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sábado, 9 de maio de 2020

O direito ao contraditório e ao ruído

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 07/05/2020)

Gosto de quem exerce o legítimo direito de discordar das minhas posições invocando o gosto de pensar pela própria cabeça, na insinuação subliminar de que eu penso com uma cabeça alheia.

Aprecio a alegação contra a denúncia dos crimes cometidos por Hitler, Franco, Pinochet ou Salazar com perguntas retóricas sobre os de Mao, Estaline, Enver Hoxha ou Pol Pot, como se alguma vez tivessem defesa uns ou outros.

Agrada-me o argumento irritado, quanto à denúncia de crimes cometidos por militantes de um qualquer partido, com o desfiar do rol de delinquentes de um partido concorrente, como se a bondade partidária se medisse pela conduta dos militantes.

Regozijo-me com a amnésia dos admiradores de Cavaco, Passos e Portas, que os julgam salvadores da Pátria e responsabilizam o governo anterior pelas suas malfeitorias, como se a crise financeira mundial de 2008 não tivesse existido, e ignorando que a falência de um Estado ou de uma empresa (bancarrota) não se confunde com a fissura numa banca da praça do peixe (banca rota), como há uma década vêm escrevendo.

Mas nada me extasia tanto como os ataques irritados a qualquer governo que não inclua o PSD e o seu apêndice de serviço, o CDS. Há quem, na sua crença, pense que Cavaco é um intelectual e Passos Coelho um académico. É mais um motivo para minha diversão.

Finalmente, resta-me recordar à direita truculenta a satisfação manifestada pela eleição de Bolsonaro, por Paulo Portas, Nuno Melo, Assunção Cristas, André Ventura e Luís Nobre Guedes, para não falar da carta de felicitações que Santana Lopes lhe enviou.

Quaresma no lugar certo – o da Política

por estatuadesal

(Isabel Moreira, in Expresso Diário, 07/05/2020)

FUTEBOL - Ricardo Quaresma. Jogo de qualificacao para o Campeonato do Mundo 2018, Portugal - Ilhas Faroe, realizado Estadio no Bessa, no Porto. Quinta, 31 de Agosto de 2017. (EPOCA 2017/2018) (Vitor Garcez)

Os racistas podem ser os monstros que a memória do século XX não apaga e podem ser figurinhas medíocres, sem convicção, oportunistas do momento. Mas o racismo é sempre assunto sério, é sempre coisa da polis, porque os racistas, os grandes monstros ou os pequenotes anedóticos, comungam no objetivo do apagamento do outro. Discriminar em função da etnia é sempre apagar, é tirar do mapa e esse objetivo é conseguido pelo verbo, pela ação, com pequenos e com grandes gestos.

Pretender que se crie um plano de confinamento específico para a comunidade cigana, devidamente estereotipada e falsamente acusada de comportamentos alucinantes em tempos de pandemia, remete-nos para a máquina jurídico-administrativa que o nazismo montou para que, numa política de pequenos passos, os judeus fossem despojados da sua humanidade com adesão consequente dos alemães “puros” ao novo normal, ao afastamento (apagamento) dos judeus da cidade. Criou-se, também pelo Direito, uma consciência coletiva de obediência ao normativo.

Pretender que haja regras de confinamento para a todos e outras à parte para as pessoas ciganas faz-nos pensar nos tempos que um parlamento aprovou leis para proteger o sangue de um povo idealizado.

Felizmente, a esmagadora maioria das portuguesas e dos portugueses sabe que somos comunidade junta e que o recurso à ciganofobia em tempos de menor atenção mediática é coisa de racista aflito. Mas o racismo é sempre assunto sério e é sempre assunto político. Todas e todos nós temos lugar aí mesmo, na cidadania livre.

Ricardo Quaresma deu um pontapé no racismo de Ventura. Ventura, nervoso, pediu para calarem o jogador, dizendo que não lhe cabe falar de política.

Ricardo Quaresma, na verdade, erguendo-se como pessoa cigana, foi a pessoa livre e responsável que recusou o nosso apagamento e que falando no lugar certo engrandeceu a política.

Imunidade sem rebentar SNS: trabalhadores são os novos heróis

Posted: 08 May 2020 03:30 AM PDT

«Os austríacos ou os checos são os mais inteligentes da pandemia? O modelo sueco falhou? É absurdo fazer contas a meio desta corrida. Uma coisa sabemos já: quem confinou mais cedo, acertou. Mas a resposta à segunda vaga não será certamente igual. As circunstâncias mudam todos os dias e informação vital aflui com novos dados. O confinamento está a criar a maior crise económica da História do mundo. Não é um problema de bolhas económicas ou correções financeiras. É outra coisa nunca antes vista: não-produção à escala global, apesar de continuarmos a consumir. Temos de lutar contra duas pandemias em simultâneo. Podemos?

As informações mais relevantes dos últimos dias surgem, não dos cientistas das vacinas ou de novos fármacos, mas dos epidemiologistas. Neste momento são eles quem gerem as expetativas do mundo inteiro.

O que dizem os epidemiologistas? Com a informação disponível projetam cenários de imunização coletiva por países, com base em alguns pressupostos.

Primeiro pressuposto, positivo: a infeção não regressa após o primeiro contágio, dizem os investigadores sul-coreanos. Pode ainda ser cedo para se terem certezas, mas é um indício excelente.

Segundo pressuposto, o mais importante de todos: provavelmente mais de 80% da população não terá sintomas de Covid-19 e só menos de 20% das pessoas acabem infetadas. No universo de casos positivos, 85% fica em tratamento assistido em casa, mais de 10% necessitam de internamento, e menos de 3% têm precisado de cuidados intensivos/ventiladores.

Estes pressupostos fazem toda a diferença face ao que sabíamos há dois meses: não temos de imunizar ou encontrar resposta médica para toda a população, mas apenas para 20%.

O extraordinário estudo de Loulé

O estudo serológico levado a cabo pela Fundação Champalimaud e o Algarve Biomedical Center, em Loulé, trouxe esta semana os primeiros dados nacionais de grande relevância quanto à imunidade.

Em 1235 pessoas testadas - funcionários da Proteção Civil, forças de segurança e trabalhadores dos mercados -, há esta surpresa: por cada teste positivo 14 casos Covid-19 eram assintomáticos, e como tal não testados. É uma proporção brutalmente acima da taxa de infeção que se julga de referência (1 infetado por cada 4 saudáveis).

O exemplo de Loulé é simbólico, mas mais um, que apoia a base matemática apresentada pelos epidemiologistas. Há uma imunização coletiva a desenvolver-se por todo o mundo e a velocidade parece superior ao que pensamos. No limite extremo deste otimismo estão os investigadores de Singapura que anunciaram um possível fim da Covid-19 para este ano.

A doutorada em matemática de epidemiologia Gabriela Gomes, atualmente na Escola de Medicina Tropical de Liverpool, previu o fim da Covid-19 para Portugal no Outono/Inverno de 2021, sem nunca ultrapassarmos a curva de resposta do SNS e sem nenhuma vaga maior que a de Março passado.

Espanha, por outro lado, teve tantos casos que vai estar fora da Covid-19 muito mais cedo e sem mais vagas.

Ora, informações como estas são importantíssimas. Porquê? Manter a fronteira fechada com Espanha pode acabar por não ser perigoso para nós, daqui a meia dúzia de meses - e isso é vital para o turismo.

É verdade que "imunidade" passou a ser uma palavra maldita, depois da loucura inicial de Boris Johnson, Trump, Bolsonaro e alguns outros. Não enfrentar a Covid-19 no arranque é absurdo, sobretudo quando não se tem sistemas de saúde minimamente preparados.

Todavia, os suecos, que arriscaram mais, até agora não rebentaram a capacidade do seu SNS, embora tenham mais vítimas que os seus vizinhos. Mas os seus cientistas dizem que, no final das diferentes vagas, o padrão de óbitos será idêntico em todo o lado - desde que os SNS funcionem para não haver vítimas extra por falta de tratamento.

Claro, não tivesse Portugal confinado e certamente estaríamos com um cenário de vítimas proporcionalmente idêntico ao de Itália e Espanha. A estratégia foi certíssima no início de Março. Mas coisa diferente é manter-se uma defesa sistemática do confinamento radical daqui para a frente, num mundo em que o SNS não está a rebentar pelas costuras e há hospitais de campanha preparados, muito mais ventiladores disponíveis, e, ainda por cima, este ponto novo: afinal, talvez só 20% ou menos da população não esteja "imune" à Covid-19.

A ser assim - e as próximas semanas vão responder a isso - não só é positivo que o processo de imunização coletiva continue, como vamos poder reabrir a economia com mais confiança em menos tempo. Porque, no final, abrir as fronteiras e os aeroportos dependerá deste ritmo de imunização que o Instituto Ricardo Jorge vai estudar em breve.

Outro dado muito importante é trazido por alguns biólogos, que alertam para um novo perigo: a falta de contacto humano não nos vai permitir produzir imunização a diferentes tipos de "pequenas doenças" como a gripe. E isso vai tornar-nos mais frágeis. Obviamente não podemos correr riscos agora, mas é importante perceber que os "outros" não são apenas ameaças biológicas. No final disto vamos precisar muito da nossa vida em sociedade sem máscaras e com abraços porque "outros" são, quase sempre, aliados biológicos.

(Frise-se: enquanto não existir vacina ou um medicamento eficaz, todo o cuidado é pouco. A missão social de cada um é usar máscara, lavar as mãos e manter a distância social de forma a não contrair a doença.)

Combater o pânico

O novo combate pandémico passa agora por enfrentar o mundo com lucidez crescente. Sabermos ler os números sem pânico e com base em três parâmetros: quantos novos casos e vítimas tem cada país por milhão de habitantes; quantas pessoas perdem a vida diariamente em cada país; e se o número de óbitos é muito excendentário face à média diária. Se os telejornais fizessem isto, fariam uma leitura mais rigorosa da realidade, e com isso diminuiriam a sufocante angústia Covid-19.

No caso português, todos estes vetores são, à data de hoje, completamente aceitáveis. Aliás, mesmo com 500 ou mais casos diários - desde que a taxa de transmissão sintomática (o tal R0) seja sempre inferior a 1 - podemos coabitar em equilíbrio com o regresso ao trabalho.

Um dia como o de ontem, com 539 novos casos, menos de mil doentes internados e menos de 200 nos cuidados intensivos, é um dia na média do expectável. Porque significa que a velocidade da nossa imunização se processa a bom ritmo (como se viu em Loulé), e o SNS está a menos de metade da capacidade de resposta normal ao coronavírus.

Os trabalhadores portugueses, que permaneceram ou estão a regressar ao trabalho, são os heróis desta segunda fase. São eles quem se estão a expor ao risco de manter o processo de imunização em curso (ou contrair a doença, mas serem defendidos pelo SNS). São eles que saíram do lay off e voltaram a produzir. São eles que nos vão voltar a fazer exportar a breve prazo.

Hoje, 8 de Maio, dia da Vitória, 75 anos depois da derrota nazi, o combate dos trabalhadores pela economia portuguesa é, também ele, mais um ato de um quotidiano histórico e heroico que nos vai ajudar a salvar o país de uma gigantesca crise económica. Não podemos ficar atolados em dívida e nas mãos dos cruéis credores e agências de rating de que ainda nos lembramos bem. Máscaras e imunidade são as novas armas do quotidiano. Há uma luz ao fundo do túnel. É segui-la.»

Daniel Deusdado

sexta-feira, 8 de maio de 2020

Não há remédio

Posted: 07 May 2020 03:45 AM PDT

«Para grandes males, grandes remédios. Um adágio que parece ter sido escrito para tempos como os que vivemos. Uma emergência sanitária que se transformou numa profunda crise económica e evolui para uma crise social desastrosa. Há um preço a pagar pela opção de ficar em casa. Em troca de maior resguardo ao vírus, que não atravessa paredes, ficámos expostos a um conjunto de outras doenças que nos bateram à porta: ao fecho de milhares de negócios e empresas que deixaram tantos pequenos empresários e as suas famílias sem sustento; aos despedimentos de milhares de trabalhadores precários (sempre os primeiros a pagar a fatura); ao lay-off (redução salarial) para mais de um milhão de pessoas; e, em casos mais extremos, à fome, cada vez mais visível nas ruas. Grandes males, portanto. Que exigiriam grandes remédios. Usemos dois exemplos dos últimos dias. O primeiro dirigiu-se aos concessionários de autoestradas, que tinham receita garantida, mesmo que não circulasse um único carro. Um daqueles contratos que ajudou à bancarrota de 2011. O Estado avisou os baronetes do asfalto que não vai pagar em dinheiro, mas na verdade não os deixará de mãos a abanar e admite pagar em espécie, prolongando os contratos no tempo. Ainda assim, já se anuncia o que aí virá: processos em tribunal e, a julgar pelo caso das famigeradas "swaps", uma conta ainda mais gorda para pagar. O segundo exemplo tem a ver com a tentativa de PCP, PAN e BE impedirem as grandes empresas de se comportarem como nababos orientais e travar o pagamento de dividendos. A iniciativa não passará, uma vez que os dirigentes do PS e do PSD apreciam doses de populismo ocasional sobre a Banca, mas nada que interferira com a vida das grandes empresas e a necessidade de manter bem oleada a famosa placa giratória. A Galp (318 milhões), a REN (114 milhões) e a EDP (694 milhões), três empresas que já foram públicas, têm luz verde para continuar a festa, como se nada tivesse acontecido. Grandes males, grande remédios? Os adágios já não têm o valor que tinham.»

Rafael Barbosa

quinta-feira, 7 de maio de 2020

O Estado que vamos herdar

Posted: 06 May 2020 03:26 AM PDT

«O retrato publicado há dias neste jornal sobre o número de portugueses que dependem do Estado para viver é ao mesmo tempo assustador e reconfortante. Assustador porque, se a cifra já era expressiva antes da pandemia (cerca de 5,6 milhões de pessoas), evoluímos entretanto para patamares invulgares: sete milhões de cidadãos contam agora com algum apoio público para se manterem à tona. Mesmo considerando que possa haver duplicação de prestações sociais, falamos de dois terços da população. É esmagador. Mas estes números acabam também por nos trazer algum conforto, na medida em que, apesar da nossa pequenez geográfica e fragilidade económica (a que devemos somar a teia burocrática que agrilhoa tantos serviços públicos), ainda fomos capazes desta proeza. Na gigante Espanha, estima-se que durante a pandemia "só" 40% dos cidadãos estejam a ser apoiados.

Ora, escusado será dizer que nenhum Estado aguenta muito tempo um nível de esforço desta magnitude. Mas, chegados aqui, também é escusado dizer que esta crise maldita tornou evidente que não temos grande alternativa ao Estado quando tudo o resto falha. Não enquanto as famílias não recuperarem rendimentos que lhes permitam escapar à miséria. Não enquanto a atividade económica e as empresas não começarem a respirar um pouco melhor.

Sobre isto, vale a pena recordar o que disse o economista José Reis: "Tudo o que estava protegido pelo trabalho ficou desprotegido. E o único instrumento que temos hoje é o Estado. Não são as empresas, nem o capital, nem a Banca, nem os offshores. Andámos anos a tecer loas ao capitalismo e, afinal, quem não falhou foi o Estado". A claque dos liberais empedernidos dirá que é para isto que pagamos impostos. A claque dos socialistas efervescentes rejubilará com a imagem do "sonho bolivariano" tornado realidade.

A verdade, porém, é bem mais complexa do que qualquer dicotomia ideológica primária. Nem os recursos públicos são infinitos, nem a nossa capacidade de pagar impostos é inesgotável. Portanto, o que quer que seja o Estado depois disto, terá de ter ainda mais em conta o difícil equilíbrio entre estes fatores. Sairemos mais pobres desta borrasca e, porquanto, forçados a aprimorar não só os mecanismos de financiamento dos cofres públicos, como (e mais importante) os critérios que definirão os destinatários preferenciais do nosso esforço contributivo. Salvemos vidas e empregos no imediato, mas não nos esqueçamos de que haverá, no futuro, mais portugueses para salvar. Sobretudo os mais frágeis de entre nós, para quem o Estado é mesmo a única família.»

Pedro Ivo Carvalho