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segunda-feira, 11 de maio de 2020

Covid-19: A vacina é o próximo campo de batalha

Posted: 10 May 2020 03:41 AM PDT

«A covid-19 tornou-se num campo de batalha na cena internacional. À emergência sanitária somou-se a emergência económica. A seguir, a pandemia ganhou uma terceira dimensão: o conflito sino-americano passou das tarifas para o vírus. A Administração Trump acusa a China de ser responsável pela pandemia. Pequim explora o seu êxito no controlo da covid-19 e lança uma agressiva diplomacia para lavar a sua imagem e alargar a sua influência, designadamente na Itália. Biliões de pessoas esperam ansiosamente por uma vacina, mas esta mesma vacina corre o risco de se tornar em mais uma arma tóxica na guerra da pandemia.

Escrevia-se há três meses, quando o coronavírus ainda mal começava a assustar os italianos e muitos respondiam com um racismo antichinês: “A grande dúvida é saber se a epidemia do coronavírus se manterá como crise sanitária internacional ou se vai transformar-se num fenómeno geopolítico, susceptível de alterar os equilíbrios do sistema internacional. O coronavírus surge como um ‘cisne negro’, acontecimento imprevisível e raro que, combinando-se com outros factores, pode dar lugar a inconcebíveis mudanças. Tudo depende da expansão ou contenção da epidemia ¬e dos seus efeitos na nossa vida quotidiana ou no comércio internacional.” E, em Fevereiro, não tínhamos a ideia da dimensão trágica que a pandemia iria alcançar.

A China começou por se vangloriar da superioridade do seu regime político e dos seus métodos no confronto da doença - uma vitoriosa “guerra popular.” Pequim terá ganho a batalha da opinião interna, mas é improvável que vença a internacional, apesar do esforço em se apresentar como “potência generosa” que auxilia os outros. Mas a batalha das máscaras não lhe correu muito bem. E sofre um inesperado desaire: tencionava proclamar em 2021, no centenário do Partido Comunista Chinês, a duplicação do seu PIB numa só década. O coronavírus estragou a festa.

A Administração Trump começou por saudar a “transparência” de Pequim. Quando a covid-19 atingiu a América, Trump virou a agulha e respondeu com a “revelação” de que o novo coronavírus teria nascido num laboratório de Wuhan. O coronavírus passou ser o “vírus chinês”. Pequim teria mentido em toda a linha. Depressa a guerra das tarifas comerciais se prolongava na novíssima “guerra do vírus”.

Efeito na ordem mundial

O veterano Joseph Nye, o cientista político que criou o conceito de soft power, escreve na Foreign Policy que “o coronavírus não mudará a ordem mundial”. Apela à cooperação. E adverte: “Se a política americana continuar neste caminho, o novo coronavírus apenas acelerará a tendência para o populismo nacionalista e para o autoritarismo. Ainda é muito cedo para predizer uma viragem geopolítica que altere fundamentalmente a balança de poder entre os Estados Unidos e a China.”

Na Foreign Affairs, o australiano Kevin Rudd, antigo primeiro-ministro e hoje professor de Geopolítica, especialista na China, faz uma interessante abordagem. Económica e militarmente, Pequim é mais fraca que os EUA. Mas tem sabido manipular habilmente a percepção do seu poderio, ao ponto de convencer turcos e alguns europeus de que o coronavírus ilustra a marcha para a supremacia chinesa. “Diz-se que a percepção é a realidade. Mas, na realidade, não é.”

Aponta três factores que moldarão a ordem mundial: “Mudanças na capacidade militar e na força económica das grandes potências; o modo como estas mudanças serão percebidas no mundo; e as estratégia escolhidas. Com base nestes três factores, a China e os Estados Unidos têm razão em se preocupar com a sua influência mundial pós-pandemia.”

A América é um problema. “A caótica gestão da Administração Trump deixa uma indelével impressão de um país incapaz de lidar com as suas próprias crises. (…) Os EUA parecem emergir [da pandemia] como uma comunidade política mais dividida do que unida, como seria normal numa crise desta magnitude. A contínua fragmentação do sistema político americano é mais um forte constrangimento para uma liderança global americana.”

A Administração Trump agravou o problema “ao enfraquecer a estrutura de alianças dos EUA (que na lógica estratégica convencional seria central para manter a balança do poder em relação à China) e sistematicamente deslegitimar as instituições multilaterais (criando um vazia para a China preencher). O resultado é um mundo crescentemente disfuncional e caótico.”

O teste da vacina

Em Abril, o jornal americano Politico advertia sobre o receio de que Trump incitasse a uma “rixa global” sobre a vacina. “A recente corrida às máscaras, luvas e outras protecções pessoais dá um instrutivo exemplo. Imaginem agora, dizem especialistas e altos funcionários, uma similar competição para obter doses de vacinas: poderia agravar a crise sanitária, deixando espalhar o vírus por muito tempo, devastando os países menos equipados para o combater.”

Lembramo-nos de que Trump tentou negociar com um laboratório alemão o “exclusivo” de uma virtual vacina. Também Pequim não está interessada na cooperação sobre a vacina. Aposta em fazer a sua, tal como Trump. A tentação de controlo da vacina é muito forte.

A comunidade científica internacional continua a colaborar na investigação sobre a vacina. Mas este esforço comum pode não ser partilhado pelas potências concorrentes. Se a Europa surge como pólo dinamizador da cooperação, é incerto o que se passará com os Estados Unidos e com a China. Quem chegar primeiro à vacina comandará a produção e, sobretudo, a distribuição. Seria uma incalculável vantagem política, económica e de prestígio. Uma vacina chinesa seria uma inédita vitória num terreno em que a América sempre foi líder. Criaria uma percepção mundial análoga à do Sputnik soviético: a nova potência que começa a superar a América.

O benefício político da vacina é óbvio. No plano interno, permitiria imunizar prioritariamente a sua própria população, o que além das vidas salvas seria uma importante poderosa arma económica na fase pós-covid.

Esta corrida está lançada e decidirá se triunfa uma lógica nacionalista ou uma lógica cooperativa. A vacina será o grande teste. A decisão muito pesará sobre o futuro modelo das relações internacionais.

No mundo da pandemia, destacam-se três pólos: Estados Unidos, China e Europa, cada um com as suas forças e fraquezas. Será a Europa capaz de exercer uma influência global de modo a impor a cooperação numa questão de vida ou morte?»

Jorge Almeida Fernandes

Sai mil milhões para o Novo Banco

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso, 09/05/2020)

O primeiro-ministro sabe tudo. Sabe de cor os apoios a sócios-gerentes e a recibos verdes, o número de disciplinas nas escolas e de máscaras nos transportes públicos, o que vai acontecer nas praias e nos festivais de música, o primeiro-ministro nunca é apanhado em falso numa entrevista. Só não sabe uma coisa: que foram transferidos mil milhões para o Novo Banco.

O mesmo primeiro-ministro que não diz gastar um cêntimo na TAP sem controlar não controla cem mil milhões de cêntimos para o Novo Banco.

Está tudo errado. É chocante saber que nem António Costa abriu os olhos para o dinheiro nem o ministro das Finanças pestanejou em transferi-los. É claro que a oposição vai pôr em causa a justiça na repartição de sacrifícios na pandemia. E é previsível que agora se diga e sublinhe e repita que “para os bancos há sempre dinheiro”. Até porque é verdade. Como verdade é o seguinte: já não podia ser de outra forma, porque todo o sistema de apoios ao Novo Banco foi assim montado.

Chamar ‘banco bom’ ao Novo Banco foi como chamar ‘Pai Natal’ a quem dá presentes. Ambos não existem. O ex-BES carregou milhares de milhões em créditos maus que foi vendendo ao preço da uva mijona, pois era mesmo uva que não poderia dar vinho. Fê-lo porque era preciso. E fê-lo porque pôde: havia capital garantido no Fundo de Resolução (outro nome ‘Pai Natal’, aliás, para dizer que o dinheiro financiado pelo Estado não é do Estado) para cobrir os prejuízos daí resultantes. E como eles se têm empilhado nos últimos anos.

O acordo foi feito com Bruxelas e só tinha, em geral, duas alternativas: ou se deixava o banco falir ou se fazia um aumento de capital gigante à cabeça. Optou-se por garantir o capital ao longo de alguns anos, na esperança, aliás, de que ele fosse vendido. Foi, é verdade; a Lone Star ficou com 75% de mil milhões de euros, que hoje o banco não vale. E nós fomos enchendo a vala às pazadas de mil milhões. É quase tudo dinheiro do Estado, tirando as contribuições de outros bancos, contrariados em subsidiar um concorrente que se aniquilou enquanto BES. Acredita que os bancos vão pagar ao Estado o dinheiro agora emprestado durante 30 anos? Eu não, mas espero estar cá para ver.

No acordo desenhado em 2017 com o BCE, o Novo Banco conseguiu o que provavelmente nenhum banco do mundo tem: que injeções futuras de capital, por estarem garantidas pelo Estado, já contem como capital. Foi assim que os rácios em 2019 foram cumpridos, já incluíam a injeção de mil milhões que fantasmagoricamente foi processada esta semana. E se não tivesse sido feita? Bom, então o banco entrava instantaneamente em processo de recuperação. Percebe a armadilha?

O Novo Banco está a ser salvo por uma máquina comercial com grande força nas empresas e com vendas de ativos tóxicos que supostamente não existiam, que causam prejuízos, que forçam aumentos de capital. Em tempos de pandemia, esperar-se-ia que o Governo pelo menos reduzisse a fatura, diluindo-a por mais anos. O ministro das Finanças percebeu que estava de mãos atadas e o primeiro-ministro de olhos vendados. E como não sabe como há de explicar isto aos portugueses que estão a sofrer na pele a crise económica brutal, há de fazer piruetas políticas.

Os bancos são essenciais nesta crise, porque por eles passa o dinheiro para as empresas, eles decidem quais vivem e quais morrem. Que não morram eles, o que começa por reconhecer que este ano vão ter prejuízos, em vez de mascararem as perdas futuras atrás das moratórias de crédito que o Governo aprovou. Porque de pagar prejuízos futuros estamos fartos. E, no caso do Novo Banco, até os prejuízos passados. Para o ano isto acaba, na última transferência. Ponham um lembrete na agenda do primeiro-ministro, por favor.

domingo, 10 de maio de 2020

Quando pudermos voltar a chorar

Posted: 09 May 2020 03:57 AM PDT

«Era maio de 2020, os ténis deixados à porta, agora rotos da corrida intensa em tempo concentrado, simbolizam o “grande confinamento”. Ela apercebeu-se da velocidade vertiginosa da transformação brutal do mundo em 45 dias, a casa transformada num cemitério de recordações do passado, uma civilização extinta onde não era permitido chorar.

Resolveu fazer uma visita virtual ao museu Guggenheim de Veneza, lá está ele sobre o verde trémulo do canal, procura o quadro de Giorgio De Chirico, “A Torre Vermelha”. Mergulhar na sua pintura metafísica, as figuras como vazios misteriosos a carregar consigo um sentimento de solidão e silêncio, meias pessoas meias estátuas, a luz derramada sobre o largo como um raio-X, toda a atmosfera de melancolia e enigma. Não há passado nem futuro, a vida transformada numa abstração indizível, o fim de todos os desejos. Permanece a morbidez do nada, como agora.

A ditadura sanitária do vírus-terrorismo pode matar-nos. A ciência não é unívoca, não temos razões para acreditar cegamente em políticas sanitárias radicalizadas, há muitos outros cientistas a apontar-nos a racionalidade do caminho de conviver com o vírus e combatê-lo. A resposta não está na curva epidemiologista ou no índice de infeção, talvez na combinação regrada e integrada de uma política de saúde com a economia a funcionar, evitando a miséria sem precedentes, uma invencível desigualdade social, a catástrofe económica e social iminente. As dúvida fazem parte desta fase, e não são fonte de medo, de terror mas de escolhas de caminhos lógicos e não absurdos. A tecnologia só por si é a resposta mórbida, até porque uma APP saudável só seria eficaz com 100% da população rastreada, o que faz dela um instrumento estigmatizador. Só uma política humanizada poderá impedir que tudo se transforme em pó, cinza e recordações. Os infecciologistas ponderados afirmam que aprender a viver com o vírus faz parte da nossa condição humana, vamos adaptar-nos a ele e ele a nós, o aumento da infeção será aumento de imunidade, um dia, não o fim do mundo. Combater o vírus e simultaneamente trabalhar, ganhar a vida, ser gente, não são realidades inconciliáveis. A morte continuará a fazer parte da vida e como vimos durante o “grande confinamento” houve mais mortes não-covid, além da imersão verificada de todas as patologias da desigualdade e da pobreza.

O território proibido do jardim ao fim da tarde como extensão dos mistérios daquela pintura, a luminosidade demasiado intensa, as pessoas emolduradas em suspenso numa realidade impenetrável. Está muito calor, miúdas em biquíni e rapazes em tronco nu na relva, um homem a treinar com elásticos presos na árvore, impressionismos ou surrealismos, sempre marcados pela metafísica do nada. Procuramos um futuro aparentemente inatingível.

No dia em que compreendermos que temos que combater o vírus convivendo com ele, sem medo irracional, ficaremos infinitamente fortes, poderemos finalmente chorar, como seres racionais. Isto já não é um problema sanitário, mas de direitos humanos.»

Maria José Morgado

sábado, 9 de maio de 2020

Costa e Centeno, “ Disseram”?

por estatuadesal

(Joaquim Vassalo Abreu, 09/05/2020)

Se  disseram, então está dito!

Mas que quer isto significar? Quer significar que já está tão sedimentada na opinião pública Portuguesa um tão sustentado grau de fiabilidade em Costa e Centeno e já tão enraizada no senso comum uma ideia de idoneidade, de competência e solidez tais, que basta “falarem” para as pessoas confiarem e dizerem, como o Povo diz, “falaram, está falado”!

Mas esta solidez advinda da Confiança, também resulta da serenidade e postura destes dois governantes em especial, pelo que as suas lideranças acabam por ser aceites com toda a naturalidade e sem necessidade de qualquer imposição ou força.

E a isto chama-se simplesmente Confiança, que é como todos sabemos a variável mais determinante quando se têm que tomar decisões políticas ou económicas.

No último programa do Eixo do Mal, a propósito da volatilidade das declaraçòes de Marcelo, (acerca do 1° de Maio por exemplo), o Daniel Oliveira proferiu uma frase lapidar” Enquanto Costa lidera a Opinião Pública, Marcelo é por ela liderado”!  Pode parecer suspeito de quem vem, mas é a pura realidade. 

Na quinta feira à noite assisti também a uma estupenda entrevista de Mário Centeno à RTP 3, onde com uma postura serena e sóbria, mas séria e confiante, advindas da certeza do inequívoco grande trabalho antes realizado, não deixou de responder a única pergunta do entrevistador e mostrou à saciedade qual deve ser a postura de um governante de bem consigo mesmo.

Mas ela é também definitória de uma segurança que se tem que ter para transmitir a referida Confiança. Na verdade ele sublinhou, mas nem precisava de o fazer, o duro caminho percorrido por Portugal nos últimos anos até à sua afirmação na Europa e no no Mundo, igualmente nas suas diversas Instituições, mas um caminho sem atropelos nem titubeações, tanto no cumprimento dos objectivos traçados como das regras estabelecidas.

Portugal passou a figurar como parte das soluções e não dos problemas, através de uma coerente atitude de positivo envolvimento e o reconhecimento chegou com a eleição do próprio Mário Centeno para Presidente do Eurogrupo, fruto claro do enorme respeito granjeado entre os seus pares.

Mas chegou a ser até tocante ver um Homem a quem tudo estava a correr bem, qual Sisifo chegando com o pedregulho ao cimo da montanha, ver tudo ruir num ápice e, tal como Sisifo, ter que carregar novamente a dura e pesada pedra montanha acima…

Mas tocante no sentido em que aceita o desafio sem azedume, nem com o recurso e sempre usual desabafo do “que azar”…Não, a sua resposta foi sempre positiva: “Portugal já mostrou que é capaz e hoje todo o Mundo acredita que o é”, disse ele! E o respeito adquirido nos últimos anos por Portugal saiu ainda mais reforçado com a actual crise pandémica, pela resposta competente e pronta, com o nosso comportamento enquanto Povo, pelo nosso espírito solidário e com a unidade das Instituições.

Mas o Prestigio, tal como a Confiança, conquistam-se lenta e progressivamente e a confiança que depositamos nestes nossos dois Governantes, eu diria até “Comandantes”, é uma enorme mais valia para nós Portugueses ultrapassarmos este enorme desafio com que inopinadamente fomos confrontados. Mas agora com mais armas que antes, sem dúvida.

Costa e Centeno “disseram”? Então está dito!

A inútil grandeza das nações

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 09/05/2020)

Miguel Sousa Tavares

A Alemanha deu muito à Europa: poetas, romancistas, músicos, maestros, pintores, filósofos, estadistas, inventores, cientistas, médicos, desportistas. E a Alemanha fez muito mal à Europa: devastou-a duas vezes, do Atlântico a Moscovo, no século passado. Da primeira vez, já ninguém se lembra ou é capaz de explicar porquê, não fosse para testar a superioridades dos canhões Krupp. Da segunda vez, para vingar a rendição humilhante de Versalhes, mas também, é forçoso reconhecê-lo, para testar a crença na superioridade da raça alemã, mobilizada por um medíocre líder, mas superiormente proposta nas imagens de Leni Riefenstahl. Mas, após 1945, uma Europa destruída pela demência alemã foi generosa perante uma Alemanha vencida e igualmente destruída. Os exércitos aliados vencedores detiveram o Exército Vermelho a meio do território alemão e, numa Berlim isolada e sitiada pelos russos, montaram uma inédita e incansável ponte aérea, que permitiu que o estatuto de Berlim Ocidental livre e a República Federal Alemã pudessem viver e prosperar durante 35 anos fora da Cortina de Ferro. O Plano Marshall, dos americanos, permitiu à Alemanha, em pé de igualdade com as nações que Hitler havia ocupado e destruído, começar a reerguer-se das ruínas da guerra. Os empréstimos que então lhe foram concedidos, contendo uma cláusula que lhe permitia ir amortizando-os apenas à medida que cresciam as suas exportações, garantiu-lhe não ser sufocada pelo serviço da dívida — como, por exemplo, Portugal e a Grécia foram na crise de 2008-14 — e, simultaneamente, fundar a sua reconstrução económica no sector exportador, fazendo dela a potência que hoje é nesse campo. Ao mesmo tempo que, proibida de deter Forças Armadas, pôde canalizar todo o investimento público para a economia e o sector social, tornando-se uma das maiores potências económicas mundiais. Enfim, a criação da então Comunidade Económica Europeia, de que a RFA foi um dos seis membros fundadores, pela mão de Konrad Adenauer — que, juntamente com Willy Brandt e Helmut Schmidt, foi um dos três grandes estadistas alemães e europeus do século XX —, deu à Alemanha um mercado comum, isento de tarifas, para escoar os seus produtos.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Vem isto a propósito da infame sentença do muito venerado internamente Tribunal Constitucional alemão, de Karlsruhe, conhecida esta terça-feira. O Tribunal julgou e deu razão a uma queixa apresentada em 2015 (não estamos sós nos atrasos judiciais!) por um “clube de elite” de cerca de 2 mil juristas, economistas e outros alemães de bem com a vida que invocavam a violação do “princípio da proporcionalidade”, inscrito na Constituição alemã, pelo facto de o Banco Central Europeu ter então decidido acorrer à crise das dívidas soberanas comprando quantidades imensas destas, de modo a evitar a total falência dos Estados endividados. Foi o chamado quantitive easing, de Mario Draghi, na sequência do que também a Reserva Federal americana havia feito e que, junto com a célebre frase de Draghi (“farei tudo o que for necessário”), permitiu salvar o euro e evitar que a Europa do euro entrasse na modalidade do “salve-se quem puder”. E é claro que os alemães podiam: enquanto os juros da dívida pública portuguesa escalavam até aos 12% e os da grega até aos 20%, os da dívida alemã mantinham taxas negativas — os investidores pagavam para ter dívida alemã. Tal qual como agora, assim que foi conhecida a sentença do Tribunal Constitucional alemão: os juros de todos os países do sul da Europa, os mais endividados, deram imediatamente um salto para cima, com destaque para a Itália, enquanto os juros da Alemanha recuavam para terreno ainda mais negativo. Porque os investidores desconfiam, e provavelmente com razão, que se o Tribunal alemão põe em causa as compras de dívida do BCE feitas no passado, também irá pôr em causa as mesmas compras já anunciadas agora e já em marcha pelo mesmo BCE. Ou seja: como é assim que o casino funciona, aqueles juízes, pomposamente vestidos com um traje misto de esbirros do Tribunal do Santo Ofício e Teatro de Marionetes, estavam candidamente a ler uma sentença que tinha o dom de dar uma inestimável ajuda às empresas e à economia alemã, já de si a mais rica da Europa, ao mesmo tempo que ajudavam a tornar ainda mais insuportável a vida actual de milhares de empresas e milhões de trabalhadores que se debatem com uma situação de crise inimaginável, para a qual em nada são responsáveis. Assim é fácil, como se diz na gíria e passe o palavrão, “cagar sentenças”.

Resumindo e relembrando: a Europa, que a Alemanha destruiu duas vezes num século, foi capaz de lhe perdoar, de a salvar de cair sob a bota de Estaline e deu-lhe os recursos financeiros e as condições para se reconstruir. E a União Europeia deu-lhe o mercado que fez dela o país mais rico da Europa. Certamente que também houve muito mérito dos alemães, da sua lendária capacidade de organização, de trabalho e de resiliência.

Mas há um problema histórico com os alemães: entregues a si próprios e aos seus demónios, eles têm uma tendência para a autodestruição. Pelo contrário, em 75 anos de resgate europeu, a Alemanha viveu o seu mais longo período de paz e de prosperidade. Deve-o aos Estados Unidos, que lhe garantiram a paz, e à Europa, que lhe garantiu a prosperidade.

Mas acontece ainda que a Alemanha é membro da UE e membro do Eurogrupo e de ambas as condições tem retirado benefícios como nenhum outro. Porém, são inúmeras as ocasiões em que políticas de interesse comum ou, pelo menos, largamente maioritário, esbarram nas invocadas “impossibilidades constitucionais alemães”, de natureza económica: a Constituição não lhe permite ter inflação, não lhe permite ter défices, não lhe permite ser solidária com os outros ou consentir que instituições comunitárias, como o BCE, tomem decisões que indirectamente acabam por convocar a solidariedade financeira alemã, em violação do “princípio da proporcionalidade”. E, então, nessas ocasiões, os juízes de Karlsruhe e muitos outros alemães cujas ideias eles reflectem, esquecem-se que o seu país pertence a uma organização que reúne 25 outras nações, ligadas por algumas leis comuns, um parlamento comum, um conselho de governantes comum, uma comissão executiva comum e um tribunal comum — cujas sentenças e cuja legislação aplicável está acima das venerandas casacas vermelhas dos juízes de Karlsruhe. Se é que a Alemanha quer continuar a pertencer à União Europeia. E eu acho que quer, porque as alternativas — os Estados Unidos, de Trump, a Rússia, de Putin, ou esta China, que estamos a descobrir, assustados — não só não são atractivas, como não lhe consentiriam nada semelhante ao papel de liderança que tem na Europa.

Não esqueço que a Alemanha foi determinante na ajuda a Portugal para a estabilização da democracia a seguir ao 25 de Abril, quando Cunhal garantia a Oriana Fallaci que jamais teríamos aqui “uma democracia burguesa”. E não esqueço também que a Alemanha é hoje o maior contribuinte líquido para a UE, mas é natural que o seja porque é a nação mais rica dos 26 e porque não é do seu interesse que mercados importadores dos seus bens vão à falência. Podemos todos, aqui no sul, voltar a andar em modelos populares dos tempos de hoje, como os Seat Ibiza, os Fiat 127 e os Renault 5 de outrora, mas não creio que os alemães gostassem. É difícil explicar isto a um finlandês ou a um holandês, mas a um alemão não devia ser. Lembra-me de um jantar a que fui na embaixada alemã em Lisboa, na época da outra crise. Fiquei sentado ao lado de um alto responsável do Bundestag que, a certa altura, me perguntou, naquele tom desagradável de quem vai dar lições a um menino mal comportado e como se eu, pessoalmente, lhe devesse dinheiro:

— Mas, afinal, como é que vocês se endividaram assim?

Fazendo o meu melhor para me conter, respondi:

— Olhe, reparou nos carros que estavam lá fora, à entrada da embaixada?

— Não.

— Eu reparei: BMW, Mercedes, Audi. Foi assim, em grande parte, que nos endividámos: a comprar-vos carros e outras coisas, a crédito. Crédito vendido pelos bancos alemães aos nossos bancos. A nossa ruína é a vossa fortuna.

Não se trata de querer aplicar à Alemanha a célebre receita para a prosperidade económica de Mariana Mortágua: “Perder a vergonha de ir buscar o dinheiro onde ele está.” Aliás, nem teríamos armas para o assalto. Mas trata-se de insistir e insistir e insistir em fazer ver aos alemães que aquilo em que eles são europeus é muito melhor do que aquilo em que são apenas alemães. Como todos nós, pois esse é o projecto e o destino da União Europeia. Esse ou nenhum outro.

PS 1. Ah, grande ciganito, grande Ricardo Quaresma! Eu, como todos os portistas, sempre venerei este génio da bola, vibrei com as suas fintas, os seus golos que desafiavam a geometria, indignei-me com os truques de secretaria levados a cabo para o tirar do jogo. Mas este golaço que ele agora marcou na capoeira escancarada do galo Ventura, deixando-o no fundo das redes, depenado, esganiçado, ridículo, esbracejando de impotente réplica — ao ponto de apelar às “autoridades” que calassem quem assim o expôs à humilhação pública — este, caro Ricardo Quaresma, foi um golo de levantar o estádio!

PS 2. Foi comovente assistir à forma como o poder político assinalou o primeiro dia dedicado à Língua Portuguesa no mundo. Quatro assessores de outros tantos ministros escreveram-lhes um texto conjunto carregado daquelas banalidades patrióticas que em nada de substancial diferem das do antigamente, e logo acrescentadas por outras banalidades semelhantes de Costa e Marcelo. Mas a única homenagem e o único serviço que poderiam prestar à língua portuguesa e que é há décadas reclamado pela imensa maioria dos que, em Portugal, a utilizam e a defendem — a revogação desse vergonhoso Acordo Ortográfico de 1980, imposto à traição a todos os portugueses por um grupo de sábios desocupados — esse, como sempre, ficou adiado. Por inércia, por cobardia, por falta de visão. Mas, sobretudo, por falta de amor a esta língua maravilhosa que os nossos pais e avós nos deixaram para nos servir e para nós defendermos. Para o ano, por favor, poupem-nos a igual hipocrisia.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia