo dos últimos dias, procuraram contribuir para a normalização do branqueamento de uma personagem sinistra, que participou em crimes horrendos, e que, independentemente de ter cumprido anos de prisão por esses crimes, continua a representar uma ameaça à sociedade e à democracia portuguesa. Ler mais deste artigo

Entre as brumas da memória


José Gil: "O passado está a ser engavetado, digitalizado e virtualizado"

Posted: 05 Jan 2019 12:00 PM PST

A ler: uma entrevista publicada ontem no Diário de Notícias.
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Marcelo e o seu «irmão» Bolsonaro

Posted: 05 Jan 2019 08:47 AM PST

Miguel Sousa Tavares, no Expresso de 05.01.2019.

P.S. - Eu diria mais, porque foi aquilo que Marcelo fez: seria o mesmo que alguém afirmar ter tido, com Mário Machado, uma conversa entre irmãos.

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Nós e a Fundação Mário Soares

Posted: 05 Jan 2019 06:20 AM PST

Não podemos darmo-nos ao luxo de «perder» a FMS.

«O arquivo da Fundação Mário Soares (FMS), que foi pioneiro na adopção de soluções de digitalização e disponibilização de documentos online, tem hoje à sua guarda uma quantidade impressionante de acervos de opositores ao Estado Novo e de dirigentes de Movimentos Nacionalistas Africanos e de Timor-Leste, inventariados e disponíveis ao público. Também se deve a este arquivo o projecto Casa Comum, uma plataforma agregadora de informação que é hoje o maior repositório digital de documentação em língua portuguesa.


Com a morte de Mário Soares em 2017, o futuro do arquivo tornou-se incerto e recentemente o jornal PÚBLICO noticiou que se pondera o seu desmantelamento, sendo provável que muitos dos fundos documentais venham a ser incorporados na Torre do Tombo ou sejam devolvidos aos proprietários, que os colocaram à guarda da FMS a troco do tratamento e da disponibilização pública das suas colecções. Estima-se que mais de 90% dos documentos do arquivo da fundação estejam nesta última situação, incluindo o arquivo pessoal de Mário Soares. Se os dirigentes da FMS optarem pelo desmembramento do arquivo, os responsáveis pela política nacional de arquivos devem contribuir para assegurar a sua integridade. Tal não quer dizer que a DGLAB deva incorporá-lo na Torre do Tombo, pois a vocação deste organismo é guardar documentos produzidos pelos organismos centrais do Estado. Mas há alternativas, como a sua integração na estrutura de arquivos da Câmara Municipal de Lisboa, mantendo-se o funcionamento nas actuais instalações.»

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Lição sobre os perigos de uma justiça justiceira

Posted: 05 Jan 2019 03:37 AM PST

«O fantástico, temível, e alarmante caso dos vistos gold foi ontem decidido na primeira instância como uma pequena história de procedimentos políticos banais, de decisões admissíveis ou de comportamentos aceitáveis nas lógicas do funcionamento da máquina do Estado. Houve condenações, é certo, mas dois dos acusados do que chegou a ser referido como uma teia daninha no ventre do poder político e dos serviços públicos, Jarmela Palos e o ex-ministro Miguel Macedo, puderam regressar a casa, não como vítimas dos crimes que lhes foram imputados, mas como vítimas de uma investigação deficiente do Ministério Público.

Não é caso para censurar os procuradores e muito menos para lhes pedir explicações. É apenas um momento para se reflectir sobre se o exacerbar de um clima justiceiro na sociedade não impele o Ministério Público a ter de apresentar serviço e a ver crimes onde não existem. É, ainda, uma oportunidade para nos questionarmos sobre a causa da atroz diferença entre as gigantescas operações transmitidas em directo pelas televisões, as escassas provas arroladas e os processos concluídos em prazos decentes. Não, não se fala da Operação Marquês ou do caso BES, nos quais se reconhece esforço e talento do DCIAP, mas invoca-se sim um certo espírito punitivo que a cada passo se instala na agenda e tende a gerar casos inflacionados que destroem vidas e carreiras.

Aquilo que na decisão instrutória o juiz Carlos Alexandre definia como provas indiciárias “arrasadoras” a configurar um “outro lamaçal” não passou afinal aos olhos do tribunal como expediente normal. Miguel Macedo fala no fim de uma “canalhice” e só exagera porque o termo pressupõe dolo por parte do sistema judicial. Mas, sim, a sua carreira política ficou comprometida, a sua honorabilidade pessoal foi afectada e compreende-se o excesso. Que o seu exemplo sirva não para se atirar pedras ao sistema judicial mas para lhe exigir que se dispa de qualquer aura salvífica e moralizadora.

O país precisa de uma Justiça forte e sem medo de errar. Mas precisa também de uma Justiça despida de qualquer vocação messiânica que a leva a lançar operações com nomes de filme que começam com o anúncio de crimes hediondos e acusações ferozes, evoluem para pedidos de penas suspensas e acabam em absolvições. O país tem de estar atento ao que se passa, mas terão de ser os próprios procuradores (ou juízes) a reflectir e a decidir sobre o lugar onde está a linha que separa a Justiça democrática do justicialismo providencialista.»

Manuel Carvalho

Querem-nos ignorantes

  por estatuadesal

(Pedro Marques Lopes, in Diário de Notícias, 05/01/2019)

pml

Pedro Marques Lopes

Em outubro do ano passado, cientistas avisaram que o consumo excessivo de carne está a causar uma catástrofe ambiental. É fundamental que o consumo de carne de vaca seja reduzido em 90% e o de carne de porco e de leite e seus derivados baixe drasticamente. A desflorestação para a criação de gado, com as emissões de metano pelas vacas e a utilização de fertilizantes cria tantas emissões de gás com efeito estufa como todos os carros, camiões e aviões juntos.

Estes dados constam de um artigo recentemente publicado no The Guardian. São apenas alguns poucos dados da imensidade de provas científicas do que o excessivo consumo de carne está a fazer ao nosso planeta.

Pode haver quem pense que não há novidade nenhuma em mais um artigo como o referido e que não faltam filmes, documentários e tratados científicos a abordar o tema. De facto, não há nada de novo, mesmo nada. Sobretudo a pouquíssima divulgação nos principais órgãos de comunicação social de tudo o que diz respeito a este tema e o olhar para o lado do poder político.

A nuvem de silêncio sobre as consequências para a humanidade, para o nosso habitat comum do consumo de carne é absolutamente chocante. Só tem paralelo com a pouquíssima divulgação dos crimes ambientais diários e o olhar indulgente, como se opções corriqueiras fossem, para decisões políticas dos mais importantes líderes mundiais que estão a condenar o futuro da própria existência do homem.

Por esta altura já não me restam grandes dúvidas: há, por ação ou omissão, uma vontade política em ignorar os problemas que o excessivo consumo de carne acarreta. Claro que a tarefa de mudar hábitos alimentares, costumes milenares, uma inteira cultura ligada ao consumo de carne é brutal e leva muito tempo, mas é urgente e exige não só ações políticas decididas como enormes campanhas de sensibilização. O facto é que nada disto está a ser feito, pelo contrário. A questão é simples: queremos ter um mundo para os nossos descendentes ou queremos destruí-lo?

Vivemos num mundo em que a propaganda contra o consumo do tabaco é gigantesca, em que drogas incomparavelmente menos prejudicais para a saúde do que as bebidas alcoólicas ou o tabaco são proibidas, ao mesmo tempo que somos inundados de publicidade para que comamos mais carne e derivados de leite. Ou seja, em vez de se promover a informação de que o excessivo consumo destas substâncias está a destruir o nosso mundo, incentiva-se o seu consumo como se fosse algo de bom.

Há aqui também algo de profundamente pernicioso, uma espécie de ideologia destrutiva da ideia de casa comum. Um cuidado extremo com o indivíduo coexiste com um desprezo olímpico pela comunidade. O indivíduo deve ser são, o meio onde ele vive pode ser destruído. A força das grandes empresas, não só na capacidade de influenciar os governos mas também toda a comunicação, meios tradicionais e redes sociais, é uma parte fundamental do problema.

Que governo se atreve a olhar para a indústria de criação de gado ou leiteira e restringir seriamente a sua atividade? Lá está, impostos, empregos, bem estar presente. Que meios de comunicação social podem pôr em causa grandes empresas de distribuição ou redes de restaurantes sem correr o risco de porem em causa a sua própria sobrevivência financeira? E, claro, essas grandes corporações têm uma capacidade para manipular as redes sociais e até usá-las como forma de vender as suas verdades. Que partidos nos países mais industrializados podem deixar de ser apoiados por lóbis tão fortes como os das indústrias das carnes, dos laticínios, dos fertilizantes ou dos grandes laboratórios?

Vivemos uma espécie de beco sem saída. O poder político demitiu-se de olhar para o futuro da comunidade e foi substituído por um poder económico que apenas pensa no lucro imediato. Nunca tão poucas empresas e lóbis associados tiveram um poder tão avassalador.

A mais importante questão política dos nossos tempos é o problema ambiental e todos os aspetos com ele relacionados. Se não o atacamos não falaremos mais sequer de política porque não teremos comunidade, nem mundo, nem pessoas. E o facto é que é tratado como um problema de terceira categoria pelos governos e, sobretudo, por nós cidadãos.

Por mim, a minha decisão para o novo ano é tentar não comer carne. Custa, mas eu gostava que os meus filhos, netos e bisnetos tivessem um planeta para viver. E gostava que eles vivessem com os seus, caro leitor. Bom ano.



O MEL

No próximo fim de semana, um conjunto de pessoas reúne-se em Lisboa com um objetivo mal disfarçado: lançar as bases para formar um partido. É o projeto que vem sendo anunciado por alguns como a refundação da direita. Por enquanto chama-se Movimento Europa e Liberdade, MEL. Reúne gente do CDS que já percebeu que o partido nunca passará da cepa torta (onde se inclui Assunção Cristas), pessoas do PSD que já não são do PSD mas que se aproveitam do partido para poderem promover a sua própria agenda e vários órfãos do passismo de vários setores. Nada contra a iniciativa destas pessoas. Pelo contrário. Novas iniciativas político-partidárias, mesmo que disfarçadas, são um sinal de vitalidade da democracia.



Vale tudo?

Na quinta-feira, Mário Machado, condenado por vários crimes, líder de um movimento de extrema-direita e divulgador de mensagens de ódio, racistas e xenófobas, foi entrevistado no programa da manhã da TVI de que Manuel Luís Goucha é autor e apresentador. Houve também uma espécie de inquérito de rua onde se perguntava às pessoas se precisaríamos de um novo Salazar. Entretanto, a página de Facebook Manuel Luís - TVI lançava uma sondagem com a pergunta: "Acha que precisamos de um novo Salazar?" Das duas uma: ou o Manuel Luís Goucha e a TVI estão tão desesperados com as audiências que resolveram dar espaço a promotores de ódio, a publicitar ideias fascistas e a desculpabilizar um ditador, ou uma pessoa com a importância mediática do apresentador e a direção da TVI não têm a noção da responsabilidade que é gerir um canal de televisão e do poder de que desfrutam. Francamente, a segunda assusta-me mais.

Como branquear um nazi na TV(I)

  por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 05/01/2019)

cancio

Quinta-feira foi um grande dia para Mário Machado. Esteve em dois programas da TVI, um de entretenimento - o de Manuel Luís Goucha - e outro de alegada informação (SOS24), e correu-lhe muito bem. Na página de Facebook do seu movimento, escrevia-se:"Objectivo n.º 1 - Atingido! "Chegar às pessoas!'".

Porque, como deveria ser óbvio, o simples facto de convidar um nazi condenado a uma infinidade de anos de prisão - em 2012, as penas consecutivas somavam mais de 19, que resultaram num cúmulo jurídico de dez -, na sua maioria por crimes violentos, para o sofá de um programa de entretenimento, entre uma rubrica que ensina a fazer pastéis e outra em que se impinge vendas aos idosos, é uma forma de o embalar como pessoa "normal", aceitável, até "simpática". Machado sabe isso, claro. Dá para acreditar que Goucha e a TVI não saibam?

Aliás, como ninguém convida um nazi criminoso para um programa destes para dizer: "Caros telespectadores, aqui temos este grandessíssimo nazi criminoso para ficarem cheios de nojo dele e de nós por o termos trazido", Machado foi apresentado, no programa como no Facebook de Goucha - que depois apagou o post, supõe-se que pela enxurrada de críticas (a liberdade de expressão é muito boa, mas) -, como um mero "autor de declarações polémicas." Transformando um criminoso que professa uma ideologia violenta numa pessoa "controversa", que pode e deve, como aliás defende Goucha, ser "contraditada com argumentos": "Ele tem os dele e nós temos os nossos."

Por irresponsabilidade, soberba e ingenuidade, Goucha caiu na armadilha de achar que poderia fazer um brilharete "desmontando" Machado sem sequer saber quem tinha na frente.

Essa é a armadilha em que o apresentador, por irresponsabilidade, soberba e ingenuidade, caiu: a de achar que poderia fazer um brilharete "desmontando" Machado sem sequer saber quem tem na frente, e portanto induzindo os seus espectadores no mesmo erro. É certo que o convidado foi questionado sobre os seus crimes. Mas quem o fez, apresentando-se como "repórter", limitou-se a ouvi-lo afirmar que tinha sido preso preventivamente - e injustamente - em 1995 por suspeitas de envolvimento na morte do português negro Alcindo Monteiro, assassinado à pancada por um grupo de skinheads no 10 de Junho desse ano, e que fora solto em 1997 por ser "absolvido". Deixou-o queixar-se: "É um fardo que carrego, pesadíssimo para mim e a minha família."

Pobre Mário Machado. De facto não foi condenado por essa morte; foi condenado em 1997, pelo Supremo - no mesmo processo em que outros membros do grupo foram condenados pelo homicídio qualificado de Alcindo -, a dois anos e seis meses de prisão, em cúmulo jurídico, por fazer parte desse gangue que foi ao centro de Lisboa com o objetivo de agredir negros e pela autoria material de cinco dessas agressões, duas delas resultando em traumatismos cranianos. Estaria a espancar outros negros quando os amigos mataram Alcindo.

"Denota completa ausência de arrependimento", escreveu o tribunal em 1997. 23 anos depois, Machado apresenta-se como vítima da justiça e repete as mentiras de 1995: que se tratou de "um confronto entre nacionalistas e africanos", quando se provou que foram, armados de soqueiras, tacos e botas de ponta de aço, à caça de negros para agredir.

"Denota completa ausência de arrependimento", lê-se no acórdão. Ausência de arrependimento evidente 23 anos depois ao apresentar-se como vítima do "falhanço da nossa justiça" e repetir a mentira que o grupo apresentou desde o primeiro momento: que se tratou de "um confronto entre nacionalistas e africanos no Bairro Alto", quando, deu-se como provado, Machado e amigos iam armados com soqueiras, tacos e botas de ponta de aço à caça de negros para agredir, querendo "com essa atuação, integrada nos objetivos do grupo de skins, contribuir para a expulsão de Portugal daquele grupo racial."

Nada disso Goucha ou o seu "repórter" souberam ou quiseram evidenciar. Como os escritos racistas e nazis muito mais recentes de Machado, as fotos a fazer a saudação nazi, as tatuagens nazis, a informação sobre as suas condenações, a última das quais, a sete anos e dois meses por roubo, sequestro, coação e posse ilegal de arma, é de 2010 - esteve preso até 2017, quando saiu em condicional. É de resto tal a profusão e a gravidade das condenações que talvez nem o próprio se lembre de todas, quanto mais Goucha. Daí que tenha podido dar-se ao desplante de se dizer "a primeira pessoa em Portugal a ser presa dois anos e nove meses por um texto escrito na internet", coisa que, comentou, "no tempo de Salazar não aconteceu a ninguém" - referindo-se à condenação, em 2016, por uma carta escrita em 2014 a partir da prisão, na qual afiançava a uma mulher, que acusava de o ter "tramado", que se não lhe pagasse 30 mil euros iria ser morta "à frente dos teus filhos", e "encomendava" agressões a outras pessoas.

Após tal performance no programa de Goucha, Machado seguiu para o inominável SOS24 , onde debitou a sua cartilha racista e odienta, falando de "africanos", "portugueses brancos" e "da nossa cultura" (para quem precise de um desenho: portugueses são brancos, os não brancos não são portugueses) e afirmando que "hoje em dia o racismo vem sobretudo dos negros contra os próprios brancos, (...) desses grupos de marginais que espalham o terror nas nossas cidades, que perseguem os nossos miúdos nas escolas, que violam as raparigas sempre que têm uma oportunidade, porque o fazem movidos por ódio racial". Também aí, ninguém lhe pediu que apresentasse provas do que disse, ninguém o contraditou com o mínimo de eficácia.

A TVI quis dar "respeitabilidade" e "seriedade" a um criminoso cúmplice de assassinos permitindo-lhe intoxicar milhões com as suas mentiras. E tanto que o conseguiu que está tudo, para variar, a falar de "liberdade de expressão". Parabéns a todos.

Não sei se Machado e a TVI violaram alguma lei; não sei se faz sentido "resolver" isto com queixas à ERC, alimentando a sua estratégia de vitimização. Não se trata, para mim, de o impedir de ser o nazi e o racista repelente que é e de defender essas "ideias" - direito que lhe reconheço, desde que sem apelar à violência (se bem que ser nazi sem apelar à violência seja difícil); sequer de querer impedir alguém de o entrevistar. Trata-se de tornar claro o que a TVI fez: branqueou uma carreira de duas décadas de crime (no programa de Goucha) para a seguir dar tempo de antena, no SOS24, ao discurso de ódio que enforma essas duas décadas de crimes. Quis dar "respeitabilidade" e "seriedade" a um criminoso cúmplice de assassinos permitindo-lhe intoxicar milhões com as suas mentiras. E tanto que o conseguiu que está tudo, para variar, a falar de "liberdade de expressão". Parabéns a todos.