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domingo, 17 de maio de 2020

A pandemia da ignorância a propósito do “marxismo cultural”

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 16/05/2020)

Pacheco Pereira

Às vezes nem vale a pena bater no ceguinho, porque para bater em ceguinhos em Portugal arranja-se sempre uma multidão. De preferência quando o ceguinho já está mesmo ceguinho, porque mesmo só com um olho, o estilo reverencial abunda e o país é muito pequeno para haver independência crítica. E então se for anónima a pancada, os praticantes são mais que muitos.

Mas a ignorância atrevida, essa, sim, merece azorrague, até porque nos dias de hoje, de pensamento mais do que exíguo, a coisa tende a pegar-se pelas “redes sociais”, o adubo ideal da ignorância. Temos de suportar duas pandemias, a da ignorância e a do vírus. Convenhamos que é demais. Nestas alturas, tenho um surto de pedantismo incontrolável. Bom, não sei bem se a classificação de pedantismo é a melhor, mas que por lá anda, tenho a certeza.

Vem isto a propósito do actual uso e abuso da expressão “marxismo cultural”, muito comum hoje à direita mas também usada muitas vezes erradamente à esquerda, que, na sua globalidade, é cada vez menos marxista, mas ainda não deu por ela. Porém, o uso à direita é uma espécie de vilipêndio e insulto e, em muitos comentadores de direita, é comum para caracterizar uma espécie de polvo omnipresente, que lhes rouba as artes, as letras, o jornalismo, algumas universidades, as ciências sociais, a comunicação social, a educação e o ensino, e os obriga a refugiar-se nos espaços “livres” dos colégios da Opus Dei, no Observador, nos blogues de direita, na Universidade Católica, nos lobbies ideológicos empresariais com acesso à comunicação, nalgumas fundações, nalguns articulistas, na imprensa económica, etc. Para bunker contra o “marxismo cultural” já parece muito espaçoso, mas eles acham-no apertadinho.

Nuno Melo escreveu recentemente um artigo com o título sugestivo de “A supremacia do marxismo cultural”, que é um bom exemplo de quem não percebe nada do que está a falar. Começa com uma citação de Marx, aquilo a que ele chama a “lição” que a esquerda aprendeu:

“As ideias da classe dominante são, em todas as épocas, as ideias dominantes, porque a classe que é a força material dominante da sociedade é, ao mesmo tempo, a sua força intelectual dominante.”

Muito bem. A frase quer dizer exactamente o contrário do que ele pretende. Quer ele dizer que é o proletariado a “classe dominante” nos dias de hoje e que é por isso que a “força intelectual dominante” é o marxismo? Interessante, ele vai certamente explicar-me quando é que houve mudança de “força material dominante”, ou seja, quando é que houve uma revolução. Na interpretação de Marx, são escritos como o de Melo que revelam a “força intelectual dominante”, ou seja, a da burguesia.

O que é essencial na interpretação do marxismo é que a seta do poder, que explica a sociedade, a cultura, a economia, a cultura, se faz a partir “de baixo”, das relações de produção, do modo de produção, das classes dominantes a cada momento da história, e que nesse terreno é a luta de classes que define essa outra seta que é o sentido da história. Como Lenine e Trotsky disseram de forma mais bruta, de um lado está o “caixote do lixo da história” e do outro o futuro, a base da teleologia marxista. E embora haja “acção recíproca” entre a superestrutura e a infra-estrutura, ela faz-se sempre a partir da “determinação” da infra-estrutura. Esta interpretação de Marx é a essência da sua teoria, e mesmo quando, nas escassas páginas que escreveu sobre a “cultura”, Shakespeare, em particular, admitiu uma “autonomia relativa da cultura”, nunca admitiu que essa autonomia fosse absoluta. Ou seja, na interpretação marxista, nunca o “marxismo cultural”, seja lá o que isso for, podia ser dominante numa sociedade capitalista, e isto é o bê-á-bá da coisa. Nem Lenine, nem Rosa Luxemburgo, nem Gramsci, nem Lukács, se afastaram deste ponto essencial.

E, mesmo aceitando-se a ambiguidade da expressão, seria um absurdo dizer que qualquer forma de “marxismo cultural” tem hoje “supremacia” na sociedade portuguesa. É verdade que há muita força da esquerda e do esquerdismo (que não é a mesma coisa) em determinados sectores da “superestrutura”, nas artes, nas letras, em certa comunicação social, mas acrescente-se duas coisas: primeiro, a maioria dessa esquerda e desse esquerdismo não é marxista; segundo, já teve mais força do que hoje tem e, mesmo a que subsiste, está cada vez mais acantonada. Por exemplo, nos anos da troika, muito do discurso público em matérias de sociedade e economia era “neoliberal” (não gosto desta designação, mas vai por facilidade), e uma das grandes vitórias ideológicas da direita foi conseguir interiorizá-lo de forma “dominante”. Devo dizer que eu troco todo o esquerdismo cultural no teatro pela reversão dessa invasão inconsciente de muitas cabeças pela TINA.

Eu não sou guardião da ortodoxia de Marx, mas sei o que ele disse e o que ele não disse e não participo neste abastardamento das ideias pelas palavras e pela propaganda. O problema é que gente como Nuno Melo, e muita direita, acha que bater no André Ventura é uma expressão do “marxismo cultural” e só não se apercebe de como está a dignificar o exercício, porque precisa de um papão com um nome ilustre para glorificar a vaidade própria.

Não é muito edificante ser vítima da sua ignorância, mas já é outra coisa ser vítima de uma universal conspiração marxista que, vinda das trevas do comunismo, os persegue pelas ruas de Bruxelas.

A pandemia neofascista

17/05/2020 by João Mendes 1 Comment

JB

Cartoon: Carlos Latuff

Nelson Teich, apesar do apelido que rima com Reich, não sobreviveu um mês no Ministério da Saúde de Bolsonaro. Entrou a 17 de Abril, para substituir Luiz Henrique Mandetta, demitiu-se a 15 de Maio, para ser substituído por (mais) um militar. O anterior foi corrido por insistir na importância do distanciamento social. Este demitiu-se por se recusar a recomendar a cloroquina, e por discordar da equiparação de salões de beleza e ginásios a serviços essenciais. Pobre Ministério da Saúde brasileiro, onde o conhecimento científico é enxovalhado e espezinhado, e o autoritarismo ignorante de Bolsonaro é quem mais ordena.

O senhor que se segue é o general Eduardo Pazuello, um militar de carreira sem qualquer tipo de formação na área da saúde. Contudo, Pazuello é detentor da melhor das qualidade para integrar o actual governo brasileiro: é amigo pessoal de Bolsonaro. Tão amigo que afirmou mesmo estar disponível para acatar qualquer medida imposta directamente pela presidente para a área da saúde. Com obediência cega e sem levantar questões.

Nunca, como nestes dias estranhos que vivemos, fiquei tão grato por ter nascido numa democracia consolidada, inserida no único espaço do planeta onde um grupo considerável de democracias decentes coabita da forma mais humana, livre e harmoniosa que foi dada a conhecer ao Homem, pese embora os nossos múltiplos defeitos, corrupção, paraísos fiscais, desigualdades que poderiam facilmente ser drasticamente reduzidas e refugiados a morrer no Mediterrâneo.

Fora desse espaço, porém, existem todos esses defeitos e mais alguns. Como a falta de estruturas e cuidados básicos de higiene, salubridade e saúde, a censura, o terrorismo, a violência racial, países inteiros comandados por meia-dúzia de mafiosos, níveis de poluição estratosféricos, genocídios, totalitarismo, fome e miséria. Não é à toa que tantos fogem para cá. E ver o Brasil, país irmão e amigo, mergulhado neste nível de hostilidade polarizada, de fundamentalismo religioso e ideológico e de loucura, causa-me uma tristeza muito grande.

E o que se passa em certos países, como o Brasil, e em menor escala nos EUA, deve ser encarado com preocupação. Há uma linha vermelha que está a ser cruzada, na periferia da democracia, e isso, mais do que qualquer teoria da conspiração sobre planos secretos para dominar o mundo ou islamizações à bruta, deveria fazer soar todos os alarmes sobre as cabeças daqueles que se revêm no modo de vida europeu, com as suas idiossincrasias e o maior nível de liberdade e dignidade por metro quadrado que alguma vez se viu no planeta Terra.

A verdadeira ameaça não são uns milhares a fugir da miséria total. A ameaça é essa gente que quer usar a democracia para acabar com ela. Que usa o “patriotismo” e o nacionalismo para alimentar uma lógica de conflito bem antiga, com os resultados que todos conhecemos. Que agita o fantasma da globalização, quando na verdade estão ao serviço do capitalismo mais podre, corrupto e desumano. Que tem gerido a pandemia com o brilhantismo a que todos temos assistido, colocando os interesses de meia dúzia à frente do bem estar de todos. Não é à toa que até Boris Johnson, o enfant terrible da Europa civilizada, recuou na sua estratégia de combate à pandemia. Até ele sabe que romper o cordão sanitário que nos separa dos autocratas seria um erro histórico e imperdoável.

A democracia precisa dos democratas. De todos os democratas, sejam eles socialistas, liberais ou conservadores. A ameaça está ao virar da esquina, mais ou menos dissimulada, e não podemos vacilar. Sejam os neofascistas assumidos, sejam os falsos democratas que clamam por câmaras de gás, pendurados no partido que lhes garante o poder, e não no que representa a sua matriz ideológica, todo o cuidado é pouco com a ascensão desta nova e perigosa extrema-direita. O alerta de Karl Popper, sobre o imperativo ético, moral e civilizacional de não tolerar a intolerância, está mais actual que nunca. Ignorá-lo poderá ser o princípio do fim do nosso modo de vida. Não podemos deixar que isso aconteça.

sábado, 16 de maio de 2020

Prémios no Novo Banco: quatro razões para o protesto público

Posted: 15 May 2020 03:25 AM PDT

«Os tablóides têm o talento de fazer manchetes memoráveis. “Not so fast you greedy bastards” foi o título do New York Post de 18 de Março de 2009.

Discutiam-se os investimentos do American International Group (AIG) que tinham levado à crise. Cinco meses antes, com medo dos efeitos na economia, o Presidente George W. Bush pedira ao Congresso 700 mil milhões de dólares para resgatar os maiores bancos e empresas financeiras. “Não parecia justo a Wall Street ter recebido enormes lucros durante os ‘good times’ e agora que as coisas estavam más vir pedir aos contribuintes para pagar a conta”, escreve o filósofo político Michael J. Sandel no seu best-seller Justiça — Fazemos o que devemos? (Editorial Presença, 2011). “Mas parecia não haver alternativa.” Eram “too big to fail”. “Com relutância, o Congresso aprovou os fundos para o resgate.”

O escândalo veio depois. Mal começou a receber capital do Estado — 173 mil milhões —, a AIG pagou 165 milhões em prémios aos executivos da unidade de investimentos de risco que estava na origem da crise. Setenta e três funcionários receberam um bónus de mais de um milhão de dólares. O protesto público foi imediato. Na véspera da manchete do New York Post, o presidente do AIG, que sempre dissera que não aceitaria prémios, disse isto no Congresso:

— Pedi aos funcionários para fazerem o que deve ser feito.

À americana, a expressão foi: “Do the right thing”. Quinze executivos devolveram os prémios (50 milhões), mas a maioria não.

Esta arqueologia serve para dizer que as notícias dos prémios previstos para António Ramalho, CEO do Novo Banco, e o seu conselho de administração mostram como muitas regras mudaram na banca, mas muito está igual.

No Novo Banco, a surpresa tem uma razão clara: um banco que está sob intervenção pública não deve dar prémios aos gestores de topo. Não é só por causa dos contribuintes, pois o nosso papel na operação de resgate do Novo Banco é parcial. As tranches que o Estado paga para “salvar” o Novo Banco saem do Fundo de Resolução e são os bancos que financiam esse fundo. Claro que a Caixa Geral de Depósitos é um banco público cujos lucros são entregues ao Estado. Mas a Caixa paga 18% do fundo.

O protesto é legítimo sobretudo por razões éticas e de transparência. Até o Expresso noticiar, não se sabia que havia um acordo para os administradores do Novo Banco receberem dois milhões de euros. É estranho não pôr as cartas em cima da mesa numa questão relevante como esta e quando há um precedente de peso. Todos nos lembramos do que aconteceu quando a crise de 2008 chegou a Portugal. A Comissão Europeia definiu as “regras em matéria de auxílios estatais às medidas de apoio aos bancos no contexto da crise financeira” e, a partir de 1 de Agosto de 2013, os bancos que recebessem capital do Estado passaram a ser obrigados a “aplicar políticas rigorosas em matéria de remuneração dos quadros dirigentes”: “Qualquer banco beneficiário de auxílios estatais deve circunscrever a níveis adequados as remunerações totais do pessoal, incluindo o conselho de administração”. A seguir, a Comissão Europeia explica o que são “renumerações totais”: “O limite superior das remunerações totais deve incluir todas as possíveis componentes fixas e variáveis bem como as pensões.” Tradução: o tecto inclui o salário e o bónus. No fim, estão os valores: “A remuneração total não pode exceder 15 vezes o salário médio nacional no Estado-membro ou 10 vezes o salário médio dos trabalhadores do banco beneficiário.” Foi por causa desta regra que nesse ano os conselhos de administração de alguns bancos portugueses não receberam prémios. É possível que a regra já não vigore — não tive tempo de verificar. Mas o precedente existe e é recente. Quando um banco recebe capital do Estado, é consensual na Europa que não deve pagar bónus ao conselho de administração.

Além disso, é razoável defender que um banco não atribua bónus aos quadros do topo quando tem prejuízo. Há empresas e bancos que fazem isso como prática comum — incluindo bancos privados que não estão sob resgate do Estado. Percebe-se que no Novo Banco estejam a trabalhar muito — dos 33 objectivos definidos, dizem ter cumprido 29 — mas os prejuízos impressionam. Em 2019, o ano a que se referem os prémios, o Novo Banco teve um prejuízo de 1059 milhões de euros.

Não sei se é ganância — não vale a pena discutir isso. Da manchete do New York Post, “Not so fast you greedy bastards”, a parte que interessa é o “not so fast”. Ainda é possível reverter? O ministro Mário Centeno deu a entender que sim. Falta ver o que vão fazer o comité de renumerações do Novo Banco, o Banco de Portugal e o BCE. Há tempo. Antes de 31 de Dezembro de 2021, os prémios não podem ser pagos. Até lá, ainda temos a crise pós-pandemia. Essa é a quarta razão para protestar contra estes prémios. O esforço do Estado, das empresas e dos contribuintes vai ser monumental. É evidente para todos que, nestas circunstâncias, é pouco ético tirar dois milhões do Fundo de Resolução para premiar os gestores de um banco que está a ser salvo com dinheiro dos outros, dinheiro público e privado.»

Bárbara Reis

Novo Banco, BES, BPN uma sucessão de burlas

por estatuadesal

(Vítor Lima, 14/05/2020)

Quem vem aceitando as faturas? Os governos. Quem as paga? O povo mais pobre da Europa ocidental.


Diz Centeno que "O Novo Banco foi a mais desastrosa resolução bancária alguma vez feita na Europa"; e, se pensarmos nos seus protagonistas – Passos, Maria Luís e Carlos Costa – o último que ainda por aí continua como governador do BdP - deve ter muita razão. Ainda recordamos o gaguejar de Carlos Costa a explicar o mecanismo do Fundo de Resolução que, porventura lhe teria sido ditado, pouco antes pelo Draghi.
Em agosto de 2014 foi publicado neste blog um texto de abordagem do calamitoso programa de apoio do Estado aos bancos falidos, mais concretamente do BES;
http://grazia-tanta.blogspot.pt/2014/08/o-bes-bom-o-bes-mau-e-ma-gestao-dos.html
E, na concentração de protesto convocada contra essa situação no dia 9/8/2014 junto da sede do BES, não estiveram presentes os papagaios que agora barafustam contra o governo; pelo contrário. Na sua ignorância, demência ou imbecilidade, clamavam pela … nacionalização do BES… Ora, nacionalizar massa falida é sempre algo que os capitalistas muito gostam…
Entretanto, a muito custo, o “Banco Bom” foi entregue (mais ninguém o quereria) a um fundo abutre (Lone Star), em 2017 num contrato leonino em que o erário público/fundo de resolução continua a prestar assistência financeira ao banco. Em 2014/16 o “Banco Bom” somou cerca de € 2300 M de prejuízos e, a entrada da Lone Star, materializou-se numa entrada de € 750M, para materializar ao sua parcela de 75% no capital social da instituição. A que se seguirão € 250 M até finais de 2017. Claro que tudo isto foi monitorado pela Comissão Europeia.
Porém, nos anos que se seguiram 2017/19 os prejuízos aumentaram substancialmente – cerca de € 4850 M. E a festa está longe de ter acabado; melhor. Só acaba quando a Lone Star se for embora com o bornal cheio; o seu negócio – como de todos os fundos abutre - não é a banca mas a concretização de desestruturações com venda ou apropriação das partes boas, deixando para trás, ao que lhes não interessa – crédito malparado, trabalhadores e um good bye ao Fundo de Resolução.
Em 2008, o BPN onde estava aquartelado o gang de Cavaco Silva, embora pesasse muito pouco no conjunto do sistema bancário português foi nacionalizado por uma dupla pouco recomendável (Sócrates/Teixeira dos Santos). Manifestámos então o nosso desacordo, aqui:
http://www.slideshare.net/durgarrai/bpn-exemplo-prtico-do-que-o-capitalismo
Os imprestáveis do negócio da nacionalização do BPN renderam mais de 3000 M de prejuízos a um “veículo” estatal chamado Parvaloren  que, como o nome indica, foi algo de parvo para quem tem o dever de zelar contas públicas. E foi o mesmo Estado (Passos Coelho) que vendeu (por € 40 M) uns salvados do BPN a uma figura de imaculada capitalista, como Isabel dos Santos, que indicou para seu homem de mão um tal Mira Amaral, do PSD.
Nesta suja ligação entre Estado e classe política ressalta a fragilidade do sistema financeiro, a grande relevância que os capitais espanhóis vão tendo no conjunto, reveladora da integração de Portugal como mais uma região do estado espanhol. E a subserviência é particularmente visível nos beija-mão de Costa e Marcelo ao Bourbón, a propósito de questão catalã, sobre a qual teria sido da mais elementar prudência, não se meterem em assuntos internos do país vizinho.
O enredo entre Costa e Centeno com Marcelo pelo caminho é uma cara distração em tempos de coronavírus.

Fábula do Novo Banco

por estatuadesal

(José Gameiro, in Expresso Diário, 15/05/2020)

Andavam os três na mesma escolinha há uns anos. Uma escola pequenina em que todos se conhecem, desde pequeninos. Vão às festas uns dos outros e são os melhores alunos da classe.

A escolinha tem uma pedagogia muito moderna, estimula a competição, já fala de empreendedorismo e prepara-os para a selva da vida actual. Claro que, com as melhores intenções, apesar da resistência de alguns pais.

Oferecem-se sempre para ir ao quadro, põem o dedo no ar, cada vez que a professora faz uma pergunta. Levantam questões, não perdem uma oportunidade, para mostrarem que sabem tudo.

Um é muito bom em contas, tem sempre vinte a matemática, outro é muito bom a história, tem uma memória incrível, dá-se bem com toda a gente, mas nunca se esquece do que os outros lhe fizeram e, mais cedo ou mais tarde, aviva-lhes a memória, o terceiro é mais matreiro, amigos, amigos, negócios à parte.

A escolinha tem meninas, algumas bem bonitas e os nossos meninos andam a sempre a catrapiscar as miúdas. No jardim há uma sebe, quando podem e elas deixam, levam-nas lá para trás e tentam dar-lhes uns beijinhos.

Estava tudo a correr muito bem - dizem-me que algumas professoras, mais perspicazes, não acreditavam na boa relação entre os três, antes sentiam-na como uma pseudo-mutualidade - quando a coisa descambou.

Tudo começou num episódio, sem importância.

O menino António queixou-se que o menino Marinho lhe passou uma rasteira no recreio. O Marinho negou. Ia a correr e não viu o menino António, se ele caiu, foi sem intenção. Mas o menino António, que é um bocadinho queixinhas, foi dizer à professora e pediu ajuda ao menino Marcelo, que estava a brincar no intervalo.

Quando este procurou saber o que se tinha passado, não conseguiu perceber muito bem, as versões dos outros eram contraditórias, mas ele, naqueles dias, estava a brincar mais com o menino António, do que com o menino Marinho e decidiu dizer à professora que a culpa era do Marinho.

O Marinho não se ficou e, para lixar o menino Marcelo, foi dizer que este lhe tinha telefonado a pedir desculpa, pelo que tinha dito, mas que continuava a gostar muito dele.

Com esta embrulhada a história destes três meninos só podia acabar mal.

O menino Marcelo fez um cartaz em casa e no dia seguinte afixou-o na escola.

Dizia: fiquem todos a saber que só procurei ajudar os meus amigos, para a próxima não me vou meter nas confusões deles, entendam-se.

O cartaz caiu como uma bomba e relação entre os três nunca mais foi a mesma.

Uma fábula, deve ter sempre uma moral no fim.

Há escolas que são muito pequenas para egos tão grandes...