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segunda-feira, 22 de junho de 2020

Não podem estar bons da cabeça

por estatuadesal

(Luís Aguiar-Conraria, in Expresso Diário, 21/06/2020)

Esta semana, o assunto natural seria o Orçamento do Estado. Porém, do Palácio de Belém veio outro magno assunto: Lisboa vai ser palco de sete jogos de futebol. As imagens que de lá nos chegaram esclareceram o mistério do paradeiro do ministro da Educação.

Por toda a Europa, gizam-se planos e estratégias para a retoma das aulas. Em muitos países, as aulas já funcionam. Encontraram-se várias soluções. Nuns países, são ao ar livre; noutros, são em dias alternados; há ainda os que recorreram às universidades e estádios de futebol. No caso de França, as aulas funcionarão em pleno já a partir de segunda-feira. Uma preocupação constante é, obviamente, a de recuperar os alunos que ficaram para trás. Como escreve Susana Peralta no “Público”, em Inglaterra haverá programas de recuperação no verão e já se anunciou um plano de contratação de explicadores para os alunos mais atrasados. Na Bélgica, as aulas recomeçaram para os que em fevereiro mostravam ter mais dificuldades.

E em Portugal?! Nada. Na semana passada, o Conselho de Ministros aprovou um Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) sem uma linha sobre retorno às aulas. Aprovou-se um Orçamento sem uma linha dedicada ao reforço de recursos humanos nas escolas, que facilitassem a transição e ajudassem estudantes que precisem. O diretor de turma da minha filha nem sabe se, em setembro, as aulas serão presenciais ou não. Como diz Susana Peralta, o ministro da Educação finge que nada disto é com ele. O que já é do domínio do ministro é dar uma prenda aos profissionais de saúde portugueses. E que prenda!: garantir que a Final Eight da principal competição de futebol da UEFA se realiza em Lisboa. Vemos na fotografia que ilustra o artigo como Tiago Brandão Rodrigues estava empenhado nesta magnífica oferenda. É como se, em vez de um ministro da Educação, tivéssemos um organizador de eventos, provavelmente na dependência orgânica da Secretaria de Estado do Turismo (porque organizar o evento da abertura das escolas parece que não).

A hipótese de não haver ninguém a trabalhar no Ministério da Educação ganhou consistência quando a minha mulher me disse que as escolas estavam a pedir aos alunos que devolvessem os manuais escolares. Vamos lá ver. Este ano as aulas só funcionaram no 1º período e numa parte do segundo e há dezenas de milhares de alunos sem apoio dos professores. É capaz de ser um pouco óbvio que os alunos vão precisar dos manuais durante as férias. Pelo menos os que quiserem estudar. Mesmo que não estudem, no próximo ano letivo, os professores terão de cobrir parte da matéria que ficou por dar este ano. Portanto, pensei que as escolas estivessem simplesmente a aplicar os procedimentos dos anos anteriores, sem terem sequer refletido no assunto. Não liguei muito e disse à minha mulher que ficasse tranquila, que era engano e que a nossa filha não devolveria manuais nenhuns.

Mas não ficou tranquila. Teimosa, insistiu que havia um despacho exigindo a devolução dos livros. E mandou-mo. Não é que há mesmo um despacho?! Foi assinado a 9 de junho, pela secretária de Estado da Educação, Susana de Fátima Carvalho Amador, publicado a 16 de junho, e diz que os manuais têm de ser devolvidos até 14 de julho.

Não se trata de esquecimento. Num ano no qual a escola não funcionou durante mais de um período e em que dezenas de milhares de alunos perderam o contacto com os professores, há mesmo alguém na equipa do ministro da Educação que considera que os alunos têm as matérias consolidadas e não precisam mais dos manuais escolares. Imagino que, no próximo ano letivo, quando os professores quiserem ensinar a matéria que ficou para trás, os alunos deverão procurá-la na internet. Se calhar é por isso que os 400 milhões previstos no PEES para a Educação estão destinados à Escola Digital.

Lamento, mas a incompetência não explica tudo. Simplesmente, naquele ministério, não podem estar bons da cabeça.

Professor de Economia da Univ. do Minho

Três tristes tigres

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João Cândido da Silva

João Cândido da Silva

Coordenador do Expresso Online

22 JUNHO 2020

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Bom dia,
Podia ter sido apenas ridículo, provinciano ou disparatado, mas foi pior. Muito pior. A cerimónia que reuniu as mais altas figuras do Estado português com o objectivo de anunciar a realização, em Lisboa, dos jogos de futebol da fase final da Liga dos Campeões dificilmente teria boas razões para acontecer. Daria sempre, como deu noutras ocasiões semelhantes, um sinal de subalternização do poder político em relação a um grupo de pressão pouco transparente e com tendência para servir de terreno onde se jogam influências e se trocam favores e apoios. O facto de ter acontecido no quadro de uma pandemia que está longe de ter sido debelada só tornou o evento mais lamentável.
Uma situação de excepção exige qualidades de liderança excepcionais. Se for pedir demasiado, então que haja dois sucedâneos razoáveis ou melhores: prudência e sensatez. Mesmo em proporções residuais, podem dar muito jeito. Entusiasmados com a ideia de darem uma notícia moralizadora, Marcelo Rebelo de Sousa, António Costa e Eduardo Ferro Rodrigues acabaram por fazer o contrário. Transformaram-se nos porta-vozes da desmoralização e do relaxamento e desferiram um golpe na credibilidade das regras e recomendações que desaconselham e tentam impedir aglomerações de pessoas.
Riram-se na cara dos pais que têm crianças que não podem ir à escola. Desprezaram as imensas dificuldades de quem tem de reerguer negócios sob a obrigação de cumprir restrições que, em nome da saúde pública, dificultam a tarefa. Garantiram que se trata de uma enorme conquista para a recuperação do turismo, mas não se deram ao trabalho de explicar se, no fim de contas, poderá haver público nos estádios, quando os festivais foram abatidos do calendário, ou se o feito inexcedível para a promoção da "marca Portugal" será testemunhado por bancadas vazias, caso em que não se percebe onde poderá estar a razão para tamanho deslumbramento e entusiasmo. Organizaram uma sessão de marketing e enredaram-se numa teia de contradições.
A economia tem de recomeçar a funcionar. Mas não há vacina para a covid-19, nem fármacos com total e comprovada eficácia. A actividade tem de ser ressuscitada com a colaboração do comportamento disciplinado e responsável dos cidadãos. O vírus é insensível à propaganda política, mas a capacidade de propagação beneficia com os sinais errados e aproveita-se dos maus exemplos. Se a ideia é a de usar uma competição desportiva para atrair turistas, a percepção gerada é a de que as portas estão abertas para o regresso a uma normalidade tão ansiada quanto arriscada.
Uma celebração em Lagos gerou quase uma centena de infectados. Mais de mil pessoas participaram numa festa num parque de estacionamento em Carcavelos, na região de Lisboa e Vale do Tejo, onde o desconfinamento tem desencadeado a maioria dos novos casos de infecção. Não surpreende que uma vaga de jovens infetados em esplanadas e praias esteja a chegar ao internamento do Hospital de Santa Maria. Em Braga e no Porto, a polícia teve de intervir para desagregar grupos que violavam as normas em vigor. Em Setúbal, a Polícia Marítima dispersou agrupamentos de jovens nas praias da Arrábida. Com a aproximação do período de férias escolares, os riscos aumentam. A cautela de quem está no topo das estruturas de poder devia subir também.
Marcelo, Ferro e Costa são responsáveis directos pelos casos de incumprimento? Não. Mas compete-lhes moderar o ímpeto quando se deparam com uma oportunidade para conquistar popularidade sem olhar ao preço. A boa notícia é que parece terem-se apercebido do alçapão em que mergulharam de cabeça. Para corrigir o deslize, decidiram atirar-se em direcção ao extremo oposto. O primeiro-ministro veio a público ameaçar com forças da ordem na rua a multar a torto e a direito. O Presidente da República admitiu a aplicação de "medidas mais duras" das autoridades e queixas ao Ministério Público. Quanto a Ferro Rodrigues, talvez esteja em casa a matutar sobre novas tácticas para fazer oposição a André Ventura.

domingo, 21 de junho de 2020

Não podem estar bons da cabeça

Posted: 20 Jun 2020 03:31 AM PDT

«Esta semana, o assunto natural seria o Orçamento do Estado. Porém, do Palácio de Belém veio outro magno assunto: Lisboa vai ser palco de sete jogos de futebol. As imagens que de lá nos chegaram esclareceram o mistério do paradeiro do ministro da Educação.

Por toda a Europa, gizam-se planos e estratégias para a retoma das aulas. Em muitos países, as aulas já funcionam. Encontraram-se várias soluções. Nuns países, são ao ar livre; noutros, são em dias alternados; há ainda os que recorreram às universidades e estádios de futebol. No caso de França, as aulas funcionarão em pleno já a partir de segunda-feira. Uma preocupação constante é, obviamente, a de recuperar os alunos que ficaram para trás. Como escreve Susana Peralta no “Público”, em Inglaterra haverá programas de recuperação no verão e já se anunciou um plano de contratação de explicadores para os alunos mais atrasados. Na Bélgica, as aulas recomeçaram para os que em fevereiro mostravam ter mais dificuldades.

E em Portugal?! Nada. Na semana passada, o Conselho de Ministros aprovou um Programa de Estabilização Económica e Social (PEES) sem uma linha sobre retorno às aulas. Aprovou-se um Orçamento sem uma linha dedicada ao reforço de recursos humanos nas escolas, que facilitassem a transição e ajudassem estudantes que precisem. O diretor de turma da minha filha nem sabe se, em setembro, as aulas serão presenciais ou não. Como diz Susana Peralta, o ministro da Educação finge que nada disto é com ele. O que já é do domínio do ministro é dar uma prenda aos profissionais de saúde portugueses. E que prenda!: garantir que a Final Eight da principal competição de futebol da UEFA se realiza em Lisboa. Vemos na fotografia que ilustra o artigo como Tiago Brandão Rodrigues estava empenhado nesta magnífica oferenda. É como se, em vez de um ministro da Educação, tivéssemos um organizador de eventos, provavelmente na dependência orgânica da Secretaria de Estado do Turismo (porque organizar o evento da abertura das escolas parece que não).

A hipótese de não haver ninguém a trabalhar no Ministério da Educação ganhou consistência quando a minha mulher me disse que as escolas estavam a pedir aos alunos que devolvessem os manuais escolares. Vamos lá ver. Este ano as aulas só funcionaram no 1º período e numa parte do segundo e há dezenas de milhares de alunos sem apoio dos professores. É capaz de ser um pouco óbvio que os alunos vão precisar dos manuais durante as férias. Pelo menos os que quiserem estudar. Mesmo que não estudem, no próximo ano letivo, os professores terão de cobrir parte da matéria que ficou por dar este ano. Portanto, pensei que as escolas estivessem simplesmente a aplicar os procedimentos dos anos anteriores, sem terem sequer refletido no assunto. Não liguei muito e disse à minha mulher que ficasse tranquila, que era engano e que a nossa filha não devolveria manuais nenhuns.

Mas não ficou tranquila. Teimosa, insistiu que havia um despacho exigindo a devolução dos livros. E mandou-mo. Não é que há mesmo um despacho?! Foi assinado a 9 de junho, pela secretária de Estado da Educação, Susana de Fátima Carvalho Amador, publicado a 16 de junho, e diz que os manuais têm de ser devolvidos até 14 de julho.

Não se trata de esquecimento. Num ano no qual a escola não funcionou durante mais de um período e em que dezenas de milhares de alunos perderam o contacto com os professores, há mesmo alguém na equipa do ministro da Educação que considera que os alunos têm as matérias consolidadas e não precisam mais dos manuais escolares. Imagino que, no próximo ano letivo, quando os professores quiserem ensinar a matéria que ficou para trás, os alunos deverão procurá-la na internet. Se calhar é por isso que os 400 milhões previstos no PEES para a Educação estão destinados à Escola Digital.

Lamento, mas a incompetência não explica tudo. Simplesmente, naquele ministério, não podem estar bons da cabeça.»

Luís Aguiar-Conraria

sábado, 20 de junho de 2020

O martelo de Thor

por estatuadesal

(José Pacheco Pereira, in Público, 20/06/2020)

Pacheco Pereira

Eu gosto muito do meu país, mas não tenho muitas ilusões sobre ele. É um país atrasado, pouco desenvolvido, sem massa crítica, pouco culto, sem grande qualificação da mão-de-obra, muito dependente de vagas de superficialidade, onde a maioria das pessoas trabalha duramente para não receber sequer o mínimo vital, sem vida cívica autónoma do Estado, com uma economia débil, desindustrializado, com uma agricultura desigual, pouco cosmopolita, com muitos aproveitadores e alguns bandidos, mas aí como os outros.

É um país que cada vez menos tem autonomia política, dependente da transferência dos centros de decisão para Bruxelas. Aquilo em que somos melhores não coloca o pão no prato ao fim do dia, como agora se diz. Temos uma língua e uma literatura de valor universal, a melhor obra dos portugueses, mas ninguém come literatura. E temos uma democracia que é um valor que só quem sabe o que é ditadura percebe qual é. É mau? Não é mau, há muito pior, mas é sofrível, e sofrível não permite andar por aí a bater em pandeiretas.

A pandemia de covid-19 funcionou como um martelo de Thor, mandou-nos uma pancada que ajudou a perceber melhor o que já cá estava antes. Anos de ostracismo dos velhos fez crescer lares por todo o lado, frágeis e sem defesas, em muitas zonas suburbanas, vive-se miseravelmente, trabalhadores estrangeiros como os nepaleses, africanos, ciganos, com formas diferentes de marginalidade e exclusão, vivem em guetos onde pouco mais do que a Igreja penetra, e a disciplina do confinamento foi facilmente substituída por actos como o daqueles imbecis que resolveram fazer uma festa em Lagos e infectar-se colectivamente.

Quando se vê a geografia dos últimos surtos na região de Lisboa, percebe-se esse mapa social.

O problema é que, mesmo quando podíamos pensar em aproveitar esta oportunidade para consertar ou melhorar alguma coisa do que está estragado, mais uma vez a ajuda europeia é ao lado, mais preocupada em manter a procura de sectores económicos da Europa do Norte do que em corresponder às nossas necessidades.

Diz-se que o dinheiro tem como objectivo a “transição digital” e a “economia verde”. A “economia verde” percebe-se, mas servirá apenas uma pequena parte das nossas actividades produtivas. A “transição digital”, para além de um slogan da moda, estou para saber o que é, e o que sei, principalmente na educação, deixa-me de pé atrás. Se se trata de transformar as nossas mercearias em mini-mini-Amazons, muito bem, como é muito bem que tudo o que possa ser tratado digitalmente na nossa pequena economia faça essa transição. Temos aí muito que andar, mas os negócios onde há baixa qualificação da mão-de-obra e péssima gestão não vão mudar pela “transição digital”.

Muitos dos nossos problemas são de natureza social, dependem de reacções entre pessoas, grupos e da distribuição de poder e, contrariamente ao deslumbramento tecnológico que por aí anda, isso não muda no mundo digital. Pelo contrário, o mundo digital revela uma grande capacidade de reproduzir as exclusões e de as transportar “de fora” para “dentro”.

As minhas dúvidas no mundo da educação são de outra natureza, e aí são mais graves. A pandemia e as aulas à distância revelaram uma enorme percentagem de estudantes sem acesso à Internet, e sem acesso a computadores, e aí a “transição digital” é um enorme benefício. Mas se se começar a entender que a comunicação digital e o acesso digital se farão pela retirada do ensino da relação com um mundo em que somos analógicos, e pensamos de forma analógica, e os nossos sentidos são analógicos, então, com muitas luzinhas e animações e virtualidades, entramos numa nova forma de escolástica muito pobre. Escrevo isto porque é um processo já em curso, com “gerações mais educadas” bastante incultas e ignorantes.

Ninguém liga nenhuma ao facto de uma certa forma de ignorância agressiva estar a crescer, e a como isso se está a tornar um grave problema social, e político.

Numa sociedade como a portuguesa, será um retrocesso civilizacional e um risco para a democracia. A dificuldade de separar a verdade da mentira, o crescimento das teorias conspirativas, as ideias contra a ciência, tudo isto está a ganhar terreno. O populismo moderno dá-lhes uma expressão política eficaz.

O meu retrato de Portugal é pessimista? Já era assim antes e não está pior. Nunca me iludi por nenhuma das coisas que andaram a deslumbrar-nos nos últimos anos, start-ups, turismo, todas as coisas em que éramos os “melhores do mundo”. Qual a utilidade de o dizer nestes tempos? Talvez se façam duas ou três coisas em que não se possa voltar para trás: um robusto sistema universal e gratuito de saúde, acesso universal à Internet, comboios que sirvam Portugal, o fim do “Jamaica” com casas decentes, etc.. Vão querer fazer cinco mil coisas, mas, se fizerem cinco, já valeu a pena a martelada do Thor.

Vaidade e leviandade

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 20/06/2020)

Miguel Sousa Tavares

Levo tantos anos a olhar para a política portuguesa quantos ela tem de existência democrática. E em todos estes anos vi, como em todas as outras áreas, políticos bons, maus ou péssimos, honestos e desonestos, verdadeiros servidores públicos ou servidores de si mesmos. Avaliando-os não apenas ou necessariamente pelas suas características pessoais mas também pelos resultados da sua acção, coloco à cabeça do ranking daqueles que em minha opinião foram os piores de sempre dois nomes: Aníbal Cavaco Silva e José Manuel Durão Barroso.

Ambos têm algumas coisas em comum, além de terem pertencido ao PSD e terem sido primeiros-ministros. O principal em comum foi o facto de se terem elevado, por um conjunto excepcional de circunstâncias, até onde os seus dotes jamais fariam prever, e de o terem feito tudo devendo à democracia e nada tendo contribuído para ela, antes pelo contrário. Mas uma coisa, em minha opinião, os distingue de forma clara: enquanto Cavaco Silva, embora nunca tendo sido propriamente alguém desinteressado da sua sorte, tinha, apesar disso, uma ideia, certa ou errada, de missão para o país, Durão Barroso passou sempre os seus interesses próprios à frente de tudo o resto. Como exuberantemente se provou quando a meio do mandato como primeiro-ministro e após uma derrota nas europeias, tendo acabado de prometer solenemente aos portugueses que entendera a mensagem, não hesitou em abandonar o barco mal lhe caiu do céu o convite para presidir à Comissão Europeia — o que até o primeiro-ministro de um país tão irrelevante como o Luxemburgo, convidado antes dele, tinha recusado, exactamente porque entendeu que o seu dever era o de cumprir o mandato que lhe haviam confiado os seus eleitores nacionais.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

A propósito da célebre Cimeira das Lajes, que deu luz verde à segunda guerra do Iraque, e que deve ficar a constar dos anais como um dos episódios mais vergonhosos da nossa diplomacia, veio agora Durão Barroso, ressalvando que “não gosta de julgamentos retroactivos”, reconhecer que se fosse hoje, com o que se sabe, “provavelmente, teria feito diferente”. Mente: o que se sabe hoje já se sabia na altura. Ou, pelo menos, o que Durão Barroso garantiu na altura que sabia — que tinha visto com os seus olhos as “provas” da existência de armas de destruição maciça no Iraque — era mentira. Não havia provas algumas, porque não havia armas. No Conselho de Segurança da ONU, o MNE francês, Dominique de Villepin, desfez na cara do secretário de Estado, Colin Powell, as supostas provas, em termos que se tornaram humilhantes para os americanos e evidentes para quem quer que não fosse idiota ou desonesto. E, no terreno, a Agência de Energia Atómica, por mais que procurasse, não encontrava quaisquer vestígios do tal armamento nuclear que Washington e Barroso garantiam existir. Foi então, exactamente porque se estava a tornar óbvio para todos que não tinha provas, que George W. Bush tomou a decisão de invadir. Ou, citando as inesquecíveis palavras do ex-director do Expresso, José António Saraiva, porque só invadindo é que se podia saber se havia ou não armas. Sem provas que não umas ridículas montagens fotográficas, com a oposição do Conselho de Segurança e da maioria dos seus aliados, restava a Bush o apoio dos Governos de Aznar e de Tony Blair. Mas chamá-los a Washington para decidir a guerra numa cimeira a três pareceria às divididas opiniões públicas de Espanha e Inglaterra um acto de vassalagem, e pior ainda se fosse em Espanha ou no Reino Unido. E foi então que Barroso cheirou a oportunidade e ofereceu o apoio de Portugal e a Base das Lajes, com a justificação simplista de que “não podíamos ficar neutros” quando o nosso “aliado” resolvia invadir um país só para satisfazer o desejo pavloviano de glória militar do seu Presidente. É claro que Bush teria invadido o Iraque com ou sem a Cimeira das Lajes, pois tinha isso decidido desde o primeiro dia em que tomou posse. Portugal é que não precisava de ficar ligado a esse triste episódio de uma mentira orquestrada que conduziu a uma guerra que custou directamente 100 mil mortos, fora os que resultaram e ainda resultam indirectamente do terrorismo do Daesh, nascido dessa invasão. Hoje, George W. Bush dedica-se à pintura no seu rancho do Texas, e Durão Barroso, além de trabalhar para o Goldman Sachs — os consultores que aconselharam os gregos a ocultarem dívida da UE, cuja implacável cobrança a UE, depois presidida por Durão Barroso, exigiria —, dedica-se também a conferências ou palestras onde deixa cair, em tom sábio e diletante, tiradas como as que acima citei. Não gosta de julgamentos retroactivos. Eu também não, mas não estamos a falar do século XVII nem do padre António Vieira. Estamos a falar de 100 mil mortos, há 17 anos. Em nome de uma mentira.

Suponho que para os playmakers do mundo esses mortos sejam uma abstracção. “Danos colaterais” que apenas se tornam um pouco mais visíveis quando vemos os corpos mutilados dos clientes do Bataclan parisiense mortos num atentado do Daesh. Mas aí Durão Barroso poderá justificar-se garantindo que perguntou várias vezes a Bush: “E o after?” Ele não terá respondido, porque não fazia ideia, mas tal não impediu o primeiro-ministro português de dividir o palco de guerra com ele, por um breve e intenso momento de vaidade planetária. Os mortos, se acontecessem, viriam depois, num after que já seria história acessória.

As Lajes, o silêncio sobre o massacre de Luanda, a diplomacia conivente com a Indonésia são três episódios da nossa política externa de que devemos ter sincera vergonha. E todos eles tiveram a assinatura de Durão Barroso

Hoje, somos muitos rápidos e muito voluntaristas a julgar os responsáveis de séculos passados ou a julgar estrangeiros, mas muito cerimoniosos com os nossos e actuais responsáveis. Desfilamos indignados com o assassínio do negro George Floyd, asfixiado às mãos de um polícia americano, que está preso, mas ninguém se manifesta contra o assassínio à pancada durante dois dias de um emigrante ucraniano às mãos de três agentes do SEF, os quais a juíza de instrução manteve em liberdade e cujos nomes nem sequer foram revelados. Estamos ansiosos para não ficar atrás de outros que derrubam estátuas de descobridores ou missionários que dizem que afinal não passavam de esclavagistas, mas assistimos tranquilamente às palestras de Durão Barroso, no seu papel de sábio da política internacional, sem lhe perguntar nada sobre o Iraque ou sobre o massacre de Luanda, quando os responsáveis da UNITA que lá estavam ao abrigo dos Acordos de Bicesse, negociados por Durão Barroso, foram chacinados e perseguidos sem aviso pelo Governo do MPLA, perante o silêncio absoluto do Governo português e do seu MNE (Durão Barroso), a quem cabia a responsabilidade moral da sua protecção, ou, ao menos, da denúncia do que se tinha passado. Ou sobre Timor, quando o mesmo Durão Barroso, como MNE, se encontrava, ano após ano na ONU, com o MNE indonésio, Ali Alatas, e gentilmente, com um ar de quem tinha despachado o frete constitucional, dizia infalivelmente: “Concordámos em continuar a discordar e em encontrarmo-nos outra vez para o ano.” Entretanto, Portugal perdia cada vez mais apoios internacionais para a questão, e os timorenses continuavam a ser ocupados e esmagados pelos indonésios. No espírito de Barroso, o assunto estava resolvido por si, de facto, e não havia nada a fazer, era um aborrecimento todos os anos ter de pedir um encontro com Alatas. Mas Guterres e Bill Clinton provaram depois que não era assim: era só uma questão de acreditar que na política externa também é possível bater-se por princípios. (Mas como a hipocrisia dos políticos pode ser infinita, anos depois e já independente graças a Guterres, quando Barroso era presidente da Comissão Europeia e Timor ansiava por dinheiros europeus, o Governo de Timor propôs e Barroso aceitou ser condecorado pelos serviços prestados à independência do país.)

As Lajes, o silêncio sobre o massacre de Luanda, a diplomacia conivente com a Indonésia são três episódios da nossa política externa de que devemos ter sincera vergonha. Todos eles tiveram a assinatura de Durão Barroso e de todos escapou incólume ou melhor ainda. A sua vida política merecia uma biografia à maneira anglo-saxónica, sem contemplações. E começando logo pelo seu passado maoista na Faculdade de Direito, descartado como um fait-divers, como um arroubo dos 20 anos — como se o fosse. Como se aos 20 anos o jovem Durão Barroso não tivesse idade para saber o que era o maoismo, para conhecer a extensão inominável dos seus crimes e não soubesse o que fazia ao andar, feito um iluminado histérico, a gritar vivas a Estaline e a Mao. Eu aos 20 anos já sabia muito bem distinguir a liberdade da ditadura, um assassino psicopata de um líder nacional. Não, não foi um erro de juventude, foi um pecado original. Que, não sendo explicável pela psiquiatria, como em muitos casos semelhantes, deve ser analisado à luz de um defeito de carácter. E, a essa luz, analisada toda uma carreira política verdadeiramente notável. Notável pelo que alcançou, pelo que exigiu de contorcionismo para lá chegar e lá se manter e pelo infinito vazio e inutilidade final que deixou sempre à sua passagem. Tanto poder para nada!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia