(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 27/06/2020)
Miguel Sousa Tavares
Viajo para Lisboa através do interior alentejano, evitando as auto-estradas e saboreando o prazer de conduzir numa velha mas restaurada estrada nacional, a melhor forma de apreciar a paisagem e perceber o que vai mudando ou não vai mudando por esse país adentro. Algures, numa vila ainda branca, paro numa tabacaria para comprar jornais, uma raridade nos tempos que correm: alguém que ainda vende jornais e alguém que ainda os quer comprar. A dona da tabacaria mete conversa comigo e, depois de me interrogar sobre o estado do país, informa-me sobre o estado do local: diz-me que ela não fechou um único dia, porque vive daquilo, mas ali, jura, ninguém quer fazer nada. Antes foi por causa do confinamento, agora é por causa do desconfinamento, porque as pessoas dizem que agora precisam de se descontrair e “gozar”. “Aqui na terra e ao redor só há três profissões: pensão de reforma, subsídio de desemprego e RSI.” Eis uma tirada — penso para comigo — que se alguém se atrevesse a dizer em voz alta seria crucificado. E, de facto, até ela diz-me aquilo quase em segredo, tão baixinho que mal consigo ouvi-la e só depois de se certificar que não há ouvidos à porta do estabelecimento.
ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO
Estamos a poucos quilómetros da barragem de Alqueva (“Construam-me, porra!”), que nos garantiam ir gerar milhares de postos de trabalho no Alentejo e onde há uns anos circulavam à boca cheia histórias de empreiteiros que andavam em vão, de café em café, pelas aldeias vizinhas, à procura de quem quisesse trabalhar nas obras, ouvindo invariavelmente a resposta de que ganhavam quase o mesmo no subsídio de desemprego sem ter de trabalhar. Hoje, independentemente do crime ambiental e agrícola ali em curso e de que já aqui me ocupei bastas vezes, Alqueva — esse grande “desígnio nacional” — está transformado num olival espanhol financiado por subsídios europeus e dinheiro de impostos portugueses e onde trabalha uma mão-de-obra que atravessou dois continentes para substituir os nossos “desempregados”: nepaleses, paquistaneses, indianos. E em condições laborais e sociais que, se não chegam para fazer derrubar estátuas de novos esclavagistas, deviam pelo menos fazer corar de vergonha as silenciosas centrais sindicais sempre tão pressurosas a defender os que têm emprego garantido para a vida e horários de 35 horas por semana. De nacional, pouco resta; de desígnio, resta o “porra!”.
Em Lisboa, num café de ocasião, a empregada ocupa-se comigo no passatempo favorito dos portugueses: dizer mal “deles”. “Eles”, claro, são os políticos — sejam eles quais forem, façam o que fizerem, hoje, ontem ou amanhã. “Esses, pelo menos”, informa-me ela, “estão sempre bem: quatro aninhos de trabalho e ganham direito a reforma para a vida toda!” Pela milionésima vez e com a mesma esperança das anteriores, dou-me ao trabalho cívico de a desmentir. “Como é que não é verdade? Eu li!”, insiste ela, quase ofendida. E leu onde? “No Facebook!”, esclareceu, altiva, como se falasse da Bíblia. Deixo o Facebook de lado (seriam revelações de mais para uma só conversa...) e, enquanto espero que o café esfrie um pouco, explico-lhe que houve, de facto, um tempo em que quem estivesse doze, e não quatro anos, na política ganhava direito a uma pensão vitalícia, mas que isso já havia acabado há muito e que, pelo contrário, quando foi da crise de 2008, os políticos viram os seus vencimentos cortados em 10% e nunca mais esse corte foi reposto, porque não há coragem para o fazer. Olhou para mim nada convencida e lá encontrou o argumento sem resposta: “Ah, mas alguns saem de lá de bolsos cheios, não é?” E sorriu-me, triunfante: “Hã? Hã?”
Estamos a acordar de uma doce ilusão, assente em duas apressadas verdades: o heróico comportamento cívico do povo português perante a pandemia e o exemplar desempenho do Serviço Nacional de Saúde, ultrapassando com brilho um teste de fogo extremo. É uma pena, mas ambas as supostas verdades são falsas. E, de novo, trata-se de uma coisa que nenhum politico, mesmo com corte de vencimento, se pode atrever a dizer em voz alta.
O heróico comportamento cívico do povo português assentou no medo, puro e simples. Foi o medo que nos trancou em casa, a alguns até com comportamentos que nada tiveram de heróico, antes pelo contrário. Se a nossa sempre afanosa busca por heróis — que nos leva a registar alguns milhares de comendadores da democracia e alguns milhares de medalhas de feitos militares em tempos de paz — precisa de heróis civis desta empreitada, sugiro os autênticos, os que não ficaram em casa: os agricultores, incluindo os imigrados, os pescadores, os camionistas que traziam os seus produtos para os supermercados e os trabalhadores destes que nos abasteciam, os que trabalharam nas farmácias, nas tabacarias que não fecharam ou no pequeno comércio de bairro, os trabalhadores dos transportes, os polícias, os voluntários que acorreram aos sem-abrigo, etc. E, quanto ao brilhante desempenho do SNS, ele explica-se por uma simples razão: porque nunca esteve sob verdadeira pressão. Trancados em casa, os portugueses garantiram que a parte do SNS dedicada em exclusivo à covid nunca ameaçasse ruptura. E, tirando os profissionais dedicados a isso, que cumpriram, de facto, o seu dever, tudo o resto no SNS fechou cautelarmente, mesmo antes de a epidemia nos ter atingido. Milhares de consultas, de exames, de cirurgias e tratamentos urgentes ficaram por fazer, muitos deles com desfechos fatais. Dificilmente se pode tomar isto como um caso de sucesso.
E se a resposta política, em minha opinião, esteve sempre adequada àquilo que se sabia e que ia sendo aconselhado por quem era suposto saber e do que podia ser feito em cada momento, nem sempre o aparelho do Estado respondeu da mesma maneira. E ninguém, como é fácil de observar, tem sido mais lento e parcimonioso a retomar a vida normal do que o aparelho do Estado. Foram os poucos professores chamados a dar bem poucas aulas presenciais aos 11º e 12º anos que largamente se declararam logo potenciais doentes de risco covid; é a retoma da generalidade das aulas presenciais marcada para 17 de Setembro — a data normal — como se nada tivesse acontecido e não houvesse meio ano a recuperar; foi a ministra da Justiça que ponderou, mas finalmente não se atreveu, a retirar meros 15 dias às sacrossantas longas férias judiciais dos magistrados, apesar de acrescentadas este ano de três meses à conta da covid; é a própria ministra da Administração sem pressa alguma de fazer regressar os funcionários públicos do teletrabalho, dizendo que este provou muito bem, embora quem espera e depende do mais banal acto administrativo continue a desesperar.
Cá fora, porém, começamos a assistir ao trágico cortejo, já visto em 2008, de restaurantes, lojas, empresas, que fecham, trabalhadores que ficam desempregados, que se preparam para perder a casa, para voltar a emigrar, enfim, para regressar ao que já tinham imaginado ter ficado para trás de vez. Mas, do lado de lá, do lado do Estado, não há pressa. “Sra. ministra, falta aqui um acrílico a separar-nos da zona das testemunhas, neste tribunal!”; “Sra. ministra, esta repartição não tem ar condicionado do último modelo!”; “Sr. ministro, esta sala de aulas não tem ventilação natural adequada!”. E os “mesmos de sempre”, como gosta de dizer a extrema-esquerda, ficam para trás. Só que os “mesmos de sempre” não são os mesmos de que fala essa esquerda. Coincidem, talvez, os alunos cujos pais não têm dinheiro para explicadores nem computadores e que nunca recuperarão este atraso, mas já não os professores que não se disponibilizam para o esforço exigível; talvez ainda os que não podem perder o emprego, infectados ou não, ou que não têm condições para viver decentemente, quanto mais para se isolarem se doentes; mas já não os que pagam fortunas para esperar justiça do Estado e agora viram todos os seus casos parados e nenhum esforço feito para recuperar os atrasos; ou os que pagam serviços que o Estado cobra caro e presta em exclusivo e a más horas e que não têm alternativa que não continuarem à espera até que o funcionário de quem dependem resolva desconfinar; ou o exército de trabalhadores a recibos verdes (alguns trabalhando para empresas públicas, como a RDP), sem direito a horários, férias, Segurança Social, protecção no desemprego, que nenhum sindicato ou comissão de trabalhadores se preocupa em defender antes dos “instalados”; e os milhares de jovens em princípio de vida, as vítimas principais do desemprego, da falta de habitação, da falta de perspectivas, a não ser um horizonte de dívida pública para depois pagarem a vida inteira e que os instalados reivindicam que se acrescente agora.
Há dois países aqui: um país ruidoso, que o Presidente da República apelida de heróico, que se manifesta nas ruas e que frequentemente adoece nos dias de trabalho, que tem porta-vozes sindicais todos os dias na imprensa, que o Governo escuta e teme, que os políticos tratam com paninhos quentes, que a lei, a Constituição e os mestres interpretadores dela protegem e a quem garantem melhores contratos de trabalho, melhores horários, mais férias, reformas mais cedo e mais bem pagas, e que, de um modo geral, abocanha a parte de leão da parte da riqueza do país que o Estado cativa todos os anos. E há um outro país, silencioso e submerso, que ninguém representa e ninguém escuta, que está demasiado ocupado em tentar sobreviver para andar nas ruas a manifestar-se ou nas redes sociais a ocupar o horário de trabalho no bota-abaixo de quem lhe paga a ociosidade e os privilégios de que goza ou no prazer solitário da calúnia e da ofensa anónima, que continua a trabalhar sem olhar ao horário, ao termómetro ou ao medo, que se levanta quando o atiram abaixo e lhe dizem (a ele, que não tem direitos alguns garantidos) que saia da sua “zona de conforto” e se dirija ao aeroporto e que, de tão resiliente, há quem chegue a pensar que é inexistente. Mas não é: esse Portugal silencioso e resistente é o único que, se não for sufocado, nos poderá resgatar.
Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia