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quarta-feira, 1 de julho de 2020

A urgência de um estatuto do SNS

Posted: 30 Jun 2020 03:23 AM PDT

«Sem a existência do Estatuto do Serviço Nacional de Saúde (ESNS) a Lei de Bases da Saúde (LBS) é um conjunto de artigos que pouco contribui para a causa da saúde dos portugueses. Porque, e bem, aquela lei tem em vista melhorar a organização e funcionamento do SNS. Assim sendo, na ausência do coração que lhe dá vida e justifica a sua existência, a LBS está a tornar-se numa espécie de bugiganga que se compra nas feiras a um preço bastante convidativo. Tinham sido escusadas tanta discussão, tantas versões, tantas opiniões, tanta disputa, para tudo acabar em meia dúzia de páginas do Diário da República e por lá ficarem a azedarem.

O ESNS é o conjunto articulado de disposições que organiza, ordena e dá sentido ao SNS. Sem ele, tudo quanto agora se faz, faz-se à luz da experiência dos mais de quarenta anos que já leva o SNS. Faz-se com uma mão aqui e outra mão acolá, às apalpadelas, na expectativa de acertar à primeira. Mas o que se tem visto é que a mão aqui tem servido os interesses estranhos ao bem público, e nisso a mão aqui acerta quase sempre à primeira, ao contrário da mão acolá que farta-se de errar para encontrar o que é preciso. Com o vazio criado pela ausência do ESNS, cada um procura fazer à sua maneira, o melhor que pode e sabe, mas o resultado não deixa de ser uma manta de retalhos, sem que os retalhos tenham já qualquer nexo entre eles, sem que exista já qualquer coerência entre as suas peças. Se quiséssemos encontrar um caso em que o todo é menor do que a soma das partes, o SNS seria o melhor exemplo que poderíamos encontrar.

Estando assente que através do MEE, Portugal tem acesso a 500 milhões de euros para ajudar a financiar algumas despesas da luta contra o coronavírus e sendo o SNS o principal actor dessa luta, o risco de a aplicação desse financiamento não obter os resultados desejáveis é grande se o SNS não dispuser de um guião que oriente a melhor utilização desse dinheiro. É que no actual estado das coisas, lançar dinheiro para cima de uma estrutura que se vai aguentando mas que já não consegue ter a agilidade que se exige no seu funcionamento, que é à custa de um esforço exagerado dos seus profissionais que ainda se consegue responder às necessidades da população, é correr o risco de não se ter em conta a melhor e mais útil aplicação desse dinheiro. E bem pode vir a acontecer que uma fracção importante desses 500 milhões de euros vá parar aos bolsos do sector privado, que não deixará agora de estar disponível para ajudar no apoio à pandemia.

Ao considerarmos que é urgente meter mãos à obra e elaborar tão depressa quanto possível o ESNS é também porque não se deve desperdiçar a ocasião para incluir nele as lições retiradas do que correu bem e do que falhou na concepção da resposta à pandemia. Se em muitos aspectos, sobretudo na sua fase de instalação e desenvolvimento, as soluções se mostraram ajustadas ao risco, já na fase de desconfinamento não aconteceu a mesma coisa. O seu planeamento tinha de ter começado muito antes, o envolvimento das comunidades locais tinha sido indispensável e era obrigatória a participação das lideranças informais. É também por isso que é urgente que o SNS seja dotado de um Estatuto que inclua a resposta a todos estes aspectos. Desde a pandemia à dor de dentes.»

Cipriano Justo

Já 'Schengen'. Fronteiras começam hoje a reabrir

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Joana Pereira Bastos

Joana Pereira Bastos

Editora de Sociedade

01 JULHO 2020

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Bom dia,
Pela primeira vez desde a sua criação, a União Europeia esteve fechada ao resto do mundo nos últimos meses. Desde 17 de março que, salvo motivos excecionais, estava proibida a entrada de cidadãos de países terceiros no espaço europeu devido à pandemia de covid-19, que já provocou cerca de 180 mil mortes no Velho Continente. O isolamento começa hoje a chegar ao fim, com o início de um processo lento e gradual de reabertura das fronteiras. Mas, para já, são muito poucos os “bem-vindos”.
A UE finalizou à última hora a curtíssima lista de 14 países cujos cidadãos são considerados “seguros” para entrar no espaço comunitário. Pode ainda vir a juntar-se a China, mas apenas se Pequim garantir a reciprocidade e aceitar a entrada de europeus em solo chinês.
A esmagadora maioria dos cidadãos não europeus continuará a ficar à porta, incluindo o Brasil e todos os PALOP, assim como EUA, Rússia ou Índia, por exemplo. No total, mais de 150 estados permanecem na “lista negra”.
O processo de escolha dos países “seguros” esteve muito longe de ser pacífico. A média de infeções por 100 mil habitantes nos últimos 14 dias foi um dos principais critérios, mas em jogo esteve e está muito mais do que a saúde pública. Interesses políticos e económicos e muita diplomacia pesaram na decisão, que não conseguiu aprovação por unanimidade e não é vinculativa.
Portugal vai acatar a recomendação da UE para barrar a entrada de todos os cidadãos que ficaram de fora da lista, ainda que autorize excecionalmente a chegada de voos com origem em países de língua portuguesa e nos EUA, desde que os passageiros tenham um teste negativo à covid-19 e somente no caso de "viagens essenciais".
Nada consensual foi também o processo de reabertura das fronteiras dentro da própria UE. Sem coordenação de Bruxelas, cada país definiu por si que vizinhos europeus deixava ou não entrar no seu território. E Portugal, outrora sinónimo de sucesso no combate ao novo vírus, não está particularmente bem visto lá fora e não conseguiu livre-trânsito. Devido ao aumento de casos nas últimas semanas – só ontem houve 229 novos infetados e mais oito mortes -, há ainda vários países europeus que fecham as portas ou impõem restrições a portugueses.
Potencialmente dramática para Portugal será a decisão do Reino Unido, que adiou para o final desta semana a divulgação da lista sobre os países que considera seguros para os britânicos viajarem neste verão. Se Portugal ficar de fora, as perdas serão avassaladoras.
Também determinantes para o turismo nacional são os espanhóis e, esses, Portugal espera ansiosamente já a partir de hoje. E sem qualquer tipo de controlo sanitário.
A reabertura das fronteiras terrestres terá honras de estado, com o Presidente da República, o rei de Espanha e os primeiros-ministros dos dois países juntos numa cerimónia entre Elvas e Badajoz. Mas o clima entre os vizinhos ibéricos está longe de ser o melhor. Portugal e Espanha, dois dos principais destinos de praia na Europa, são concorrentes diretos na luta pelos escassos turistas que viajarão este ano. E Marcelo e Costa não se têm coibido nos últimos dias de lançar indiretas a Espanha, garantindo que, por cá, ao contrário do que fazem nuestros hermanos, “não há esquecimentos do número de óbitos, nem há dias em que não se mostram os números” para se “ficar bem na fotografia internacional”.

terça-feira, 30 de junho de 2020

O réptil

por estatuadesal

(Carlos Esperança, 29/06/2020)

O réptil tem a pele grossa e respira por pulmões. Não controla a temperatura. Aquece-se nos média e foge do calor para o ar condicionado do escritório ou da AR. É exímio na arte de se camuflar, mas é um carnívoro que não larga as presas. Põe um cravo na lapela quando lhe convém, e abomina-o se o beneficia. Defende os Direitos Humanos para ter um diploma e serve-se desse diploma para os combater.

O réptil é viscoso e repelente, e consegue atrair as presas. O réptil não tem passado, tem fome de futuro. E adapta-se muito bem ao ambiente terrestre.

O réptil passa pelas pessoas e parece normal. Psicopatas, marginais e cadastrados veem no réptil a luz que os ilumina, o arauto da nova ordem que germina no ódio à liberdade, o aríete contra as minorias e a democracia.

O réptil foi, em Portugal, o primeiro animal a conquistar um lugar na casa da Liberdade, para a combater, fazendo jus à história evolutiva, em que os répteis foram os primeiros vertebrados a conquistarem o ambiente terrestre.

O réptil adora a ditadura e defende a democracia, odeia a diferença e alicia indiferentes. Grita que é perseguido quando persegue e continua ruidoso quando lacera as vítimas.
O réptil desfila na Avenida da Liberdade, alheio ao nome que pretende extinguir. Finge apreço pela diferença e faz da manifestação de força a força da provocação que deseja.
O réptil defende a lei para a modificar, a ordem para a subverter, as forças de segurança para as atrair para a vingança e a violência.

O réptil mente e atribui aos outros a indignidade própria. É um traste que evita referir as avenças de que vive, o biltre que atribui aos outros a náusea que é, fazendo das intrigas factos e das calúnias verdades.

O réptil é um professor dispensado da docência para insultar o Governo ou o escriba em comissão de serviço nos média para corroer a democracia.

O réptil não nasceu réptil. Fez-se, debitou baba e peçonha nas televisões e cevou-se com os detritos que bolçou. Entrou na política através de um imbecil e acabou a rastejar por conta própria, a regurgitar calúnias e a atribuir aos adversários os retratos de si próprio.

O réptil é um invejoso e vingativo sem escrúpulos. É filho do acaso. Despreza a justiça e apresenta-se como justiceiro. Se não aprovarem a justiça que apregoa, dispõe de outra. Como não tem moral, a moral não conta. Tem a moral que lhe convém. Por isso defende qualquer moral. E finge que tem moral. Faz mal aos outros, e gosta, e, depois, faz-se de sonso. O réptil rouba a honra que não tem e que dispensa.

O réptil é um cobarde perverso quando ofende e ataca políticos. O réptil não tem pudor. Ouve marginais úteis e senis raivosos e tira conclusões. Depois diz que não concluiu e esconde-se atrás do que ouviu. O réptil é labrego nos jornais, grosseiro nas televisões e boçal nas entrevistas. O réptil é um político que é mestre a rastejar.

O réptil é um furúnculo recheado de pus. É a cabeça de uma infeção em marcha que se alimenta do ódio e das feridas que escarafuncha. É a metáfora da nostalgia salazarista.

O réptil é o talibã que fere e mata, mas larga os explosivos depois de esconder o corpo. O réptil não é monárquico nem republicano, de esquerda ou de direita, ateu ou crente, é um animal que roja o ventre e rasteja ao sabor do vento.

O réptil é perigoso porque nos habituamos a conviver com ele.

“Cancel” contra as “Destemidas”

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 29/06/2020)

Daniel Oliveira

A direita conservadora consegue ter, em simultâneo, dois discursos: o que ataca o "marxismo cultural”, uma mixórdia ignorante que tenta dar nome ao facto de a esquerda estar, como a direita, na disputa do espaço público e das instituições; e a revolta contra a "cancel culture", adaptação de um termo juvenil para o processo pelo qual o “politicamente correto” combaterá, por via da sociedade civil e geralmente nas redes sociais, valores que lhe desagradam.

Note-se que esta franja da direita ultraconservadora, cada vez mais hegemónica no seu espaço político, considera como valores da esquerda ou mesmo marxistas (têm um olhar benigno da história do movimento marxista) os valores da tolerância com modos de vida e orientações sexuais diferentes dos maioritários. Aqueles que estão, aliás, inscritos na nossa Constituição. Em resumo: os mesmos que querem afastar de todo o espaço gerido pelo Estado valores constitucionais, revoltam-se por cidadãos se mobilizarem contra uma mensagem que os repugna. Censura de Estado, excelente; censura social, claustrofóbica.

Na semana passada assistimos, no entanto, à mais descarada campanha de “cancel culture”. Foi contra a série de animação “Destemidas”, dirigida ao público infanto-juvenil. A produção da France Télévision e apoiada pela União Europeia, muito premiada e transmitida em várias televisões (sem que nunca a sua transmissão tenha sido suspensa, que eu saiba), está a passar na RTP 2. Conta a vida de várias mulheres que desafiaram as convenções ao longo da História. O que levou à polémica foi o episódio sobre Thérèse Clerc, uma feminista francesa homossexual que lutou pela legalização do aborto. Os indignados não se limitaram a criticar a série, exigiriam censura. O que é curioso é esta pressão, em parte bem sucedida, ter sido veiculada pelas mesmas pessoas que passaram o último mês a dizer que havia quem quisesse apagar a História.

Admitindo a possibilidade de se ter perdido, na dobragem, a adequação da linguagem ao público mais jovem, é importante deixar já clara uma coisa: os programas infantis e juvenis, mesmo na televisão pública, não têm de agradar a todos os pais nem de veicular valores em que todos eles se reconheçam. Isso tornaria impossível qualquer série. A maioria dos desenhos animados, mesmo os que parece banais aos olhos de muitos, transmitem valores sobre o papel do homem e da mulher que me desagradam. Se respeitarem a lei, não ando a pedir que sejam retirados. Só espero uma televisão plural onde também caibam os valores que quis transmitir à minha filha e quererei transmitir aos meus netos. E é isso mesmo que me querem recusar. Que o meu mundo, aquele que desejo para a minha filha, e que ainda por cima está totalmente sintonizado com os valores constitucionais, não tenha lugar na televisão pública.

Já quem diz que não aceita que pessoas com determinados valores formem os seus filhos por via da televisão vive num equívoco: os programadores de televisão não substituem os pais. São os pais que decidem o que os seus filhos veem, com que idade veem e se precisam de acompanhamento para verem. Ninguém obriga os seus filhos a ver aquela série. O que eles querem é proibir os meus de a verem. Eles podem limitar o que os seus filhos veem, mas desejam limitar o que os meus veem. A razão porque querem proibir aquele episódio não é a necessidade de proteger os seus filhos – basta mudarem de canal –, é retirar do espaço público um ponto de vista de que discordam.

Resolvida a questão das crianças e adolescentes, que só é questão para quem quer que a televisão substitua os pais, o que quer dizer que se preocupa pouco com a educação dos filhos, resta o facto de aquilo passar na televisão pública. A televisão pública é um espaço plural, não transmite um olhar único sobre a sociedade. Transmitia os programas de José Hermano Saraiva, com olhar ultrapassado do ponto de vista científico e académico sobre a História. Transmite todas as semanas uma missa católica, apesar de o Estado ser laico. Transmite imensas coisas de que discordo. E devo recordar que, como eles, também pago impostos e financio a RTP. A fronteira é, para mim, a Constituição. Esta série respeita-a integralmente.

Não gosto do conceito de “cancel", pelo menos como tem sido adaptado para o confronto político e cultural. Não gostar dele não o torna ilegítimo. As pessoas têm o direito à indignação organizada. Essa é a contrapartida de leis liberais no que toca à liberdade de expressão. O que não suporto é sonsos. E tenho memória. A “cancel culture” sempre existiu. Foi ela que se mobilizou para impedir a exibição de "Je Vou Salue, Marie", de Godard, na Cinemateca; para censurar “A Última Ceia”, de Herman José; contra a transmissão do “Império dos Sentidos”, no canal 2; contra o cartoon de António em que o Papa aparecia com um preservativo no nariz; contra a aparição de Rui Tavares na telescola, por ser um historiador de esquerda; ou contra este episódio das “Destemidas”. Foi ela que tentou e continua a tentar impedir a chegada de outros mundos ao espaço público. E apesar do discurso instalado contra um “politicamente correto” irrelevante em Portugal, são os sectores ultraconservadores que têm revelado uma permanente vontade de calar aqueles de que discordam. Incluindo a sua História.

Dito isto, quero que fique claro: os valores não valem todos o mesmo. A tolerância não vale o mesmo que o ódio, a igualdade não vale o mesmo que a supremacia, a liberdade não vale o mesmo que a opressão, a misoginia, o racismo e a homofobia não valem o mesmo que os valores inscritos na nossa Constituição. Pelo menos para o Estado, para as suas escolas e para a sua televisão. Não se chama marxismo cultural. Chama-se democracia. Aquela que, ao contrário do que disse Bolsonaro, não permite que a maioria esmague as minorias.

Cidadania digital sem Estado

Posted: 29 Jun 2020 03:40 AM PDT

«Amanhã é o Dia Mundial das Redes Sociais. Se no passado foi importante avaliar o perigo do excesso do seu uso, no presente faz sentido questionar se as democracias se ajustaram à cidadania digital.

Não são só os fenómenos Donald Trump ou as milícias digitais de Jair Bolsonaro que merecem reflexão. Os estados necessitam de reformar as suas práticas online, sob pena do fosso entre eleitos e eleitores aumentar. Em Portugal, 95% dos cidadãos fazem login numa rede social uma vez por dia e, naturalmente, ninguém ficou com dúvidas que as redes foram uma mais-valia durante o período de confinamento. Mais do que afastar quem está perto, como tantas vezes são acusadas, aproximaram quem está longe. Tornaram-se ainda mais transversais. Fizeram com que o isolamento fosse menos penoso para muitos idosos. Foram ainda fundamentais no networking, aliadas na "escola em casa" e, em muitos casos, a única oportunidade para os negócios e para as manifestações culturais. Se já eram ferramentas poderosas, tornaram-se engrenagens essenciais. Em resumo, permitiram manter o contacto com o Mundo e o Mundo em contacto e minimizaram o seu lado mais obscuro.

Mas será que os poderes, os decisores, os políticos em geral estão e querem compreender esta cidadania digital ou só lhes convém a maior visibilidade mediática que as plataformas lhes conferem?

E como é que as democracias vão lidar com fenómenos complexos quando já todos percebemos que os extremistas sabem tirar mais proveito das redes do que os seus opositores? E ficarão sempre dependentes da autorregulação dos gigantes tecnológicos e de umas cosméticas em prol da privacidade, da segurança e da liberdade de expressão das comunidades? Continuarão ainda com leis fiscais obsoletas e à mercê das artimanhas dos líderes do digital?

A presença e ação do Estado na rede é anacrónica, desajustada e tímida. Até mesmo na gestão de crises, não aproveitando as potencialidades óbvias. Recordemos os incêndios de 2017 e agora a pandemia. Basta contar quantas aplicações institucionais temos instaladas nos smartphones para o perceber ou enumerar quantas vezes vimos organizações do Estado no nosso feed.»

Manuel Molinos