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quinta-feira, 30 de abril de 2020

Não, senhor ministro, nem toda a dívida é imposto futuro

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 28/04/2020)

A afirmação do ministro da Economia é taxativa e foi repetida, tanto por ele próprio como pelo primeiro-ministro, anunciando-se como uma espécie de doutrina do Governo: “despesas do Estado hoje são impostos amanhã." Ao mesmo tempo, o Governo tem reafirmado que a austeridade foi uma má solução e que é impensável repetir o erro. As duas declarações são simplesmente contraditórias.

Como o Estado está a aumentar a despesa para responder à pandemia, nos termos da primeira frase o ministro anunciaria um aumento dos impostos para amanhã, e isso seria austeridade, a tal alternativa indesejável nos termos da segunda frase. Ou seja, esta doutrina sugere que ou temos despesa a mais agora e então era melhor cortá-la, ou que, sendo necessária, teremos de a pagar com mais impostos que nos penalizarão no futuro, o que tornaria incongruente a afirmação de que a austeridade vai ser evitada.

Portanto, ou se trata de uma contradição, dado que a não-austeridade e a austeridade não podem ocorrer ao mesmo tempo no mesmo país, ou se trataria de um subterfúgio, revelando e logo ocultando o que o Governo daria por certo, os “impostos amanhã”. Partindo do princípio de que não se trata uma sequência de matreirices e que o Governo, sabendo o custo social e eleitoral da austeridade, queira evitar o caminho da punição da economia e da vida social, vale a pena discutir o paradoxo do ministro Siza Vieira.

Seria desconsiderar o ministro, que é um homem cuidadoso na formulação das suas opiniões, se se resumisse esta frase a uma trivialidade, do tipo “cá se fazem e cá se pagam”. Suspeito que alguns dos seus colaboradores assim o entendam, mas a credibilidade da comparação entre as contas de um país e as de uma família já teve melhores dias e perdeu mercado depois da sua utilização austeritária. A questão, em resumo, deve ser colocada exatamente ao contrário do que sugere o aforismo do ministro: se não houver agora despesa pública é que de certeza teremos mais impostos.

João Ferreira do Amaral explicou pedagogicamente esta razão. Perante o imediato impacto do Covid19, só o aumento da despesa do Estado (em gastos no serviço de saúde, em apoios a salários ou evitando que empresas vão à falência, em proteção social aos recibos verdes e outros precários) é que permite evitar o agravamento da recessão. E, como só a recuperação da economia poderia garantir o aumento da receita fiscal sem aumentar as taxas dos impostos, a chave para a salvação é manter o emprego, preservar a procura agregada, restabelecer as cadeias produtivas, ou seja, investir mais para evitar a queda. Só nos salvamos da austeridade se a economia for relançada. Como não haverá investimento privado de monta, é o investimento público dirigido e seleccionado que nos protege do abuso dos impostos.

Em todo o mundo, o endividamento público gerado pela resposta à doença vai disparar. Os cálculos do FMI são que o défice dos países desenvolvidos será em média de 11% este ano, o triplo do que aconteceu com a crise do subprime em 2008, e, assim, a dívida total dos países desenvolvidos aumentará no conjunto em seis biliões de dólares, mais 10%, alcançando 122% do PIB dessas economias. O pior que poderia acontecer seria mesmo que todos os ministros da Economia pensassem e agissem como se todas estas despesas tivessem que ser traduzidas em aumento de impostos. Nesse caso, teríamos uma espiral depressiva à nossa porta, com medidas aplicadas nos vários países para garantir mais redução do PIB para solucionar uma redução do PIB, com cada economia a impor às vizinhas uma redução das suas exportações e mais sacrifícios. O que seria um erro num país transformar-se-ia num vírus generalizado no mundo. Já lhe conhecemos o nome, chama-se austeridade.

O que se aplica a Portugal aplica-se a todos. Os governos precisam de ajudar a cuidar das vidas. Isso tem um preço (mas o custo de não o fazer era maior), é défice e dívida. Mas, se a taxa de crescimento futuro (mais a inflação, mesmo que pequena) for maior do que a taxa de juro, o peso da dívida vai sendo absorvido e tende a diminuir, sobretudo se for dívida a longo prazo, como deveria ser. Combinadas com medidas de monetarização da dívida, que os EUA e o Reino Unido adoptarão, porventura mais do que a zona euro, as políticas de crescimento serão decisivas.

Se Siza Vieira me permite uma sugestão, diga aos seus colegas europeus que tirem da ideia essa bizarria de fazer pagar em impostos o esforço para salvar vidas e empregos e se esforcem em criar mecanismos de cooperação para absorver o choque e para relançar as economias. Por isso, preferia, senhor ministro, ouvi-lo dizer que despesas do Estado de hoje são vidas e que têm que ser orientadas para relançar o crescimento, para evitar a guilhotina dos impostos.

Vamos conviver com a desigualdade exposta pela covid-19?

Posted: 29 Apr 2020 03:24 AM PDT

«Não estou no grupo dos crentes da transformação da natureza humana com esta pandemia que nos assola. E, no entanto, a verdade é que alguma coisa terá de mudar, nem que seja para ficar mais ou menos na mesma. Porque a covid-19 expos uma desigualdade com que sociedades decentes não devem conviver resignadas. O coronavírus não é um vírus democrata nem igualitário. Explora debilidades físicas crónicas dos infetados, e também explora doenças financeiras pré-existentes.

A covid-19 fez-nos o favor de expor que mata e contagia preferencialmente pessoas pobres. É um novo episódio da velha realidade circular conhecida: a desigualdade impacta para pior a saúde dos que estão na base da pirâmide, e um pior estado de saúde gera menor produtividade e maior desigualdade. É um novo degrau que, para mim, acentua a urgência de se corrigir o cisma social e económico para que os políticos olham risonhos e tranquilos. Se não, talvez não se esperem hordas de bárbaros, mas de certeza movimentos anticapitalistas cada vez mais vocais e ferozes.

O meu coração não pende para ir protestar para as ruas pela abolição do capitalismo, como setores crescentes pedem. Mas tenho noção de que o capitalismo está num ponto desregrado que beneficia muito uns poucos, deixando na mesma uma imensidão de gente. Há um espírito ‘winner takes all’ nos mercados atuais que põe em perigo os próprios mercados. Não tendo um curso superior – um dos grandes diferenciadores culturais e económicos atualmente –, é fácil ficar armadilhado em trabalhos que se tornaram muito mal pagos. E as diferenças de rendimento não se traduzem só em férias glamourosas ou passadas no sofá de casa sem dinheiro para sair, mas também em anos de vida com saúde, e na singela probabilidade de continuar vivo ou não.

A organização dos mercados não é um determinismo divino, resulta de legislação e regulação. A liberalização foi benéfica quando era o estatismo que se tornava um peso-morto. Houve criatividade e inovação, tiraram-se centenas de milhão de pessoas da pobreza com a globalização.

Porém, estamos no lado oposto do pêndulo. E temos de ter noção de que as pessoas não continuarão a viver em condições de mera subsistência para dar avultados ganhos a outros. Ressentimentos destes são matéria de revoluções. Ou contamos que estejam demasiado doentes para se revoltarem?

Vejamos o estado da arte exposto pela covid-19. Nos países onde os dados são fornecidos desagregados, como os Estados Unidos, vê-se que o coronavírus proporcionalmente contagia mais e mata mais nas minorias negra e latina e nos códigos postais onde vive maior percentagem de pobres. Em Nova Iorque, a taxa de mortos negros e latinos é o dobro da de brancos e asiáticos. Em Los Angeles, os infetados por covid-19 residentes em zonas pobres têm uma probabilidade de morrer que é três vezes a das zonas sem pobreza.

Pobres, para começar, têm menor acesso a cuidados de saúde, hábitos alimentares e de vida menos saudáveis. Maior probabilidade de sofrer doenças crónicas e mais cedo. Nos Estados Unidos, sabemos bem, os cuidados de saúde são próprios de uma distopia. Em Portugal e na Europa temos sistemas de saúde mais compassivos, mas ainda assim se notam diferenças conforme o rendimento. Dos dois lados do Atlântico um estudo concluiu, no ano passado, que os ricos tinham expetativa de mais nove anos de vida saudável que os pobres, com dados de EUA e Reino Unido. Naquelas idades de fim de vida quando a covid tem mais impacto, portanto.

Os mais pobres têm mais trabalhos que obriguem à presença no local e ao contacto com grande número de pessoas: fábricas, supermercados, limpezas, transporte e distribuição. O teletrabalho não é um luxo que lhes assiste. Dependem dos transportes públicos, onde há ajuntamentos de pessoas. Vivem em casas mais pequenas – o que não é despiciendo: por cá, 30% dos contágios aconteceram em coabitação. Faz diferença ter casas com várias casas de banho, ou só uma, quartos individuais, espaço para alguém doente estar confinado sem contactar demasiado com os familiares.

Não tenho dados para Portugal – que preferimos nunca saber demasiado para não chocarmos as nossas almas sensíveis. Mas não há razão para escaparmos a esta desigualdade. Desde logo porque reforça algo que já se verificava. O relatório Health At a Glance de 2019 da OCDE mostra que, por cá, mulheres e homens com educação superior vivem mais 2,8 e 5,6 anos, respetivamente, que quem não terminou a educação secundária.

Os lares também nos dão um vislumbre destes números nas vidas reais. 40% dos mortos portugueses por covid são idosos que estão em lares. É a idade, sim. E muitos estão em lares e residências sénior por questões de assistência médica e de cuidados quotidianos, bem tratados. No entanto, permanece a diferença para quem mantém autonomia, está na sua casa ou na de filhos e netos, porventura com ajuda geriátrica paga, resguardado do contágio provável num lar.

Estas linhas são sobretudo de alerta, mas deixo duas sugestões de atuação. A primeira, essencial para os próximos tempos: não encolher prestações sociais para os mais pobres. O stress de viver na pobreza é equivalente a perder 13 pontos no QI, originando más decisões de vida, incluindo quanto a maus hábitos de saúde – e entra-se no círculo viciado. Ter um rendimento assegurado é um alívio que permite respirar – e pensar – melhor. Estar descansado que se consegue alimentar os filhos resulta em menores necessidades de fumar ou de ingerir bebidas alcoólicas. Poder comprar melhores alimentos é mais saudável que ingerir quilos de gomas. As prestações sociais são, entre outras coisas, prevenção de gastos futuros nos sistemas de saúde.

Outra. Atentem à concentração dos ganhos dos novos negócios em muito poucas pessoas. Desde as plataformas digitais que enriquecem multimilionários à conta de conteúdos e trabalhos produzidos por terceiros a quem recompensam nada ou pouco. À Amazon que, em tempos de covid-19, quando o mundo passou a comprar só online e faturou milhões, aumentou nos armazéns o ordenado dos seus mal pagos trabalhadores (mas essenciais para o estado do mundo em 2020) dois dólares por hora – é a loucura. E um quilométrico etc. de exemplos. Está na hora de os países europeus e a União Europeia legislarem uma maior repartição dos ganhos que são produzidos por todos mas agora beneficiam sobretudo só alguns.»

Maria João Marques

Uma vida à sua frente

Curto

Jorge Araújo

Jorge Araújo

Editor da E

30 ABRIL 2020

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Uma pessoa pensa que sabe tudo, que tem resposta para tudo, mas não sabe nada. Aparece a vida e baralha tudo, a resposta agora é pergunta, a pergunta é resposta.

É por isso que ninguém consegue explicar como é que aqui chegámos, menos ainda para onde vamos.

De nada vale dizer que “queremos a nossa vida de volta”. Todos nós já nos daríamos por satisfeito se soubéssemos que vida temos pela frente.

Muito do que vai ser a nossa vida nos próximos tempos vai ser decidido hoje, na reunião do Conselho de Ministros. Ou talvez não. Se o desconfinamento não correr bem, regressa tudo à casa partida. A nossa vida não se resolve apenas por decreto.

O primeiro-ministro vai divulgar o plano do governo para a retoma da vida económica e social. Vai dizer como pretende reabrir o país.

Neste mar de incertezas há duas certezas . A primeira é que o estado de emergência não vai ser renovado. A segunda é que chegou a hora do Estado de Calamidade.

O desconfinamento pode ser uma coisa ou outra completamente diferente. O plano do governo tem três fases, mas de quinze em quinze dias será feito um “check up”para medir os efeitos económicos e na saúde pública.

Num breve resumo, fique a saber que na 1ª fase, com início a 4 de Maio, será autorizada a abertura do comércio local, assim como os barbeiros e cabeleireiros. Mas só com marcação e de acordo com as regras definidas de lotação do espaço.

A partir da próxima segunda feira também abrem portas o comércio automóvel e os serviços de atendimento ao público não concentrado, o que exclui as Lojas do Cidadão, por exemplo.

Mas atenção: todos estes serviços terão de manter estritas regras de distanciamento, bem como assegurar a obrigatoriedade do uso de máscaras. E têm de dar garantias de desinfeção.

As boas notícias que os pais e encarregados de educação queriam muito ouvir ficam adiadas para mais tarde – as creches abrem a 18 de maio e o pré-escolar a 1 de junho.

Mas se quer saber como vai ser o calendário do regresso à normalidade possível, leia este artigo do Expresso. E este do Público.

Ainda Covid-19

Desporto. Terminou a temporada 2019/2020 para as quatro maiores modalidades colectivas de desporto de pavilhão: hóquei, andebol, basquetebol e voleiból. Os campeonatos morreram na praia. No futebol ainda há esperança. Pode ser que, lá para 30 de Maio, a Iª Liga volte.

Máscaras. O fim do estado de emergência devolverá mais gente às ruas. Mais do que nunca, é aconselhado o uso de máscaras. Aconselhado e, em alguns casos, obrigatório. Se tem dúvidas, leia este artigo.

Crime. Nem toda gente respeitou as regras do confinamento. As tentativas de homicídios dispararam. A boa notícia, escreve o Público, é que a maioria das vítimas “ conseguiu escapar à morte por falta de planeamento ou premeditação dos seus agressores”.

TAP. Com os aviões em terra a companhia aérea nacional vive dias complicados. O Estado pode ser chamado a intervir mas nada será como de antes. “ A música agora é outra no que diz respeito à TAP”, advertiu o ministro das infraestruturas, Pedro Nuno Santos.

Óscares. A Academia de cinema de Hollywood tem um novo regulamento. A partir de agora são aceites filmes transmitidos exclusivamente online, uma vez que as salas de cinema se encontram encerradas devido à pandemida de covid-17. Mas a Academia de Artes e Ciências Cinematográficas deixou bem claro que esta excepção só se aplica aos óscares deste ano. Quando as salas voltarem a abrir as portas logo se verá

Esperança. Nem tudo são más notícias e, volta e meia, chegam histórias de esperança. Como a da mulher de 100 anos que veio ao mundo durante a gripe espanhola e sobreviveu ao covid-19. Ou como as crianças que nascem no meio deste tumulto. Ontem, nasceu o filho de Boris Johnson. É um rapaz. Uma criança que nasce é sempre uma lufada de esperança. Mas é preciso que tenha uma vida à sua frente.

quarta-feira, 29 de abril de 2020

Há muito em jogo

Posted: 28 Apr 2020 03:50 AM PDT

«"Despesas do Estado hoje são impostos de amanhã", sentenciou o primeiro-ministro há uns dias. A frase, como bem explicou o economista João Ferreira do Amaral, é "infeliz".

Além de dar um sinal negativo quanto à intenção de o Governo ir mais além nos apoios à economia, a lógica austeritária que subjaz à afirmação está errada. O que leva à perda de receita fiscal amanhã é a recessão económica e o desemprego. Tudo o que for feito para evitar a crise, salvar o emprego, rendimento e produção, protegerá também as contas públicas futuras.

Quem quiser, nesta crise, subjugar todas as decisões ao défice, engana-se. A pandemia da Covid está a pôr em causa modelos de crescimento, como o português, muito assentes no imobiliário e no turismo. Está a acelerar a decadência de setores em crise, como o automóvel, e a mover as placas tectónicas da indústria e da finança mundiais.

Enquanto a Europa brincava à austeridadezinha, a China investia em inovação tecnológica para entrar na disputa pela hegemonia da economia mundial. A entrada do capital chinês foi de tal ordem que motivou um acordo franco-alemão (países menos dispostos do que Portugal a vender os seus anéis) para proteger os seus setores estratégicos. Nada de novo para a Alemanha que, já na crise de 2007, protegeu as suas empresas de compras por fundos estrangeiros. A mesma Alemanha que a Comissão Europeia não convenceu (se é que tentou) a privatizar as suas participações no terceiro maior banco do país, na segunda maior produtora de químicos ou mesmo na Volkswagen.

Mas depois veio a pandemia. E embora a paralisação tenha atingido de forma semelhante todas as economias, são as estratégias de recuperação de cada país, e a sua capacidade de investimento, que determinarão o futuro da economia mundial.

Enquanto as instituições europeias perdem tempo precioso em desacordos e fingimentos (afinal o plano de recuperação de 2 biliões não passa de 0,34 biliões), a Alemanha prossegue no apoio e reestruturação da sua economia, aproveitando a suspensão das ridículas regras europeias que impedem o apoio do Estado à economia.

O ministro das Finanças alemão começou por dizer que não haveria limite para a capacidade de financiamento do banco público à economia. Para proteger as grandes empresas, o Governo jogou todas as cartadas: apoios de liquidez, nacionalizações parciais ou proibição de compra por acionistas estrangeiros. Só a Adidas receberá 3 mil milhões, praticamente metade da linha anunciada para Portugal.

Recuperar e reestruturar a economia vai requerer visão e investimento. Quem souber e puder fazê-lo, estará em melhores condições para enfrentar o futuro. Para os países agarrados a ideias antigas de austeridade, só há uma certeza: menos despesa hoje é uma economia mais pobre amanhã. E economias pobres não pagam impostos.»

Mariana Mortágua

A câmara de gás da Trofa

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/04/2020)

Daniel Oliveira

Se houver quem ponha aquele espaço a funcionar como uma câmara de gás, eu pago o gás". Foi com esta "piadola" que o coordenador da equipa de assistentes operacionais da Câmara Municipal da Trofa terminou um post, publicado no seu Facebook, em que criticava as comemorações do 25 de Abril na Assembleia da República.

Entre os 17 “gostos” estava, nem mais nem menos, o presidente da Câmara, Sérgio Humberto. Assim como o seu adjunto. É bom recordar, para tornar isto ainda mais absurdo, que além do PSD da Trofa ter dois deputados, o próprio Sérgio Humberto já lá esteve.

Vivemos tempos estranhos, onde as palavras e as indignações deixaram de ter qualquer valor. A liberdade de expressão é desvalorizada. Porque não significa nada. Tudo é uma vergonha e tudo é banal. Tudo é um escândalo e tudo é irrelevante. Uma cerimónia no Parlamento é motivo de ira, propor que ele se transforme numa câmara de gás é uma piada inofensiva. É desta indiferenciação moral das palavras que vivem os populistas. Porque eles conseguem um exercício duplamente vantajoso: podem dizer tudo, sem que isso deva ser levado a sério, o que lhes permite banalizar a ignomínia; mas tudo o que os outros façam ou digam pode ser adjetivado sem medida, de forma desproporcionada. Se eu não tiver qualquer problema em banalizar as palavras ganho sempre: tudo o que diga não faz mal nenhum, tudo o que o meu adversário faça é um escândalo sem fim. O outro só me pode combater se usar as mesmas armas, destruindo com isso qualquer ideia de debate público.

Por isso, é fundamental usar a proporção certa. E é o uso da proporção certa que me leva a dizer que a polémica em torno da comemoração do 25 de Abril não autoriza estas palavras e que elas são várias vezes gravíssimas. Porque correspondem à banalização de um dos crimes mais horrendos da história da humanidade, ao desejo da morte de políticos porque se discorda das suas opções e a um apelo contra a democracia. Por esta ordem de gravidade.

Ter um funcionário do Estado a escrever uma coisa tão grotesca e o Presidente da Câmara, seu superior hierárquico, a aplaudi-lo não pode ser um pormenor. Estamos perante um texto público e político. O apoio dado é público e político. As explicações, que me parecem impossíveis de dar a não ser confessando um comportamento leviano no espaço público, também têm de ser públicas e políticas. Que devem passar por um pedido de desculpas aos deputados, em primeiro lugar; à memória dos que morreram no Holocausto e à comunidade judaica em particular, em segundo; e aos trofenses, pela imagem grotesca que o autarca e os seu funcionário passaram da instituição que dirigem e onde trabalham.

Se o autarca aplaudiu sem ler até ao fim (o que é possível), terá de passar a ser mais cuidadoso nos seus gestos públicos. Não deixa de ser político quando está nas redes sociais. E deve esclarecê-lo publicamente, com a devida retratação, não optando pelo silêncio a ver se passa, como uma criança.

As palavras não são dejetos que se atiram para a rua, são instrumentos de relação com os outros, tão importantes como os atos. E as redes sociais são espaço público – se as deixamos abertas – ou semipúblico, se as fechamos. Não fazem parte da nossa privacidade e seguramente não fazem parte da privacidade de um político. Nem de um jornalista ou de quem tem funções públicas que dependem da imagem e do nome. O “gosto” do presidente a uma das afirmações mais grotescas que já li nas redes sócias – e todos sabem como isso é um concurso difícil de vencer – não pode ser mais um daqueles episódios irrelevantes em que o abjeto se normaliza até deixar de ser tratado como abjeto.