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sexta-feira, 22 de maio de 2020

O que está a falhar no combate ao coronavírus? A falta da empatia popularizada

Posted: 21 May 2020 03:39 AM PDT

«No dia 2 de Março, que marcou o começo do surto do covid-19 em Portugal, eu, como estudante chinesa de mobilidade, estava em Lisboa e decidi ficar no país para acabar a mobilidade que duraria até ao fim de Julho. Na altura, os episódios de discriminação contra chineses registados em Portugal ainda eram raros, enquanto já estavam a aparecer atitudes preconceituosas e hostilidade contra nós noutros países. Sentia sorte por estar aqui, segura das discriminações. Mas com o tema do coronavírus a ser tudo na vida, as coisas mudaram em Portugal. Comecei a saber de mais casos de discriminação que aconteceram a amigos chineses, a ver cada vez mais comentários discriminatórios a aparecerem em sites portugueses.

Depois de ter sido chamada coronavírus numa rua em Toledo porque estava de máscara quando esta se demonizou pela maioria dos europeus e de ter sido encarada com olhar ofensivo numa rua em Lisboa por ter tossido duas vezes ao sentir comichão na garganta — episódios que não passavam de reacções ignorantes, mas aceitáveis, face ao medo pelo vírus —, há uns dias fiquei chocada ao ver o Jornal da Tarde, na RTP: numa entrevista, um menino cantou “Ai a minha vida... este coronavírus veio para Portugal, foi jogado pelos chineses. Eu mando pô-lo fora!” No fim da entrevista, a jornalista perguntou quem inventou a letra e o menino respondeu: “Nós, os ciganitos.”

A entrevista realizou-se no contexto de um projecto que procura esclarecer a situação do vírus em bairros mais pobres de Algarve. No entanto, a minha preocupação é outra: é essencial a democratização do conhecimento científico sobre o vírus, mas a campanha contra a discriminação não se deve ignorar, visto que a doença pode desaparecer, enquanto o preconceito, já enraizado, nunca se elimina facilmente.

Todas as experiências de discriminação — desde as minhas às de outros chineses que já presenciei — deixaram-me chocada pelo facto de a ideia de a China ser culpada por este vírus já ter uma divulgação tão alargada e estar tão arreigada na cabeça de meninos que talvez ainda nem saibam ler. Sinto-me feliz por aquele menino de olhar inocente se manter, sob o apoio social, a salvo do vírus. Mas triste porque foi “contagiado” sem consciência por um preconceito espalhado entre a comunidade. O menino pode não estar a perceber a conotação hostil da letra contra uma raça, mas infelizmente ninguém o corrigiu. Estou com receio que, vivendo num ambiente assim, com preconceitos como “o outro é inimigo” e com toda a gente de braços cruzados, apareçam cada vez mais pessoas com atitudes ainda mais tendenciosas e agressivas para com uma comunidade e um país.

Quando o novo coronavírus se divulga, o vírus mental representa um risco de contágio mais forte. Quando cada vez mais pessoas consideram a China culpada, há risco de se justificarem acções como o ataque de fezes contra dois alunos chineses, recentemente registado na zona de Picoas, em Lisboa, a atitude indiferente da polícia ao caso, a canção inapropriada divulgada, etc. Num mundo de incompreensões e discriminações, somos cúmplices. Neste mundo, uma propaganda enganadora, uma expressão preconceituosa, um olhar discriminatório podem ser uma bomba-relógio.

Estamos a falhar na descontaminação contra discriminações: falhou a família na educação da igualdade, falhou a RTP em transmitir ideias inapropriadas ao público e em mostrar a falta de empatia pelos chineses, falhou toda a sociedade ao não mostrar uma atitude dura na defesa de um grupo vítima de discriminação. Estamos a falhar na empatia.

Quando começou a circulação da teoria de que a China era responsável por tudo e das críticas irresponsáveis contra os chineses, estas foram rapidamente aceites por muitas pessoas, sem perceberem o que se esconde atrás da propaganda, sem duvidar da autenticidade das notícias. Ninguém culpava um país pelos vírus do HIV, da gripe H1N1 ou do MERS-Cov, que causaram à humanidade danos incompensáveis. Ninguém tentou perceber que o vírus é politizado e utilizado como ferramenta de propaganda para atacar um país, uma etnia e cultura. Ninguém quis admitir que foram os profissionais de saúde chineses, os cidadãos chineses e o Governo a, perante uma nova doença e incertezas, tacteando nas trevas, lutar na linha da frente contra o vírus.

Quando as publicidades dizem “Somos folhas da mesma árvore”, “Ficamos ligados” e “Por si e por todos”, sinto-me isolada: parece que eu, o meu país e o meu povo somos excluídos da empatia e união mundial, que os nossos esforços no combate ao vírus não merecem a atenção e defesa contra os sentimentos xenófobos.

Nós, chineses, sentimos a indignação com as críticas infundadas, discriminações e desprezo por aquilo que o Governo e o povo fizeram. Sentimos a urgência da empatia pelo facto de sermos, como qualquer um que sofre com a pandemia, vítimas. Queremos que todo o mundo saiba que os chineses estão a sofrer incompreensões e discriminações, que os tratamentos injustos para connosco devem ser levados a sério.

Somos diferentes, mas partilhamos a mesma afectividade na luta contra o coronavírus. Ter feições chinesas, falar o idioma chinês e ser chinês nunca podem ser a razão para o ataque racista. Nenhuma doença precisa de um bode expiatório. Nenhuma acção tendenciosa se escusa. Perante as doenças, somos todos vítimas. Perante as discriminações, devemos ser missionários da empatia, verdade e imparcialidade.

Dias melhores estão a avizinhar-se? Para os grupos de risco da covid-19, sim. Mas para os grupos de risco no que diz respeito à discriminação e à xenofobia, esses dias ainda estão longe. Ficamos à espera da empatia popularizada.»

Zhan, Luoheng

O princípio do nada é um passo no caminho

Curto

Jorge Araújo

Jorge Araújo

Editor da E

22 MAIO 2020

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Ansiedade é palavra que sufoca. Não precisa de lábios para se fazer ouvir, diz o que pensa com a força da mais poderosa emoção.

Nos últimos dois meses, vivemos em permanente estado de ansiedade. Sempre o coração na ponta da língua. A vida transformada numa migalha do que era.

Agora, que entramos na segunda fase de desconfinamento, começa-se a respirar um pouco melhor. E cada um aproveita a aparente acalmia para fazer o seu próprio balanço.

Ontem, no parlamento, o governo defendeu que o balanço do estado de emergência é positivo. O anúncio somou critícas da oposição.

Mas ainda vamos no princípio do caminho. No princípio do nada. Não há uma cura, não foi descoberta uma vacina. O vírus continua à solta e pouco ou nada sabemos sobre ele.

Agora que o calor convida a um certo relaxamento, não podemos baixar a guarda. Deitar tudo por água abaixo.

Até porque, de entre os países europeus, “Portugal é mesmo o país onde a subida do número médio de casos na última semana é maior”.

Na crónica do próximo sábado, na revista, José Tolentino Mendonça fala, entre outras coisas, deste futuro que nos escapa. E da importância da memória:

“ As memórias são, como se sabe, moedas para ser usadas no país do futuro”, escreve, com palavras vestidas de sabedoria.

Ainda não sabemos que futuro é esse, nem que país vai sobreviver à pandemia. Mas memórias deste tempos estranhos não nos faltam.

O destino é um lugar de onde nunca verdadeiramente se parte.

AINDA COVID-19. Não é um tiro no escuro, mas quase. Donald Trump vai pagar pouco mais de mil milhões de euros por 300 milhões de doses da AZD 1222. Acredita-se que pode vir a ser a tão desejada vacina contra o novo coronavírus e que poderá estar disponível já em Setembro.

Mas, atenção, a farmacêutica que a está a desenvolver - em parceria com a universidade de Oxford- é a primeira a reconhecer que não tem ainda provas da sua fiabilidade.

O Novo Banco na minha conta

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 22/05/2020)

Daniel Oliveira

Podem pôr as descobertas de buracos do Novo Banco, os descontos de 67% ao “rei dos frangos” e o aumento de 75% dos salários dos administradores na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer. Têm saído tão caras a uns e tão lucrativas a outros as certezas dos “responsáveis.


Graças a Miguel Prado (Expresso) e Cristina Ferreira (Público) ficámos a saber que a mesma administração passou a ver com olhos totalmente diferentes os créditos que tinha em mãos quando o Novo Banco passou para a Lone Star e o dinheiro do Estado apareceu como garantia. Podem pôr estas descobertas na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer, apesar de toda a gente dizer que isto se pode fazer e aqueloutro nos está interdito por causa do que está escrito num documento que é secreto.

Ficámos a saber que, em dezembro do ano passado, o Novo Banco vendeu a José António dos Santos, mais conhecido por “rei dos frangos”, uma carteira de crédito de €17,4 milhões, pagando ao banco €5,7 milhões. Nessa carteira estavam €6,1 milhões de crédito sobre a empresa Premierconsulting, que foram comprados pelo “rei dos frangos” por €1,95 milhões. Uns dias depois deste fenomenal desconto, o Novo Banco participou numa assembleia de credores dessa mesma empresa e aprovou a decisão de levar a leilão o seu património, incluindo a venda, por um mínimo de €3 milhões (mais do que recebera por toda a carteira de crédito), de uma quinta em Sintra. Podem pôr o desconto de 67% ao “rei dos frangos” na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer.

Ficámos a saber que os membros da Comissão Executiva do Novo Banco amentaram-se a si mesmos, desde que a Lone Star tomou conta da loja, em quase um milhão. Uma subida de 75% durante dois mandatos com resultados muitíssimo negativos. O presidente executivo, António Ramalho, e o presidente do conselho geral e de supervisão, Byron Haynes, tiveram direito a salários fixos que ultrapassaram o limite máximo definido pela Comissão Europeia, em 2017, quando o banco foi vendido à Lone Star. Podem pôr o aumento na minha conta por causa de um contrato que nem tenho direito a conhecer.

Estou, como quase todos os portugueses, cansado de inevitabilidades que acabam em assaltos. Que me expliquem que nacionalizar um banco que, de qualquer das formas, vai ser pago pelos contribuintes é um risco imenso. Bom mesmo é doá-lo, oferecendo garantias intermináveis em forma de empréstimos que talvez alguma vez sejam pagos, daqui a 30 anos. António Costa explicou-nos porque é que não podemos fazer nada enquanto a Lone Star esmifra as garantias: “o Novo Banco não é público e o Estado não o gere, nem o supervisiona, nem audita as contas”. Só paga e cala. Não auditar, não controlar e não saber é o segredo de uma atitude responsável. Afinal de contas, se os olhos não veem, o coração não sente. Só pode correr bem.

Nada disto chega a ser um escândalo. Mário Centeno, o génio das finanças de Costa, sabia que Sérgio Monteiro, especialista em negócios ruinosos e símbolo do rigor austero de Passos, lhe estava a entregar um assalto à mão armada. E não estrebuchou. A Lone Star era a única compradora? Era. Não se vendia, parece-me óbvio. Houve quem o tivesse defendido. Lunáticos e irresponsáveis, gritou-se. Têm saído tão caras a uns e tão lucrativas a outros as certezas dos “responsáveis”.

quinta-feira, 21 de maio de 2020

Índice do Citacionismo. Marcelo entre a tenaz de dois candidatos anti-sistema

por estatuadesal

(Vítor Matos, in Expresso Diário, 20/05/2020)

Quatro frases da semana: o fator Ana Gomes, a candidata que é um embaraço; César, o presidente de um estranho partido político que não quer discutir política; Costa, o primeiro-ministro que decretou o fim de uma crise cheia de buracos por explicar; e Ventura, o taberneiro da segunda República.


"Se a democracia não está suspensa no país, também não pode estar suspensa no PS. O PS não é o partido do dr. Costa".
Ana Gomes, militante do PS, dia 18 de maio, em declarações ao Expresso. 17 valores no índice agarraram o Marcelo, vou-me a eles.


O efeito foi exatamente o contrário. Se a intenção de António Costa com o número pró-Marcelo na Autoeuropa era (também) travar uma candidatura de Ana Gomes, o que fez foi incentivar a ex-eurodeputada e arranjar um sarilho no PS (já lá vamos à questão do congresso na citação seguinte). Para a diplomata - que já tinha dito ao Expresso que não avançava -, a indignação é um combustível e a entrada na corrida presidencial pode resultar tanto contra Costa como contra Marcelo.

Uma candidatura de Ana Gomes, que depois desta manifestação de disponibilidade pouca margem de recuo terá, vai ser um incómodo para o Presidente, uma maçada para o primeiro-ministro e uma dificuldade para André Ventura. Conhecendo a agenda da ex-eurodeputada, o professor Marcelo deve começar a preparar-se para temas como a entrada de Isabel dos Santos no BPI, o caso de Manuel Vicente e as relações com Angola, ou a não recondução da Procuradora-Geral da República e ainda Tancos. Veremos se Ana Gomes vai seguir os instintos ou moderá-los.

O facto de já ter classificado Marcelo com um "político do sistema" é todo um programa que permite agregar temas como aqueles: uma concorrência destas à esquerda vai colocar Marcelo sob um escrutínio que ainda não teve e não era Marisa Matias que o faria. Será uma dificuldade para Marcelo que precisa mais do que nunca de votos à sua esquerda.

Mas Ana Gomes, com a suas tentações populistas, que também tem, pode servir de antídoto ao populismo de André Ventura e assim, de certa forma, também pode servir de escudo ou almofada a Marcelo Rebelo de Sousa à direita. Atacar Ventura com os créditos de quem tem trabalho para mostrar na corrupção e no escrutínio da classe política (mesmo no seu partido) gera competição no mesmo terreno eleitoral e desarma o candidato que quer acabar com o regime. Resta saber como reagirá Marcelo entalado dentro desta tenaz de dois candidatos anti-sistema à direita e à esquerda: responderá, não responderá, será agressivo nos debates? É um paradoxo que, com tanta popularidade, esta eleição pareça mais difícil do que a anterior (embora acredite que ganhe à primeira volta).

Quanto a Costa, a crítica de que não se pode comportar como dono do PS, é uma pequena amostra do que está para vir: na pele de candidata transversal e de consciência do PS (papel que já foi de Alegre), não vai poupar o primeiro-ministro e o PS oficial, de Carlos César a Augusto Santos Silva. Será uma candidata livre e à solta a quem o PS não saberá o que fazer. Com um discurso mais suave e com um candidato oficial do PS tão popular como Soares, Manuel Alegre teve um milhão de votos em 2006.

Em cima disto tudo, a diplomata ainda cria um problema à esquerda, sobretudo ao Bloco: valerá a pena avançar com Marisa Matias? O dilema do BE será este: importa entrar na corrida e arriscar um resultado abaixo dos 10% - que será sempre visto como uma derrota -, ou deixar Ana Gomes ocupar toda a praça da esquerda (menos a do PCP)?

"[Um congresso] no último trimestre deste ano resultará em prejuízo quanto à participação e transformará o congresso num debate sobre presidenciais"
Carlos César, presidente do PS, dia 16 de maio, ao "Púbico". 17 valores no índice da minha política é o trabalho

A justificação com a pandemia ainda vá que não vá: era pausível e bastava. Agora, dizer que um congresso de um partido político fica contaminado pela discussão política sobre umas eleições que estão aí à porta, é rejeitar aquilo que justifica a existência e a essência dos próprios partidos políticos (e depois admirem-se dos populistas crescerem). Se um partido não deve pode ter um congresso para debater presidenciais porque não dá jeito, serve para quê? O PS não quer um congresso, quer um festival de cheerleaders a louvaminhar o chefe. Esta frase de Carlos César é a imagem estampada do incómodo de ter em Marcelo o candidato implícito ou explícito do Governo e a necessidade de retirar palco a Ana Gomes e a outras vozes críticas que possam aparecer neste contexto.

E Pedro Nuno Santos, o que pensa disto?

“Quanto à instabilidade… a estabilidade está restabelecida e tudo corre normalmente”.
António Costa, primeiro-ministro, dia 16 de maio, em conferência de imprensa. 16 valores no índice de acenar e sorrir

Nada, já não se passa nada. A instab... aliás, a estabilidade voltou, nada temei bom povo, continuamos firmes no leme e certos do rumo. É um alívio ter um primeiro-ministro assim, que abre e fecha crises como a porta de um frigorífico. Os chefes do Governo habituam-se a estas coisas de decretar sobre tudo e depois decretam o fim dos assuntos, não se fala mais disso.

Pelo menos reconheceu que havia instabilidade, mas a responsabilidade na maior parte do psicodrama foi sua: a) ainda não percebemos porque é que quis enterrar o ministro das Finanças em público e abrir uma crise política lui même com o presidente do Eurogrupo; b) ainda não percebemos porque é que quis fazer depender a injecção no Novo Banco daquela auditoria em particular, quando conhece o contrato e o Orçamento do Estado; c) que consequências estaria disposto a suportar se a transferência não tivesse sido feita naquela data? d) porque é que no comunicado final acabou por admitir todas as justificações de Mário Centeno?

O assunto foi encerrado, mas ainda há muito que explicar. Será que a auditoria nos vai trazer mais surpresas desagradáveis? Para já, o melhor é acenar e sorrir. Já passou... Qualquer dia, mais cedo que tarde, Centeno seguirá feliz para a próxima reencarnação. Mais tarde que cedo, saberemos o que motivou esta novela.

“Cabe-nos a nós deputados da nação portuguesa, representantes desse povo, a quem muitos aqui chamam tasca ou de taberna, cabe-nos a nós representar esse mesmo povo ou a tasca e a taberna será maior do que nós".
André Ventura, líder do Chega, num discurso no Parlamento. 19 valores no índice de tabernização parlamentar

"Oportunista", como à direita lhe chamou Francisco Mendes da Silva. "Abutre", como à esquerda classificou Daniel Oliveira. Aproveitar o homicídio de uma criança para desencaixotar a prisão perpétua, a pandemia para confinar os ciganos, ou mandar calar o Quaresma porque é um futebolista, é de uma vileza que o Correio da Manhã já percebeu: André Ventura é tóxico, provoca danos reputacionais, e já não tem mais palco na Cofina. Ajudaram a criá-lo e ele aí está.

A frase de cima foi tirada do discurso em que apresentou o seu "Projeto Valentina", uma indecência total perante a tragédia de uma inocente que não merece o nome apropriado para alimento político de um populista que quer acabar com o regime (e instaurar o quê?).

Cada vez mais apostado numa estratégia populista clássica - nós, o povo, contra eles, a elite que olha para o povo como frequentador de tabernas - André Ventura tenta fazer da representação parlamentar uma conversa de tasca. Faltam sete meses para as presidenciais e o homem está em esforço a reproduzir tudo em estilo 'casa de pasto'. Talvez o portugueses entretanto percebam melhor a natureza do que ali está. A responsabilidade de secar aquele discurso está sobretudo à direita, ou a própria direita deixará de ser alternativa.

Desconfinar o juízo à direita

Posted: 20 May 2020 03:17 AM PDT

«Os leitores mais jovens do PÚBLICO podem não acreditar, e de facto, olhando para 2020, ninguém diria, mas houve tempos em que a direita se esforçava por ser vista como não poeirenta. Quando cheguei aos blogues, as pessoas de direita tinham a azougada ambição de mostrar ao mundo que havia uma direita cosmopolita, que lia, viajava, escrevia, ia ao teatro e cinema, fugia a sete pés do salazarismo – juro!

A direita – entenda-se para estas linhas a parte mais à direita do PSD e tudo o resto até ao Chega –, por estes dias em que PS e Centeno lhe roubaram o único valor que permanecia (défice orçamental controlado), já não é a favor de nada. Só é contra. Furiosamente contra. Tudo o que tenha um leve aroma de posterior a 1959 é encarado com histeria e corridas para pôr os comprimidos da tensão arterial debaixo da língua.

A direita é contra as realidades perigosas que incomodam a vida à gente de manhã presa no trânsito ou nos transportes públicos, e que atrasam consultas no SNS: o marxismo cultural, o politicamente correto e a ideologia de género. São, como se sabe, as grandes causas da baixa produtividade nacional e dos baixos salários. Atormentam diariamente a vida das populações. Por isso a direita escolheu-os para as suas grandes causas. Fez muito bem. Temos de ver que são realidades abrangentes. Propor qualquer política que contrarie desigualdades e injustiças é politicamente correto. Promover a participação política de grupos tradicionalmente excluídos é politicamente correto. Já a ideologia de género, como se sabe, pretende transformar qualquer criança em gay e/ou transexual.

Falei no trânsito? A direita é contra o consenso científico das alterações climáticas. E contra facilitar a vida às populações e a mobilidade sustentável. Uma das medidas mais populares do Governo anterior – o embaratecimento dos passes sociais – desagradou à direita. (A Câmara de Cascais, do PSD, tem transportes intra concelhios gratuitos desde o início do ano. Grandes marxistas culturais.) O corajoso apoio de Assunção Cristas à primeira greve climática em frente à Assembleia da República (fotografou-se com o filho) foi vista como uma deriva esquerdista e prova (juntamente com a defesa das quotas) da desadequação para líder de direita.

A direita é contra o PREC. Já terminou há mais de quarenta anos, nem existe “geringonça”, mas os lados direitos imaginam-se resistindo de armas na mão a uma invasão comunista inexistente. Se à esquerda houve quem sempre fizesse render o peixe do Estado Novo, agora a direita que se preza não fica mais de uma semana sem referir o perigo do PREC. De resto, a direita vive em permanente estado de calamidade: é que estamos todos prestes, a minutos, de sermos engolidos pelo socialismo. No momento em que o debate internacional (presente até nos certamente marxistas The Economist ou Financial Times) anda à roda do capitalismo demasiado desregulado, gerando excessivas desigualdades, sobrepondo-se aos direitos humanos – há almas que vêem perigos no socialismo engavetado.

A minha preferida: a direita é contra o feminismo, invenção diabólica. Oh, o esforço que opinadores da direita fazem para mostrar o feminismo como o maior mal do mundo e promover o papel tradicional da mulher. Ensaios, crónicas, linhas compulsivas já foram escritas pelos ideólogos e opinadores à direita propondo dar cabo das perspetivas profissionais das mulheres para as obrigar a ir para casa produzir filhos (não, não foi Margaret Atwood em The Handmaid’s Tale), da liberdade ameaçada de uma mulher poder escolher ficar em casa tomando conta dos filhos (todos os dias existem manifestações pelas ruas contra essas escolhas – nas cabeças delirantes), de, claro, feminismo como expoente de marxismo cultural. Não são maluquinhos das redes sociais, são políticos e pessoas com acesso à comunicação social. De resto, temos três partidos claramente hostis a políticas que aumentem a representação feminina nos lugares de poder e decisão e a qualquer narrativa feminista: CDS, IL e Chega.

A direita é contra o ensino de História. Não só o episódio de Rui Tavares sobre a Exposição do Mundo Português no #EstudoEmCasa, mas também a nova disciplina de História, Culturas e Democracias para o 12.º ano. Li que era ideologia, lavagem cerebral e antipatriótica. Apesar de a disciplina conter no programa o PREC (esse mesmo), a Revolução Cultural Chinesa e os anos de Pol Pot como momentos traumáticos, ensinar História é definitivamente marxismo cultural.

Mas sou injusta. Há realidades de que a direita gosta. Gosta de negar que a extrema direita é extrema direita. O Vox (que tem elementos que protestaram pelas sentenças aos violadores do grupo La Manada vendo-as como torpedo à heterossexualidade e diktat das feministas) não é de extrema direita – asseverou Nuno Melo enquanto candidato ao Parlamento Europeu. Também há quem lave com detergente potente a imagem de André Ventura. Um candidato do PSD, cheio de vontade de perder votos, nas últimas primárias do partido admitia coligar-se com o dito. Nem refiro, por economia, a vergonha alheia que me toma quando vejo defesas, umas explícitas outras implícitas, de Trump e Bolsonaro.

Poderia continuar horas. A direita não adota estas guerras culturais sem objetivo. Está convencida de que por aqui vêm votos. Enquanto isso, a população, apesar de se entreter nas redes sociais a despejar ódio na tribo oposta, ocupa-se sobretudo com os ordenados ao fim do mês, o acesso à saúde e à educação, a mobilidade e os transportes, que planeta deixamos para os filhos, e gosta de concertos, festivais e até de teatro. Não quer que as filhas tenham as mesmas escassas oportunidades que as avós em 1950. Os mais novos têm como valores quase sagrados a preservação ambiental e questões de inclusão. As empresas desejam uma procura interna forte e estabilidade. Diria eu que os votos vão para quem dê soluções aos problemas em vez de se ocupar com diletantismos.

A estratégia de radicalizar a direita é tão bem-sucedida que anda, toda junta, por 35% das intenções de voto nas sondagens. A única pesquisa recente onde intenções de voto lhe deram mais, na globalidade, foi pelo crescimento no PSD – e Rui Rio sai destes esquemas todos. Donde, verifica-se, é uma estratégia ganhadora. A minha aposta é que a direita vá insistir nela.»

Maria João Marques