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quinta-feira, 11 de junho de 2020

Carta aberta ao Presidente da República

por estatuadesal

(Sérgio Tréfaut, in Público, 09/06/2020)

Bolsonaro saúda um grupo de apoiantes em Brasília, 31 de Maio

Dizem os políticos que Portugal e o Brasil são países irmãos. Marcelo Rebelo de Sousa aprecia esta figura retórica. Mas chegou o momento em que é necessário decidir de que país Portugal é irmão. Do Brasil que está a matar? Ou do Brasil que está a morrer? O que se passa no Brasil hoje é mais grave do que um crime de Estado.

Desde o final de março, das janelas da minha casa no Rio de Janeiro, ouvi todos os dias gritar: “Bolsonaro genocida!” Porquê gritam assim os vizinhos à janela? Porque vários genocídios invadiram suas vidas.

O primeiro é um genocídio de populações indígenas, denunciado no Tribunal de Haia em 2019, e denunciado também por Sebastião Salgado. A indiferença de Bolsonaro ao extermínio dos índios tornou-se óbvia no vídeo da reunião de 22 de abril, divulgado a pedido de Sérgio Moro.

Nessa reunião de ministros, vemos o ministro do Meio Ambiente definir a atual epidemia como uma oportunidade para fazer passar as leis (ilegais) de desmatamento da Amazônia, o que significa quase o fim dos índios. Sabemos que 90% das populações indígenas morreram no século XVI de doenças como a varíola, levadas por europeus. O governo brasileiro pretende agora que os índios que restam morram de covid. O ministro do Ambiente representa bem os valores do governo Bolsonaro.

A segunda forma de genocídio praticada no Brasil de hoje é a mais mortífera. Trata-se do negacionismo face à pandemia.

Desde março, Bolsonaro insultou as televisões por divulgarem as mortes na Itália: o Brasil nunca viveria aquilo. Hoje Bolsonaro esconde o número de mortos. Este negacionismo é o espelho da sua política. “O Brasil não pode parar”, afirmava Bolsonaro, apoiado pelos grandes industriais.

Os dois ministros da Saúde que tentaram defender o confinamento foram despedidos ou forçados a sair. Aliás, o negacionismo mais criminoso é o do Ministério da Saúde. Como se tratava de uma “gripezinha”, houve uma ausência total de plano para enfrentar a pandemia. Falta de testes, falta de material de proteção, falta de camas, falta de ventiladores, falta de tudo. Em números absolutos, Portugal fez mais testes à covid-19 do que o Brasil, com 210 milhões de habitantes.

Curiosamente, durante a epidemia de dengue de 2008 (174 mortos), o Governo de Brasília, com o apoio das Forças Armadas, montou três hospitais de campanha no Rio de Janeiro e salvou vidas. Face ao coronavírus, o Governo Federal negou a importância do perigo. Não ponderou um instante sobre a necessidade de cordões sanitários para proteger aldeias indígenas, ou para proteger áreas urbanas sobrepovoadas, onde o confinamento seria impossível por falta de condições. Tudo foi lançado para os governadores, não por uma visão descentralizadora, mas em forma de ataque. Assim Brasília culpou os estados pela crise sanitária e pela crise económica.

Bolsonaro e os seus filhos defenderam uma política eugenista, de cariz hitleriana: “É velho? É doente? Tem mesmo que morrer.” “É a lei da vida.” Frases como esta foram repetidas até a exaustão. São dez mil mortos? "E daí?”

Pela falta de cuidados, o Brasil tornou-se o país com maior número de enfermeiros mortos por covid. Agora será o país com maior número de mortes do mundo. Não fazer face à pandemia, optar por 100 mil mortos em vez de 10 mil em nome da economia, o que é senão um crime de Estado?

O clã Bolsonaro lançou milícias anti-confinamento, com manifestações ilegais nas ruas. Assim, vários militantes anti-confinamento morreram de covid. Mas agora, com mais de mil mortes diárias, as manifestações já não são necessárias. Governos e prefeituras cederam a Bolsonaro, abrindo praias e comércio.

O que pensariam os portugueses se, durante o confinamento, Marcelo Rebelo de Sousa lutasse contra as normas do Ministério da Saúde, reunindo multidões em passeatas anti-confinamento? Em Portugal, imagino que o Presidente seria impedido, ou preso. Não é o caso no Brasil. Bolsonaro está acima da lei. E o genocídio no Brasil não se limita à covid.

Existe um genocídio diário levado a cabo pela polícia nas favelas. Os Estados Unidos mobilizaram-se agora com o assassinato de George Floyd. “Black lives matter” conquistou o mundo.

Se o assassinato de George Floyd tivesse ocorrido no Brasil, a polícia teria dado um tiro na cabeça da adolescente de 17 anos que estava a filmar, como faz todos os dias. Ninguém saberia. Esta é a banalização da impunidade policial validada por Bolsonaro. No ano de 2019, só no Rio de Janeiro, a polícia foi responsável por 1814 assassinatos, ou seja, cinco mortos por dia.

A polícia entra nas favelas e mata sem receio da lei. Nenhum polícia precisa de prestar contas dessas mortes. Bolsonaro assina por baixo: “Bandido bom é bandido morto.” Sem julgamento. Sem provas. Raras vezes um caso ganha destaque. Por exemplo, quando, no dia 18 de maio, João Pedro, 14 anos, brincava com amigos em casa e foi morto pela polícia. Dias antes tinham sido encontrados 12 corpos com marcas de tortura policial. Nenhum polícia foi detido. Nas favelas denuncia-se o genocídio negro. Mas ninguém ouve.

À banalização do crime acresce a liberação por Bolsonaro da venda de armas a civis, armas que eram de uso exclusivo dos militares. A imprensa diz que Bolsonaro aposta numa guerra civil. Aqui chegamos ao extermínio da própria democracia.

O que Portugal tem a ver com isto? Tudo.

No dia 1 de janeiro de 2019, há pouco mais de um ano, Marcelo Rebelo de Sousa era a estrela internacional da tomada de posse de Bolsonaro. Angela Merkel, Theresa May, Emmanuel Macron não foram à cerimónia, apesar de convidados. Os dirigentes da direita europeia tomavam uma posição distante face a um novo Presidente do Brasil, com um conhecido desprezo pela democracia.

Os únicos chefes de Estado europeus eram Marcelo e Viktor Orbán, primeiro-ministro húngaro, cujas declarações sobre ciganos parecem extraídas de compêndios nazis. O ministro dos Negócios Estrangeiros português também não esteve presente, mas, sendo quem é, bem poderia ter estado. Quanto a Marcelo, pode ser acusado de tudo o que quiserem, mas não pode ser acusado de ser mal informado. Por isso, o seu silêncio à data de hoje é preocupante.

Marcelo terá visionado a criminosa reunião de ministros de 22 de abril, chefiada por Bolsonaro, vulgo covil dos infames. Pode ser que outros presidentes do mundo não compreendam o que foi dito nessa reunião. Marcelo compreende.

Marcelo também sabe que Bolsonaro fez ameaças de morte aos membros do Supremo Tribunal Federal.

Marcelo sabe que Bolsonaro falou em manifestações que pediam uma ditadura militar e o encerramento do Congresso. Sabe que em nenhum país democrático um cidadão poderia sequer se candidatar às eleições presidenciais tendo feito a apologia da tortura e lamentando os poucos mortos de um regime ditatorial. Marcelo recebe informações sobre a impunidade da polícia no Brasil. Cinco George Floyd por dia. Marcelo sabe que Bolsonaro luta pelo descrédito da democracia. E que contra ele existem mais de 30 pedidos de impeachment. Quem cala, consente.

O que poderia fazer o Presidente da República? Poderia muito. Poderia liderar um movimento de pressão internacional. Poderia e deveria convocar o embaixador do Brasil e pedir explicações – nem que seja considerando a comunidade portuguesa no Brasil. A diplomacia não é apenas um entreposto para vender vinhos e azeite.

Além do Presidente, através do seu governo e dos seus deputados, Portugal pode apresentar moções condenatórias no Parlamento Europeu, no Conselho da Europa, na ONU.

Isto seria próprio de um país irmão.

terça-feira, 9 de junho de 2020

Diga-me, Dr. Rio, onde é que não vê o racismo?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 09/06/2020)

Um deputado avisou, feliz, que ia proferir a mais racista de todas as frases da história do Parlamento, e lá perorou alguma coisa sobre distritos em que vivem ciganos. É uma forma de política que se repete enfadonhamente, a frase mais racista é sempre menos do que a seguinte frase mais racista e a pândega continua por aí fora. O homem já pediu uma lei especial para perseguir os seus ódios de estimação e assim continuará, é fácil e dá milhões.


Rui Rio, que se rebaixa a correr atrás do que lhe parece ser o prejuízo, vai mais longe, não há racismo em Portugal. Não sei se é só ingenuidade ou um episódio agudo de cheguismo que lhe passará depressa, desejo as melhoras. A pergunta talvez seja então se há contas desse racismo.

No "New York Times", que é inocente a respeito destas nossas questões, foi sugerida uma resposta por Nicholas Kristof, mas para os Estados Unidos. O comentador cita dados estatísticos do seu país a respeito de diferenças regionais: um jovem negro do Alabama ou do Mississippi, ou de outros Estados do sul, tem menor esperança de vida que um jovem do Bangladesh.

O "Financial Times" desta terça-feira lembra que estes dois Estados recusaram o modesto sistema do Obamacare, que procurava garantir um seguro de saúde para toda a gente (a percentagem da população negra sem qualquer proteção de saúde é o dobro da branca).

Há mesmo regiões onde a vida é um abismo. Mas sabe-se mais. No conjunto do país uma mulher negra tem uma probabilidade duas vezes e meia maior de morrer no parto do que uma mulher branca. Na atual pandemia, a taxa de mortalidade das pessoas afrodescendentes é 2,6 vezes maior do que a do resto da população. No emprego, mais um problema: nem metade da população negra tem trabalho.

Em Minneapolis, onde foi assassinado George Floyd, o rendimento das famílias negras é metade do das brancas. E são as pessoas negras que asseguram alguns dos serviços essenciais: nos transportes, cuidados de crianças, saúde e correios, a população negra está em muito mais postos de trabalho do que o que equivale à sua percentagem no país (13%). Outros dados demonstram que tem havido alguma mudança. Assim, em 1970, 47% dos afrodescendentes nos EUA eram pobres, agora serão 27%, mas ainda assim trata-se do triplo da média da população branca. Há mesmo diferenças nas condições essenciais da vida e elas permitem perceber o contexto da tensão e do protesto.

Em Portugal, é simples, não sabemos. Conhecem-se incidentes, desigualdade na habitação, diferenças nas carreiras profissionais, insultos em estádios de futebol e a vida ainda mais difícil para tantas pessoas. Mas números não sabemos. Apesar da sugestão de várias associações, as autoridades estatísticas não aceitaram incluir o registo pelas próprias pessoas, querendo, da sua origem étnica, o que permitiria conhecer alguma da realidade das diferenças.

Não sabemos qual é o peso da desigualdade no trabalho, na habitação, no sucesso escolar, na saúde. Estamos de olhos fechados. É cómodo mas não permite conhecer a verdade dos factos. E facilita o brinde de Rio com Ventura.

Somos todos loucos aqui

por estatuadesal

(Pedro Santos Guerreiro, in Expresso Diário, 06/06/2020)

Pedro Santos Guerreiro

Se não sabes para onde vais, não interessa que caminho escolhes, respondeu a Alice o gato das garras grandes e muitos dentes. António Costa e Silva é o gato de Cheshire do Governo: o primeiro-ministro pediu-lhe um plano de futuro, o que signi­fica que não tem plano nenhum. Haveremos de chegar a algum lado, diria António Costa... desde que caminhemos o suficiente para lá chegar.

A questão essencial não é se Costa e Silva é um bom nome (porque é) nem se é bom consultar independentes (também é). Costa e Silva não é um tiro no pé, mas pode ser um tiro para o ar, se o seu plano ficar no pó da prateleira das ideias impraticáveis ou se um dia destes cair da cama do desejado, bastará uma frase errada numa das demasiadas entrevistas que está a dar e o céu vira-se do avesso para o chão da política real. Mas mesmo que este tiro de Costa seja um tirocínio para Costa e Silva ser ministro do Planeamento, a questão essencial ainda é outra. É isto revelar não só que o Governo não se lembrou do futuro no início da pandemia como não encontra no Estado (não no Governo, no Estado) a capacidade de planea­mento, prospetiva e estratégia sem a qual Governo nenhum será mais do que Alice à deriva num Mundo das Maravilhas.

Quando, em abril, o primeiro-ministro reuniu 25 economistas para discutir o futuro, fiquei pasmado. Só agora? Mas até aquele agora foi o vazio: vários dos 25 relataram a animação de um encontro de nada, só improvisação e inconsequência.

Num Governo há três meses em emergência, os ministros não têm tempo nem para dormir, quanto mais pensar. Isso é natural. O que não é normal é não ter sido criada logo no início uma equipa de maduros estudiosos que ficassem confinados nas sebentas para municiar o Governo dali a uns meses, isto é, agora. Pior, tudo isto confirma que a Administração Pública foi lobotomizada. E isso explica tanta coisa, tantas estradas, tantos incêndios, tão pouca agricultura, tão pouco interior, tanta improvisação na justiça, na educação e saúde, tanto nada, tão pouco muito.

Os ministros são até vítimas. Um Governo tem de tomar decisões políticas com base em informação técnica, o resto é palpite e teste à sorte de um instinto. A decapitação da Administração Pública (acelerada com Sócrates e concluída com Passos) desprezou o pensamento. Onde estão os gabinetes de estudos do Estado? Onde está, aliás, a academia, que brilhou na pandemia na Ciência e na Saúde, mas na Economia foi dispensada do lugar do pensamento para a pantalha do comentário?

Só a informação esclarece e só o conhecimento transformado em pensamento alumia. A Alemanha está hoje a debater um plano de transformação radical da política económica, para indústrias de tecnologia e ciência avançadas, com mais Estado e protecionismo, para criar campeões que façam encosto de ombro à China e aos EUA. Não interessa discutir neste texto se esse é o caminho certo, interessa observar que há um caminho. E nós?

Portugal já teve um Ministério do Planeamento e gabinetes de estratégia a sério. Era o caso, entre outros, do Departamento de Prospetiva e Planeamento e Relações Internacionais, órgão com o nome mais chato do mundo, cheio de pessoas chatas, que faziam relatórios chatos que poucos liam. Lia quem precisava: os Governos que decidiam. Um desses chatos era José Manuel Félix Ribeiro. Se procurarmos agora um desses estudos, até encontramos uns relatórios recentes chatos, tão chatos como deslumbrantes, feitos para a Gulbenkian e para as Áreas Metropolitanas de Lisboa e Porto por mulheres e homens chatos como... José Manuel Félix Ribeiro.

Desejo-nos sorte. Pedir um plano em meia dúzia de semanas, por melhor que ele e o seu autor sejam, é só isto: estamos a improvisar. Fazemo-lo há anos. Por isso seguimos à risca o que nos mandam, seja a troika antes ou a UE a seguir. Se não pensamos, compramos feito e metemos o pré-congelado no micro-ondas. Um país que delega a estratégia noutros será sempre um país com a estratégia de outros. Sejam eles lúcidos ou loucos. Ou, como diz o gato, “somos todos loucos aqui”.

Um país de vidas seguras

Posted: 08 Jun 2020 03:31 AM PDT

«Diante da ameaça da doença e diante da ameaça da desumanização da resposta, eu vi um povo determinado a não se deixar derrotar nem por uma nem pela outra. Vi um povo extraordinário que soube respeitar a distância física sem nunca quebrar laços de solidariedade social. Vi um povo que soube contrapor à lógica que alguns quiseram que fosse “de guerra”, a lógica do cuidado e fazer dele o centro da vida e o centro da política. Não podemos desperdiçar o que o povo nos ensinou.

Sim, o cuidado – cuidado intensivo, por tanta gente praticado – foi o melhor que experimentámos nestes dias de pandemia. Foi ele que defendeu a nossa humanidade. Ele foi atitude e foi política. Na primeira linha da proteção – do cuidado – de todos, estiveram o Serviço Nacional de Saúde e a Segurança Social.

O mundo dos negócios, sempre ávido de juntar lucro ao lucro, mostrou a sua imensa fragilidade e o imenso vazio da sua resposta à necessidade de segurança das pessoas. Quando o hospital público acolheu as pessoas doentes com competência e com disponibilidade sem fim dos seus profissionais, os grupos privados dividiram-se entre fechar as portas e fixar a conta de milhões a cobrar ao Estado para tratar as pessoas. Quando os despedimentos e a redução dos salários foram trazidos de volta como suposta inevitabilidade, foi a Segurança Social que se assumiu como garante do rendimento dos trabalhadores e da manutenção das pequenas empresas.

Sei bem que as respostas não chegaram a todas as pessoas. As vidas que já estavam comprometidas por baixos salários e pensões sofreram mais com esta crise. Sofreram, desde logo, com o aumento da precariedade, com a privatização ou o desinvestimento nos serviços públicos ou com a invisibilidade quase permanente. É o caso de cuidadores informais, pessoas com deficiência, daqueles para quem o rendimento era já curto ou de outros setores socialmente vulneráveis. Sem um caminho de transformações estruturais, limitados a medidas paliativas, Portugal verá reforçadas as desigualdades sociais existentes.

Depois da crise sanitária, o país deve devolver força e justiça ao mundo do trabalho. A pandemia está a ser pretexto para, novamente, empobrecer quem vive do seu trabalho e diminuir direitos. A limitada recuperação de rendimentos operada nos últimos cinco anos nunca agradou aos adeptos da competitividade alicerçada nos baixos custos do trabalho. Esses setores vêm a pandemia como oportunidade para reverter o caminho feito nos últimos anos contra esse programa. O programa de recuperação de que o país precisa tem, ao contrário, que barrar caminho ao descarte de trabalhadores e ao trabalho precário e tem que garantir salários motivadores e pensões que criem horizontes de vida dignos. Precisamos, por tudo isto, de um compromisso para a cobertura universal da protecção social, a promoção do trabalho com direitos e a criação de emprego.

Depois da crise sanitária, é estratégico para o país reforçar os serviços públicos, o seu alcance universal e a sua qualidade. À cabeça de todos, o Serviço Nacional de Saúde, lugar maior da nossa democracia. Contra os que querem deixá-lo refém dos privados, os mesmos que faltaram ao país quando se lhes exigiu um mínimo de sacrifício, eu assumo o reforço do Serviço Nacional de Saúde – em profissionais, meios técnicos, autonomia de gestão, recursos financeiros – como primeiro garante da segurança de todos e do cuidado com todos. Devemos investir no cuidado, respondendo às necessidades de longa duração e de apoio domiciliário.

A resposta de saúde deve ser articulada com as respostas social e ambiental. Os países que não souberem apostar nessa articulação, perderão em cada um dos três domínios. A crise pandémica evidenciou a necessidade de uma alteração estrutural dos padrões de mobilidade. Não podemos voltar atrás. Investimento público em transportes, transição energética, redução da dependência externa pelo reforço da produção local e pela redução das cadeias de distribuição são alguns dos desafios estratégicos que temos pela frente.

Esperar que tudo se solucione com um modelo económico já conhecidos ou na expectativa de que os fundos que vierem da União Europeia façam milagres é adiar o futuro sem perceber a fundo o impacto desta crise nas nossas vidas. Sem mudança de modelo, voltaremos a deixar para trás aqueles que são sempre sacrificados em tempos de crise.

A energia de um país solidário é a que me move e aquela por que lutarei nos próximos meses. Julgo que, sob a crise sanitária, compreendemos que o nosso desafio coletivo é o de sermos um país em que todos tenham vidas seguras. A pandemia ensinou-nos que os bens essenciais do país são o trabalho e os serviços públicos. É neles que temos que investir como pilares da segurança de todos.

O futuro começa a decidir-se agora. E as escolhas deste ano e do próximo ano vão determinar o país que teremos. À elite económica e social que faz da desigualdade a sua política, respondo com a universalidade do Estado social, com a solidariedade e a repartição da riqueza, com a luta por justiça climática e justiça social. A esquerda dirá presente a este desafio.»

Marisa Matias

segunda-feira, 8 de junho de 2020

EUA: Protestos no país que não consegue respirar

A morte de George Floyd voltou a despertar os Estados Unidos para o combate ao racismo e à brutalidade policial. A extrema-direita que ocupa a Casa Branca ameaça com a repressão militar dos manifestantes e a criminalização dos antifascistas. Dossier organizado por Luís Branco.

6 de Junho, 2020 - 22:01h


A morte de George Floyd por asfixia provocada pelo joelho de um agente policial, enquanto a vítima gritava “Não consigo respirar” chocou o mundo e abriu caminho a uma vaga de protestos num dos países mais afetados pela pandemia e pelo desemprego que ela provocou em poucas semanas. Protestos que vieram retomar o movimento Black Lives Matter, cuja origem e percurso resumimos neste dossier.

Os protestos tomaram conta das ruas de várias cidades e a repressão policial não se fez esperar, desta vez alimentada e instigada pelo próprio chefe de Estado, que viu aqui uma oportunidade para avançar na sua agenda autoritária e desviar a atenção do fracasso criminoso da sua estratégia de contenção do vírus.

Reunimos neste dossier alguns artigos que refletem temas em debate na esquerda norte-americana ao fim dos primeiros dias de manifestações e ameaças da Casa Branca. Um desses debates é o do papel da polícia nas sociedades democráticas e as consequências do processo de militarização a que foi sujeita nas últimas décadas. O ex-agente da polícia de Boston e atual professor universitário Tom Nolan diz que as formação dos polícias em técnicas de “desescalada”, um dos objetivos da estratégia proposta após um caso semelhante em Ferguson, em 2014, não foi seguida. Enquanto isso, estudos apontam que quanto maior é o investimento em equipamento de categoria militar, maior é a probabilidade de virem a morrer civis no decurso de operações policiais.

Também por isso, uma proposta que tem vindo a ganhar terreno é a que defende o corte nas verbas para a polícia. Um dos seus defensores é o sociólogo Alex Vitale, que explica nesta entrevista que é necessário substituir boa parte das atuais tarefas policiais por outras respostas públicas para assim evitar o encarceramento e a criminalização em massa. Por seu lado, a jornalista Joan Walsh destaca a proximidade política entre Donald Trump e alguns líderes dos sindicatos policiais que não escondem o seu racismo e desprezo pelos direitos humanos.

Mas a resposta autoritária de Trump é um indício que o fascismo está a tomar conta do poder político dos EUA? O jornalista Adam Weinstein responde afirmativamente e diz que é altura de considerar o que os fascistas podem ainda fazer, durante uma pandemia sem precedentes, no meio de um desemprego sem precedentes, confrontados com uma resistência sem precedentes antes de uma eleição sem precedentes. Lembrando os tempos em que era agitado o papão da “Ameaça Vermelha” durante a Guerra Fria, o jornalista Chip Gibbons faz o paralelo com a “histeris antifa” de Donald Trump, que recupera uma teoria da conspiração da extrema-direita para tentar reprimir a dissidência.

Também o filósofo e ativista dos direitos civis Cornel West sublinha o contraste entre a resposta da polícia a estas manifestações e face aos provocadores de direita que aparecem dentro e fora das sedes estaduais com armas e munições carregadas. E fala dos sintomas de uma classe política decadente, marcada pelo duopólio de um crescente partido republicano neofascista liderado por Donald Trump e de um partido neoliberal democrata liderado por Joe Biden.

Porfim, incluimos também a opinião da deputada bloquista Beatriz Gomes Dias, para quem "é essencial que esta enorme vaga de indignação e mobilização por justiça se traduza em mudanças reais e profundas, tão profundas como as causas do racismo que esteve na origem deste e de tantos outros crimes. Quando a indignação por este caso esmorecer, não pode esmorecer com ela a luta contra o racismo e pela transformação das estruturas, instituições e processos que o suportam".