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sexta-feira, 5 de junho de 2020

Desafios de um vírus viajante

Posted: 04 Jun 2020 03:29 AM PDT

«O novo coronavírus viaja, por isso é fundamental saber com rapidez e precisão por onde ele anda. É uma das razões pelas quais os recentes surtos na região de Lisboa não podem ser debelados apenas com mais testagem. O teste é uma fotografia, válida no momento, mas não conta uma história e nada nos diz sobre o futuro. É útil, mas não chega.

Soube que está a ser desenvolvido em Porto Alegre, com tecnologias de comunicação e inteligência artificial, um modelo em quatro dimensões que mostra em tempo real a evolução da pandemia. O modelo é de adesão voluntária. Desconheço ferramentas destas em Portugal, mas sei que o seu uso tem sido imposto em países asiáticos. Creio, no entanto, que a alternativa, hoje, não é só entre regimes autoritários e regimes democráticos. É entre conhecimento com respeito pela cidadania, que não existe na China, e obscurantismo com regressão civilizacional, que está a explodir dramaticamente nos EUA e no Brasil.

Por enquanto, sabem-me a pouco as medidas postas em prática na grande Lisboa para fazer frente aos novos surtos. Não se iludam. O problema não é só do comportamento de (alguns) jovens. O problema é que o choque do coronavírus não é simétrico. Em Lisboa, nas primeiras semanas da crise, o contágio afectou sobretudo freguesias com uma população afluente que viajou nas férias de Carnaval. Com o estado de emergência e uma inteligente actuação da saúde pública, foi possível “achatar” a curva. Mais contraditória e difícil de gerir tem sido a retoma da actividade económica, social e cultural. Os casos começaram a subir em áreas com população mais pobre.

Economia e saúde pública não são antinómicas, mas só teremos uma retoma económica saudável se forem combatidas desigualdades estruturais: no acesso ao emprego com salário justo, nas condições habitacionais, na educação, no apoio aos mais novos e aos mais velhos, no combate às discriminações, no desenvolvimento científico, cultural e artístico, na protecção ambiental.

O plano de estabilização anunciado pelo Governo não pode ser apenas económico, tem de ter uma componente social forte. E não basta ouvir os parceiros sociais. Há largos sectores da sociedade portuguesa que não estão representados na chamada concertação social. Há medidas de fundo na área da habitação e da cultura que urgem.

Identificámos problemas graves nos lares de idosos e no aumento do desemprego. Não é altura de criarmos um forte sector empregador na área dos cuidados, valorizando qualificações, salários e instalações de apoio? Ou vamos continuar a forma como lidamos com a velhice, um feito demográfico extraordinário que afinal tratamos como se fosse um fardo social? Também sabemos que o “distanciamento social” é para manter (menos nos aviões, por escandalosa cedência europeia às companhias de aviação), mas como garanti-lo nos transportes públicos sem horários desfasados? Andamos a fechar cafés nos bairros pobres e culpamos os jovens, mas por que não demos já a máxima prioridade à retoma de actividades desportivas e criativas, tão importantes para essa faixa etária?

Podia continuar a exemplificar, mas o essencial é que a saída da pandemia seja um caminho rico de oportunidades e não uma porta aberta às desigualdades do costume. Não faltarão grandes resistências contra este caminho novo, mas este é o momento de o exigir.»

Helena Roseta

quinta-feira, 4 de junho de 2020

Caso Maddie renasceu 13 anos depois. Mas a miúda estará morta

Curto

Miguel Cadete

Miguel Cadete

Diretor-Adjunto

04 JUNHO 2020

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Bom dia!
13 anos e um mês depois de ter desaparecido sem deixar rasto de um apartamento na Praia da Luz, nos arredores de Lagos, Maddie McCann voltou a abrir os noticiários. A polícia britânica e a alemã anunciaram ontem que localizaram um novo suspeito. Trata-se de um alemão com 43 anos – na altura teria 30 – que está detido num estabelecimento prisional na Alemanha pela prática de outros crimes.
O mistério não fica, no entanto desvendado, pois a Metropolitan Police lançou um apelo generalizado ao público para que este forneça informação que, tudo leva a crer, poderá consubstanciar os indícios de que dispõe. Nesse sentido divulgou dois números de telemóveis que terão sido utilizados na fatídica noite de 3 de maio de 2007, pelo suspeito e por alguém que com ele terá contactado durante 30 minutos pouco antes do desaparecimento.
A polícia britânica acrescentou ainda que o suspeito utilizou dois veículos – uma autocaravana Volkswagen Westaffalia e um Jaguar – que já foram apreendidos e sobre os quais pretende recolher mais informação. Um dos veículos terá sido utilizado no sequestro, supondo-se que a autocaravana servia de habitação ao suspeito.
O diretor da polícia acrescentou ontem que o automóvel da marca Jaguar terá sido registado a 4 de maio, um dia depois do desaparecimento de Maddie McCann, no nome de um amigo do suspeito. A identidade do suspeito não foi revelada mas sabe-se que terá vivido em Portugal entre 1996 e 2007. “No passado, o suspeito já tinha sido condenado a pena privativa de liberdade, duas vezes por abuso sexual de crianças do sexo feminino”, adiantou o Departamento Federal da Polícia Criminal alemã.
Já a polícia germânica, pronunciou-se sobre o assunto em comunicado e num programa de TV da ZDF, “Crimewatch”, onde ofereceu uma recompensa de mais de 24 mil euros a quem entregar informação relevante capaz de incriminar o suspeito. Segundo as autoridades policiais alemãs, o sujeito vivia da prática de pequenos roubos em apartamentos no Algarve quando se deu o desaparecimento de Madeleine McCann, na altura à beira de completar quatro anos.

A Polícia Judiciária também está alinhada com as suas congéneres tendo emitido um comunicado ontem, antes das 20 horas, em que reproduzia as mesmas informações. O inspector germânico admitiu, ao contrário do britânico, que Maddie deverá estar morta, na sequência de um assalto que terá corrido mal. Essa informação não é corroborada pelos ingleses que assumem continuar a investigar o desaparecimento de uma criança. Relembre-se que Maddie estaria no apartamento com dois irmãos gémeos mais novos quando os pais jantavam na companhia de amigos num restaurante do resort Ocean Club.
Rogério Alves, que foi advogado dos progenitores de Maddie, admitiu ainda ontem, na SIC Notícias, já ter falado com o pai, revelando que se encontrava “expectante” face a esta nova pista.
No mesmo canal, Rui Gustavo, jornalista do Expresso, considerou as informações adiantadas ontem “muito relevantes” ainda que as polícias não disponham de toda a informação para incriminar o suspeito, sublinhando ainda o facto de o inspetor alemão estar inclinado para que Maddie esteja morta.
Já Carlos do Carmo, ex-coordenador da Polícia Judiciária, desvalorizou a nova pista, acrescentando que a polícia inglesa trabalha com um orçamento que permite pagar a informadores e que, dessa forma, “de vez em quando aparecem alguns suspeitos”. Frisou ainda que se mantém a importância da tese “portuguesa” que culpabiliza os pais de Maddie.

O Momento Chernobyl de Trump e Bolsonaro?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 02/06/2020)

Pode ser que Trump e Bolsonaro resistam, se conseguirem acumular a violência suficiente para submeterem os seus países. Não deixam de ser o que são, gente cuja mesquinhez não hesita perante a traição ao seu povo.


Não foi o acidente nuclear de Chernobyl, em 1986, que derrubou o regime soviético, que se viria a desagregar irreversivelmente com a queda do Muro, em 1989, e com o golpe militar, em 1991. O poder de Gorbachov, que já representava uma transição, fracassou cinco anos depois, no fim de um longo processo em que foi corroído por contradições internas, pelo esgotamento económico e pelo desgaste social, acentuado pela derrota na guerra do Afeganistão. O acidente foi somente um choque que se sobrepôs a essa exaustão. Mas, por isso, foi também um momento trágico que revelou a fragilidade do Kremlin, sobretudo pela tentativa de ocultação, pela revelação da impotência e pela impopularidade que multiplicou. O tempo de Chernobyl foi a mentira e a revelação da mentira e, com isso, o início do fim de uma era.

A pandemia pode ser o Momento Chernobyl da extrema-direita no poder em países poderosos, como os Estados Unidos ou o Brasil. O caso com maiores implicações internacionais será o de Trump que, nas suas deambulações justificativas e na verve desculpatória, revela uma obsessão pelo interesse económico de curto prazo contra a proteção das vidas. E aí entra o efeito Chernobyl: ele precisa de ocultar o desprezo pela população e, sobretudo, a sua calculista impotência perante a doença.

Ora, como estamos nas vésperas da eleição presidencial e as escolhas de Trump são sobredeterminadas pela campanha, sendo este efeito Chernobyl a maior ameaça à sua recondução, todas as suas estratégias assentarão paradoxalmente em multiplicar a chernobylização da política. Para ocultar a ocultação, ele só tem um instrumento poderoso, a poluição política. Nesse sentido, o Presidente soterra o espaço comunicacional com guerras sucessivas, primeiro contra a China, depois contra os médicos, a seguir contra os governadores democratas, depois contra o Twitter, agora contra os protestos antirracistas. A informação pública vive assim em modo de sobressalto, provocado pela técnica angustiante que mobiliza o pânico em modo contínuo. É esta a batuta da sociedade do medo. Ou seja, Trump quer radioativar-se para sobreviver ao seu Chernobyl e, por isso, se esta analogia ilustra o perigo, não contará necessariamente a conclusão da história, sendo que a extrema-direita quer sair mais forte da pandemia aterrorizando a sociedade e impondo o autoritarismo como o novo normal.

Bolsonaro repete a estratégia mas em registo de milícia carioca, como não podia deixar de ser. É a família e os seus negócios que estão em causa e entende que tudo se conjuga numa conspiração universal para revelar os seus podres. Nesse confronto, resta ao Presidente recuperar a tradição do mandonismo das elites brasileiras e de um coronelismo que parecia exilado em telenovelas de cordel, mas a coligação que o suporta, de empresários que esperam as privatizações do petróleo a deputados interesseiros e a neopentecostais iluminados, começa a fraquejar. Mais uma vez, é o efeito Chernobyl: ele ignora ou esconde o perigo, promovendo a irresponsabilidade sanitária com a desenvoltura de um garoto que fuma o primeiro cigarro, e esse impudor tem um custo reputacional.

Uma revista médica de referência, "The Lancet", publicou este 9 de maio um editorial defendendo uma política de saúde pública no Brasil contra as investidas do Presidente: “Ele deve mudar drasticamente a orientação ou ser o próximo a demitir-se.” O médico e editor da "Lancet", Richard Horton, explicou à "Folha de São Paulo" porque critica tão duramente a estratégia Chernobyl do Presidente: “A política criada por Bolsonaro pode ser chamada uma guerra contra a ciência, e ela colocou o Brasil numa situação de grande risco. O país está certamente mais fraco e vulnerável por conta disso. Em vinte anos da "Lancet", acompanhámos o desenvolvimento da ciência no Brasil como um dos grandes sucessos do país, com polos internacionais de excelência. Os cientistas brasileiros são líderes globais em muitos domínios, e esse é um recurso poderoso no qual um país deve apoiar-se para o bem da sua população. E é nada menos que uma tragédia que o Governo não reconheça, abrace e apoie essa comunidade. É por isso que chamo ao comportamento de Bolsonaro uma traição ao seu povo. E isso é imperdoável.”

A palavra não é excessiva. Este Chernobyl, como o anterior, chega-nos pelos caminhos do acidente, mas a resposta tornou-se uma traição. Pode ser que Trump e Bolsonaro resistam, se conseguirem acumular a violência suficiente para submeterem os seus países. Não deixam de ser o que são, gente cuja mesquinhez não hesita perante a traição ao seu povo.

quarta-feira, 3 de junho de 2020

Trump não é responsável pelo caos. Trump é o caos

rump não é responsável pelo caos. Trump é o caos

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/06/2020)

Daniel Oliveira

É evidente que nada do que está a acontecer nos Estados Unidos é obra de Trump. Não é por causa de Trump que os EUA são uma panela de pressão, sempre à beira de rebentar numa orgia de violência. Não foi Donald Trump que escreveu uma história marcada pela escravatura, que se prolongou na restrição de direitos cívicos até meados do século passado e foi subsistida por uma política penal que criminaliza a comunidade negra. Não foi Donald Trump que criou a ideia de que a melhor forma de uma sociedade se defender é deixar que todos tenham armas, transformando o trabalho das forças de segurança uma caminhada pelo fio da navalha.

Também não foi Donald Trump que fez dos EUA um dos países mais desiguais do mundo desenvolvido. E onde essa desigualdade, contrariando o mito da mobilidade social, é incrivelmente persistente e hereditária. O sonho americano é na Suécia, não é seguramente nos EUA, ouvi uma vez alguém dizer. Não foi Donald Trump que decidiu que uma tragédia como esta pandemia se tem de viver sem serviço nacional de saúde público, gratuito e universal, sem proteção no desemprego, sem os mínimos de segurança. Não foi por causa de Donald Trump que se abriram valas comuns em Nova Iorque. Não foi por causa de Donald Trump que se fizeram filas para a compra de armas. Não foi Donald Trump que criou brutais bolsas de miséria que transformam boas partes dos Estados Unidos em países de terceiro mundo. Não foi Donald Trump que criou a cultura de violência que domina a vida social, cultural e política dos EUA. Em resumo: Trump não é a causa do que vemos, é a consequência.

Tenho um fascínio por tudo o que é dinâmico, contraditório e brutal nos EUA. Não partilho a arrogância europeia para com o novo mundo. Pelo contrário, acho o estilo afetado, aristocrata e altivo dos europeus profundamente maçador. Entusiasma-me bem mais o pioneiro, o emigrante e o refugiado do que colono saudoso do império perdido. Mas sei o que sabemos todos: que enquanto não enfrentarem a sua pornográfica desigualdade os EUA estão condenados ao motim cíclico. E que, em tudo isto, a questão racial é constitutiva da desigualdade estrutural que os domina. Tão profunda que é estranho que haja quem tenha acreditado que a eleição de um presidente negro anunciava uma América pós-racial.

Se não foi Trump que fez nada disto, porque se fala tanto de Trump? Porque Trump explorou o ódio racial para se fazer eleger. Porque deu todos os sinais de impunidade para que a violência policial e o racismo se sentissem livres. Porque se alimentou e se alimenta da violência social e cultural, da incomunicabilidade, da desumanização do outro. Porque mesmo com o país a ferro e fogo, é isso que continua a fazer. Trump vive do conflito. E não do conflito revolucionário, com projeto ou construtivo, de onde nascem sínteses que mudam as sociedades para melhor ou para pior. De um conflito regressivo, que bloqueia qualquer solução.

Trump não colocou os Estados Unidos no beco sem saída em que parecem estar. Trump é o beco sem saída. É a consequência de uma democracia que não se regenerou e não respondeu à injustiça. E escusam os que procuram uma desculpa para o voto irresponsável vir dizer que é um grito de revolta. Esse grito está do lado dos que o combatem. Ele precisa deste beco sem saída porque o impasse é tudo o que tem para oferecer.

Trump não é responsável pelo pé no pescoço de George Floyd. Trump é o pé no pescoço de George Floyd. Cada palavra sua sufoca a América no ódio que sempre lá esteve. Trump não é responsável pelo motim. Trump depende do motim. Porque ele vive do caos. Só no meio do desespero e do ódio as coisas que ele diz podem ser ditas. Só no meio do caos ele pode existir sem ser aberrante.

A procissão europeia ainda vai no adro

Posted: 02 Jun 2020 03:51 AM PDT

«Desta vez a União Europeia não pode seguir a sua própria doutrina nem aplicar as receitas que criou. As regras europeias - da proibição aos estados de investir em empresas nacionais aos múltiplos constrangimentos orçamentais - afundariam a Europa e por isso foram suspensas.

A perspetiva de uma derrocada descontrolada das economias italiana e espanhola parece mesmo ter conseguido arrancar uma proposta à Comissão Europeia e as notícias multiplicam os biliões que a Europa irá entregar "sem condicionalidade", ou seja, sem austeridade. Mas será mesmo assim?

Quase metade dos 2,4 biliões (milhões de milhões) anunciados para salvar a Europa, já eram os fundos previstos no Quadro Financeiro de Apoio negociado após o Brexit e que, por sinal, penalizava bastante Portugal. Depois, há 540 mil milhões que vêm do pacote apresentado pelo Eurogrupo: são duas linhas de empréstimos, ou seja, mais dívida, sendo que uma delas foi até rejeitada pelo Estado português.

Temos, finalmente, os 750 mil milhões apresentados como "Nova Geração UE". Desses, 250 mil milhões são mais dívida e 60 mil milhões são garantias. Sobram os 440 mil milhões que interessa, porque são a fundo perdido. Parece muito mas representa, para toda a UE, metade do que a Alemanha anunciou para investir na sua economia. O plano é que a UE emita dívida própria no valor dos apoios a fundo perdido, dívida que depois será paga com impostos a lançar a nível europeu. Mas não sabemos se haverá consenso para isso. E se não houver? Nesse caso, segundo a presidente da Comissão, esse valor será cortado dos orçamentos europeus futuros, ou seja, é como se fosse dívida dos países.

De resto, duas outras dúvidas assombram este plano. O financiamento obrigará à negociação de um pacote de medidas com Bruxelas. Quais? Não sabemos. Por outro lado, este programa não impedirá o aumento generalizado das dívidas públicas. E quando a suspensão acabar, sabemos o que dizem as regras: dívida é austeridade.

Devemos então simplesmente confiar no instinto de sobrevivência do establishment europeu e da sua poderosa burocracia? Sabemos como a austeridade é um alicerce bem enterrado na estrutura ideológica de Bruxelas. E isto sem falar nos outros governos, alguns da família socialista europeia, como o da Suécia e da Dinamarca, que não farão a vida fácil aos "preguiçosos do Sul".

Sim, face ao currículo vergonhoso da UE, o programa é inédito. Mas isso não faz dele um bom programa. A verdade é que a procissão ainda vai no adro e não sabemos para onde levará. Fizeram bem, por isso, os governos italiano e espanhol que não desistem de lutar por melhores condições e mais garantias. Fez mal António Costa em declarar já que a proposta "está à altura do desafio que a Europa enfrenta".»

Mariana Mortágua