Translate

sexta-feira, 1 de maio de 2020

O regresso é que nos testa

Posted: 30 Apr 2020 03:50 AM PDT

«O regresso lento à normalidade possível está a deixar muita gente nervosa e é compreensível. Uma coisa é obrigar as pessoas a ficarem em casa, outra, bastante diferente, é regular o seu comportamento com mais liberdade. No primeiro caso, a determinação e a repressão, quando necessária, chegam. No segundo, é a regulação e a autorregulação que contam. E isso implica que as pessoas cumpram regras para não pôr os outros em perigo e que outras controlem o seu medo, não transformando o seu direito à saúde numa carta branca para limitações abusivas às liberdades alheias. Um equilíbrio difícil.

A fase do confinamento foi um teste à nossa força de vontade e também ao nosso instinto de sobrevivência – é bom não esquecer que a disciplina da reclusão foi muito determinada pelas imagens de Itália e Espanha. A fase que se segue é um teste às capacidades de regulação de uma sociedade livre. Isto poderia ser uma metáfora: o primeiro momento testa as capacidades de uma ditadura eficaz, o segundo as de uma democracia avançada. O primeiro exige medo e força, o segundo civismo e democracia. Por isso, todos os elogios rasgados que temos dedicado a nós próprios devem ser guardados para a fase seguinte.

Mais do que nos critérios epidemiológicos e até económicos, são os critérios sociais que me parecem estar a falhar nos planos de reabertura. Passando ao lado da ideia de ter medidas diferentes para regiões mais ou menos afetadas ou de fazer os trabalhadores mais jovens, que correm menos risco, regressarem primeiro ao trabalho – propostas de grande melindre político –, concordo com a ideia de se definirem grupos de risco social, proposta por um grupo de especialistas da Universidade Nova.

A prioridade social falhou no calendário para a reabertura das escolas. Apesar de ter apresentado alguns argumentos válidos, o secretário de Estado da Educação, João Costa, não me convenceu das vantagens de começar pelos alunos do 11º e 12º ano. Continuo a achar que se deveria ter começado, como a maioria dos países europeus, pelos escalões mais novos. E talvez, como estes especialistas também defendem, por uma reabertura parcial para alunos em risco de insucesso. Parece-me que o Governo deu prioridade ao acesso à Universidade, prejudicando os pais que têm de regressar ao trabalho e quem está mais desamparado neste momento: as crianças mais pobres nas fase iniciais de aprendizagem, para quem estes meses valem muito.

De tudo o que terá de ser regulado, uma das fases mais longínquas é a que provoca maior stress: o acesso às praias, apesar de serem ao ar livre. Isto porque parece haver, e bem, um consenso político para não ceder a várias propostas de cortes de férias, semelhantes a países que não têm no turismo um elemento central da sua economia. Seria bom não começarmos já a fazer o que se fez em 2011, tomando medidas que terão como único efeito afundar mais depressa a nossa economia. Sem turistas estrangeiros, imaginem o que aconteceria às empresas responsáveis por 14% do nosso PIB se não fôssemos de férias. Só espero que os critérios para os limites de entrada nas praias não resultem na sua privatização de facto, já parcialmente conseguida tendo como expediente os parques de estacionamento. Também aqui se esperam critérios sociais.

Para que isto funcione e as pessoas cumpram a sua parte, é fundamental que o Estado lhes dê condições para isso. E as primeiras prioridades parecem-me ser os lares e os transportes públicos. Sabendo que os lares têm correspondido, em todo o lado, aos principais e mais perigosos focos de contágio, e tendo em conta o dinheiro que está a ser gasto, não há medidas demasiado caras para resolver este problema, quando os hotéis vão continuar às moscas. Quanto aos transportes, é preciso que garantam segurança. A começar pelos que servem as periferias. Estes são tempos em que testamos muitas coisas na nossa sociedade. Péssimos para tudo, excelentes para nos conhecermos.»

Daniel Oliveira

Viva o trabalho! Este é o meu Expresso

Curto

Marco Grieco

Marco Grieco

Diretor de Arte

01 MAIO 2020

Partilhar

Facebook
Twitter
Email
Facebook

Bom dia, caro leitor/utilizador/espetador/amigo.

Hoje não é sábado, mas é dia de Expresso.

Hoje não é dia de trabalho, mas é o Dia do Trabalho.

Para uns, o “trabalho dignifica o homem”. Para outros, o “trabalho liberta”. Se é daqueles que acredita em Confúcio, “escolhe um trabalho de que gostes e não terás que trabalhar nem um dia da tua vida”.

Se não for possível, é preferível acreditar na sabedoria de Sigmund Freud: “Não posso imaginar que uma vida sem trabalho seja capaz de trazer qualquer espécie de conforto”.

Ou nas palavras do matemático Bertrand Russell, para quem “o aborrecimento que um homem sente ao executar um trabalho monótono não se compara ao que sente quando não tem nada que fazer”.

E se é de trabalho que falamos, espera-se que a próxima segunda-feira, 4 de maio, seja o recomeço da vida para muitos. Ao menos um regresso possível à tal “nova normalidade”.

Combatamos o tédio destes nossos tempos com mais trabalho, portanto.

O importante, ao fim e ao cabo, é que haja trabalho.

Um bom Dia do Trabalhador a todos.

PC_2479.jpg

BOM DIA, ESTE É O SEU EXPRESSO CURTO.                              

PUBLICIDADE

Publicidade

Desconfinamento é uma carga de trabalhos

António Costa lançou plano de reabertura da economia, com mão no travão. O “novo normal” implicará sempre restrições, até haver vacina
Tudo sobre as medidas de desconfinamento
Governo recorre a plano de emergência para travar fome. Programa do tempo da ‘troika’ já ajuda 90 mil famílias, mais 30 mil do que em março
Teletrabalho é para durar pelo menos mais um mês
Máscaras vão ser obrigatórias em lojas, transportes e escolas
Futebol pode regressar em menos estádios e à porta fechada
Apps para controlar vírus vão estar prontas em maio
Casamentos caíram 92% em abril
Autocarros não permitem distância de segurança
Ainda não há data para visitas a lares. 150 mil idosos estão fechados e sentem-se esquecidos, alertam instituições
Personalidades contam os seus desejos para quando regressarmos a alguma normalidade

E ainda…

. Na Venezuela, Nicolas Maduro reverte reformas ‘à chinesa’

. Triplica procura por produtos de agricultura local

. Sucessão de Kim na Coreia do Norte é assunto de família

ECO_2479.jpg

Dívida (quase) garantida

A nova ‘bazuca’ do Banco Central Europeu veio trazer um reforço de liquidez aos Estados da zona euro cujas necessidades de financiamento irão disparar por causa da covid-19. Só que o novo pacote de compra de dívida de €750 mil milhões e o aumento da dose do programa reaberto no ano passado podem não ser suficientes para assegurar uma cobertura completa do acréscimo de dívida que os países vão colocar a mais no mercado em 2020...

Banca fragilizada

Não há bancos fortes com economias fracas e desengane-se quem acha que os bancos não vão ser atingidos pela crise, alerta Luís Máximo dos Santos, vice-governador do Banco de Portugal. Numa entrevista por ocasião da divulgação do relatório de supervisão comportamental, acabou também por versar sobre por que razão a solução das dificuldades causadas pela pandemia não pode depender apenas do Banco Central Europeu.

Distribuição mais forte

A corrida aos super e hipermercados a meio de março vai ficar para a história desta pandemia de covid-19. O sector da distribuição ficou no olho do furacão e a sua capacidade de resposta foi posta à prova. Por um lado, o aumento das vendas fez disparar os lucros. Por outro, aumentaram também os custos associados às medidas adotadas para responder a esse pico de procura e proteger trabalhadores e clientes.

E ainda…

. Venda da Brisa paga dívida e dá novo fôlego ao Grupo José de Mello

. Claude Berda investe €280 milhões entre o Jamor e a Marginal

. Economias emergentes abaladas por crises cambiais e recessões

E_2479.jpg

Meu nome é Carlos, Juan Carlos

A transição do regime ditatorial de Franco para a democracia garantiu-lhe um lugar na História. Mas, nos últimos anos, as amantes e os negócios suspeitos deixaram o monarca espanhol isolado da família e dos súbditos. Retrato de Juan Carlos I, um rei só.

Antes da liberdade

A contestação à Guerra Colonial e ao regime fez Marcello Caetano deixar regressar a repressão, a censura e o controlo dos cidadãos através de escutas. No ano em que se assinalam os 50 anos da apresentação na Assembleia Nacional do projeto da Lei de Imprensa, por Sá Carneiro e Pinto Balsemão, um conjunto de 130 registos de conversas é prova disso.

Vacinar é preciso

Descobrir uma vacina eficaz contra a covid-19 é cada vez mais urgente, não só pelo impacto negativo global tremendo a nível sanitário, social, económico e político que está à vista de todos mas porque a pandemia pode ter efeitos em cadeia absolutamente inesperados. Até agora, só uma doença infecciosa foi erradicada: a varíola. E tudo começou na China, no século X.

E ainda…

. A história do Pecado e suas variáveis através dos tempos

. Há um padeiro em cada português. A nova ‘doença’ da panificação caseira

. Entrevista a Joaquim Caetano, diretor do Museu Nacional de Arte Antiga

A todos um ótimo fim de semana.

Nos vemos pelo Expresso.

quinta-feira, 30 de abril de 2020

Covid-19: "Sou Messias, mas não faço milagres"

De  Euronews  •  Últimas notícias: 29/04/2020 - 13:18

Jair Bolsonaro durante uma das suas declarações improvisadas aos jornalistas

Jair Bolsonaro durante uma das suas declarações improvisadas aos jornalistas  

Direitos de autor AP Photo/Andre Borges

Trump pode ameaçar fechar as portas ao Brasil, mas Jair Bolsonaro permanece firme e diz que é ele quem manda dentro de portas.

Numa altura em que a covid-19 mata mais de 400 pessoas por dia no país, o presidente brasileiro afirmou que as decisões do homólogo norte-americano não lhe dizem respeito, mas também que há pouco a fazer em relação à pandemia.

Depois de classificar a covid-19 como "uma pequena gripe", Bolsonaro brincou, esta terça-feira, com o próprio nome para negar responsabilidades na evolução do surto.

"Lamento. Que que faça o quê? Eu sou Messias, mas não faço milagres", respondeu o presidente brasileiro a um jornalista.

Esta terça-feira, de acordo com dados oficiais, o Brasil ultrapassou a barreira dos 70 mil casos de infeção e das cinco mil mortes associadas à covid-19.

Um dia antes, a cidade de Manaus bateu o recorde de funerais, ao registar 140 enterros em 24 horas, quatro vezes mais que a média local.

Em várias cidades braileiras, a falta de camas nos hospitais e de equipamento de proteção individual estão a deixar o sistema de saúde nacional à beira do colapso.

Com muitos brasileiros contra a ação do governo, várias cidades do país têm sido palco de um "panelaço", uma ação de protesto, que consiste em bater tachos e panelas à janela.

Não, senhor ministro, nem toda a dívida é imposto futuro

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 28/04/2020)

A afirmação do ministro da Economia é taxativa e foi repetida, tanto por ele próprio como pelo primeiro-ministro, anunciando-se como uma espécie de doutrina do Governo: “despesas do Estado hoje são impostos amanhã." Ao mesmo tempo, o Governo tem reafirmado que a austeridade foi uma má solução e que é impensável repetir o erro. As duas declarações são simplesmente contraditórias.

Como o Estado está a aumentar a despesa para responder à pandemia, nos termos da primeira frase o ministro anunciaria um aumento dos impostos para amanhã, e isso seria austeridade, a tal alternativa indesejável nos termos da segunda frase. Ou seja, esta doutrina sugere que ou temos despesa a mais agora e então era melhor cortá-la, ou que, sendo necessária, teremos de a pagar com mais impostos que nos penalizarão no futuro, o que tornaria incongruente a afirmação de que a austeridade vai ser evitada.

Portanto, ou se trata de uma contradição, dado que a não-austeridade e a austeridade não podem ocorrer ao mesmo tempo no mesmo país, ou se trataria de um subterfúgio, revelando e logo ocultando o que o Governo daria por certo, os “impostos amanhã”. Partindo do princípio de que não se trata uma sequência de matreirices e que o Governo, sabendo o custo social e eleitoral da austeridade, queira evitar o caminho da punição da economia e da vida social, vale a pena discutir o paradoxo do ministro Siza Vieira.

Seria desconsiderar o ministro, que é um homem cuidadoso na formulação das suas opiniões, se se resumisse esta frase a uma trivialidade, do tipo “cá se fazem e cá se pagam”. Suspeito que alguns dos seus colaboradores assim o entendam, mas a credibilidade da comparação entre as contas de um país e as de uma família já teve melhores dias e perdeu mercado depois da sua utilização austeritária. A questão, em resumo, deve ser colocada exatamente ao contrário do que sugere o aforismo do ministro: se não houver agora despesa pública é que de certeza teremos mais impostos.

João Ferreira do Amaral explicou pedagogicamente esta razão. Perante o imediato impacto do Covid19, só o aumento da despesa do Estado (em gastos no serviço de saúde, em apoios a salários ou evitando que empresas vão à falência, em proteção social aos recibos verdes e outros precários) é que permite evitar o agravamento da recessão. E, como só a recuperação da economia poderia garantir o aumento da receita fiscal sem aumentar as taxas dos impostos, a chave para a salvação é manter o emprego, preservar a procura agregada, restabelecer as cadeias produtivas, ou seja, investir mais para evitar a queda. Só nos salvamos da austeridade se a economia for relançada. Como não haverá investimento privado de monta, é o investimento público dirigido e seleccionado que nos protege do abuso dos impostos.

Em todo o mundo, o endividamento público gerado pela resposta à doença vai disparar. Os cálculos do FMI são que o défice dos países desenvolvidos será em média de 11% este ano, o triplo do que aconteceu com a crise do subprime em 2008, e, assim, a dívida total dos países desenvolvidos aumentará no conjunto em seis biliões de dólares, mais 10%, alcançando 122% do PIB dessas economias. O pior que poderia acontecer seria mesmo que todos os ministros da Economia pensassem e agissem como se todas estas despesas tivessem que ser traduzidas em aumento de impostos. Nesse caso, teríamos uma espiral depressiva à nossa porta, com medidas aplicadas nos vários países para garantir mais redução do PIB para solucionar uma redução do PIB, com cada economia a impor às vizinhas uma redução das suas exportações e mais sacrifícios. O que seria um erro num país transformar-se-ia num vírus generalizado no mundo. Já lhe conhecemos o nome, chama-se austeridade.

O que se aplica a Portugal aplica-se a todos. Os governos precisam de ajudar a cuidar das vidas. Isso tem um preço (mas o custo de não o fazer era maior), é défice e dívida. Mas, se a taxa de crescimento futuro (mais a inflação, mesmo que pequena) for maior do que a taxa de juro, o peso da dívida vai sendo absorvido e tende a diminuir, sobretudo se for dívida a longo prazo, como deveria ser. Combinadas com medidas de monetarização da dívida, que os EUA e o Reino Unido adoptarão, porventura mais do que a zona euro, as políticas de crescimento serão decisivas.

Se Siza Vieira me permite uma sugestão, diga aos seus colegas europeus que tirem da ideia essa bizarria de fazer pagar em impostos o esforço para salvar vidas e empregos e se esforcem em criar mecanismos de cooperação para absorver o choque e para relançar as economias. Por isso, preferia, senhor ministro, ouvi-lo dizer que despesas do Estado de hoje são vidas e que têm que ser orientadas para relançar o crescimento, para evitar a guilhotina dos impostos.

Vamos conviver com a desigualdade exposta pela covid-19?

Posted: 29 Apr 2020 03:24 AM PDT

«Não estou no grupo dos crentes da transformação da natureza humana com esta pandemia que nos assola. E, no entanto, a verdade é que alguma coisa terá de mudar, nem que seja para ficar mais ou menos na mesma. Porque a covid-19 expos uma desigualdade com que sociedades decentes não devem conviver resignadas. O coronavírus não é um vírus democrata nem igualitário. Explora debilidades físicas crónicas dos infetados, e também explora doenças financeiras pré-existentes.

A covid-19 fez-nos o favor de expor que mata e contagia preferencialmente pessoas pobres. É um novo episódio da velha realidade circular conhecida: a desigualdade impacta para pior a saúde dos que estão na base da pirâmide, e um pior estado de saúde gera menor produtividade e maior desigualdade. É um novo degrau que, para mim, acentua a urgência de se corrigir o cisma social e económico para que os políticos olham risonhos e tranquilos. Se não, talvez não se esperem hordas de bárbaros, mas de certeza movimentos anticapitalistas cada vez mais vocais e ferozes.

O meu coração não pende para ir protestar para as ruas pela abolição do capitalismo, como setores crescentes pedem. Mas tenho noção de que o capitalismo está num ponto desregrado que beneficia muito uns poucos, deixando na mesma uma imensidão de gente. Há um espírito ‘winner takes all’ nos mercados atuais que põe em perigo os próprios mercados. Não tendo um curso superior – um dos grandes diferenciadores culturais e económicos atualmente –, é fácil ficar armadilhado em trabalhos que se tornaram muito mal pagos. E as diferenças de rendimento não se traduzem só em férias glamourosas ou passadas no sofá de casa sem dinheiro para sair, mas também em anos de vida com saúde, e na singela probabilidade de continuar vivo ou não.

A organização dos mercados não é um determinismo divino, resulta de legislação e regulação. A liberalização foi benéfica quando era o estatismo que se tornava um peso-morto. Houve criatividade e inovação, tiraram-se centenas de milhão de pessoas da pobreza com a globalização.

Porém, estamos no lado oposto do pêndulo. E temos de ter noção de que as pessoas não continuarão a viver em condições de mera subsistência para dar avultados ganhos a outros. Ressentimentos destes são matéria de revoluções. Ou contamos que estejam demasiado doentes para se revoltarem?

Vejamos o estado da arte exposto pela covid-19. Nos países onde os dados são fornecidos desagregados, como os Estados Unidos, vê-se que o coronavírus proporcionalmente contagia mais e mata mais nas minorias negra e latina e nos códigos postais onde vive maior percentagem de pobres. Em Nova Iorque, a taxa de mortos negros e latinos é o dobro da de brancos e asiáticos. Em Los Angeles, os infetados por covid-19 residentes em zonas pobres têm uma probabilidade de morrer que é três vezes a das zonas sem pobreza.

Pobres, para começar, têm menor acesso a cuidados de saúde, hábitos alimentares e de vida menos saudáveis. Maior probabilidade de sofrer doenças crónicas e mais cedo. Nos Estados Unidos, sabemos bem, os cuidados de saúde são próprios de uma distopia. Em Portugal e na Europa temos sistemas de saúde mais compassivos, mas ainda assim se notam diferenças conforme o rendimento. Dos dois lados do Atlântico um estudo concluiu, no ano passado, que os ricos tinham expetativa de mais nove anos de vida saudável que os pobres, com dados de EUA e Reino Unido. Naquelas idades de fim de vida quando a covid tem mais impacto, portanto.

Os mais pobres têm mais trabalhos que obriguem à presença no local e ao contacto com grande número de pessoas: fábricas, supermercados, limpezas, transporte e distribuição. O teletrabalho não é um luxo que lhes assiste. Dependem dos transportes públicos, onde há ajuntamentos de pessoas. Vivem em casas mais pequenas – o que não é despiciendo: por cá, 30% dos contágios aconteceram em coabitação. Faz diferença ter casas com várias casas de banho, ou só uma, quartos individuais, espaço para alguém doente estar confinado sem contactar demasiado com os familiares.

Não tenho dados para Portugal – que preferimos nunca saber demasiado para não chocarmos as nossas almas sensíveis. Mas não há razão para escaparmos a esta desigualdade. Desde logo porque reforça algo que já se verificava. O relatório Health At a Glance de 2019 da OCDE mostra que, por cá, mulheres e homens com educação superior vivem mais 2,8 e 5,6 anos, respetivamente, que quem não terminou a educação secundária.

Os lares também nos dão um vislumbre destes números nas vidas reais. 40% dos mortos portugueses por covid são idosos que estão em lares. É a idade, sim. E muitos estão em lares e residências sénior por questões de assistência médica e de cuidados quotidianos, bem tratados. No entanto, permanece a diferença para quem mantém autonomia, está na sua casa ou na de filhos e netos, porventura com ajuda geriátrica paga, resguardado do contágio provável num lar.

Estas linhas são sobretudo de alerta, mas deixo duas sugestões de atuação. A primeira, essencial para os próximos tempos: não encolher prestações sociais para os mais pobres. O stress de viver na pobreza é equivalente a perder 13 pontos no QI, originando más decisões de vida, incluindo quanto a maus hábitos de saúde – e entra-se no círculo viciado. Ter um rendimento assegurado é um alívio que permite respirar – e pensar – melhor. Estar descansado que se consegue alimentar os filhos resulta em menores necessidades de fumar ou de ingerir bebidas alcoólicas. Poder comprar melhores alimentos é mais saudável que ingerir quilos de gomas. As prestações sociais são, entre outras coisas, prevenção de gastos futuros nos sistemas de saúde.

Outra. Atentem à concentração dos ganhos dos novos negócios em muito poucas pessoas. Desde as plataformas digitais que enriquecem multimilionários à conta de conteúdos e trabalhos produzidos por terceiros a quem recompensam nada ou pouco. À Amazon que, em tempos de covid-19, quando o mundo passou a comprar só online e faturou milhões, aumentou nos armazéns o ordenado dos seus mal pagos trabalhadores (mas essenciais para o estado do mundo em 2020) dois dólares por hora – é a loucura. E um quilométrico etc. de exemplos. Está na hora de os países europeus e a União Europeia legislarem uma maior repartição dos ganhos que são produzidos por todos mas agora beneficiam sobretudo só alguns.»

Maria João Marques