Translate

sábado, 4 de julho de 2020

O virtuoso fact-checking

por estatuadesal

(António Guerreiro, in Público, 03/07/2020)

António Guerreiro

A partir do momento em que se entrou na época da “pós-verdade” (consagrada em Novembro de 2016 como “palavra do ano” pelo Oxford Dictionaries, o departamento da Universidade de Oxford que se ocupa da elaboração de dicionários da língua inglesa), o ponto mais elevado a que se ergue o jornalismo, nas suas auto-representações, através das quais ele reivindica um capital de prestígio designado como “jornalismo de referência”, é o fact-checking, isto é, a verificação da informação que, por qualquer meio, é posta a circular no espaço público.

O processo de fact-checking, pelo qual os que o praticam outorgam a si próprios o estatuto de sujeitos-supostos-saber (que me seja perdoado este anglicismo), separa a verdade da mentira, depura os factos das interpretações viciosas, resgata a realidade às fábulas difundidas como maquinações. Usando uma palavra vinda das origens gregas desta discussão, chamemos-lhes “epistemocratas”. E, no entanto, este ofício virtuoso dos fact-checkers não deixa de ter um sabor amargo e de provocar a suspeita de que ele não ousa dizer o seu nome completo, muito menos virtuoso do que parece.

Em primeiro lugar — mas isto é talvez a crítica mais ligeira que lhe pode ser feita — o jornalismo do fact-checking não apreende, como se tornou hoje necessário, o fenómeno das fake news que caracteriza verdadeiramente aquilo a que se chama “pós-verdade”, em que se dá uma perda da distinção — e uma interferência — entre o verdadeiro e o falso. A eleição de Donald Trump e o Brexit são os dois acontecimentos supremos que dão uma projecção global ao triunfo da pós-verdade. Para o “jornalismo de referência”, a separação nítida entre o verdadeiro e o falso é actualizada e promovida sobretudo pelas redes sociais, consideradas os lugares por excelência da mentira e da manipulação. Mas este olhar previamente orientado resulta numa certa cegueira em relação a outros lugares mais interessantes, exactamente porque menos óbvios: aqueles em que este jornalismo que faz do fact-checking a sua bandeira de combate é incapaz de reconhecer o papel activo que desempenha no mundo político da pós-verdade, desde logo porque se situa exclusivamente no campo das verdades factuais e, para além delas, é incapaz de discutir o que quer que seja, como se o mundo — político, social, cultural, etc. — fosse um conjunto de factos e acontecimentos e estes esgotassem tudo o que há para ser dito. Esta é a grande falácia do fact-checking, de um jornalismo a que alguém já chamou “pós-político” (um nome que sugere que ele é consubstancial à pós-verdade), e que tem as características de uma concepção espontânea e muito imediata da sua prática. Quem nunca percebeu que as mentiras e incorrecções detectadas neste processo de verificação são quase sempre dotadas de argúcias e subtilezas que são aquilo que importaria analisar,  é porque já prescindiu de toda a atitude crítica. Os mesmo que fazem com toda a convicção o fact-checking são os mesmos que não sabem perceber que os factos, muitas vezes, dizem muito pouco acerca de si próprios e que até os discursos imbecis podem ser inteiramente feitos de verdades. Os noticiários televisivos são hoje uma amostra muito eloquente desta fetichização dos factos, das imagens que mostram a realidade e no entanto mentem ou induzem à mentira. A situação particular da pandemia exacerbou este pecado capital, como se percebe perfeitamente no jornalismo de casos e de números, ilustrados por imagens e palavras que nada dizem ainda que sejam verdadeiras, e por reportagens sobre os potenciais portadores do vírus, trabalhadores vindos das periferias nos transportes públicos. Sobre a transição das imagens indulgentes em relação aos “transgressores” em busca de lazer da primeira fase para as imagens repressivas e acusadoras transmitidas nas últimas semanas, escreveu Paulo Pedroso um texto onde faz uma análise muito pertinente, no PÚBLICO de 27 de Junho, A covid-19 e o elitismo.

O jornalismo do fact checking é o mesmo que, através de uma concepção editorialista que domina hoje o jornalismo (refiro-me ao peso que nele adquiriu a opinião e o comentário políticos, em detrimento do jornalismo propriamente dito), permite que seja precisamente aí, onde factos e interpretações escorrem livremente e sem controlo, o lugar privilegiado da “pós-verdade”.


Livro de recitações

“E os pós-modernos, a maior parte dos quais filósofos de esquerda,
ficam a pairar, suspensos, cortados da sua raíz?”
Sérgio Sousa Pinto, in Expresso, 27/06/2020

A questão surge no final de um texto sobre “a nossa condição” e as manifestações iconoclastas das últimas semanas. Dizer de alguém que é “pós-moderno” tornou-se uma acusação que dispensa argumentos. Mas ela é sempre endereçada a alguém indefinido, a uma categoria que só conseguimos adivinhar a quem corresponde se conhecermos o discurso do acusador. Se perguntarmos a Sérgio Sousa Pinto quem são os filósofos pós-modernos que cabem na sua designação, todos os nomes que ele propuser estão certamente sujeitos a uma veemente refutação, desde logo porque tal categoria, tirando talvez os fugazes respresentantes do “pensiero debole” italiano, é vazia. E a “aversão à modernidade” que ele vê nos “soldados intelectuais da desconstrução”, deixando intuir nesta metáfora jocosa a quem se refere, denuncia o discurso estereotipado, sem uma ponta de rigor, que faz da noção de pós-moderno um sintoma da aversão reaccionária a tudo o que tem um potencial crítico da ideologia espontânea de quem assim escreve.

Correr atrás do prejuízo

Posted: 03 Jul 2020 03:23 AM PDT

«A comunicação em saúde e, mais especificamente, a comunicação de risco, é um dos aspectos fundamentais na saúde pública. Uma comunicação em saúde eficaz deve envolver, influenciar, e dar poder aos indivíduos e comunidades. É, portanto, fácil de perceber que a evolução de um cenário de pandemia depende largamente da eficácia de um plano de comunicação de risco, que aumenta as probabilidades de as comunidades se comportarem como parceiras das autoridades de saúde, promove a contenção do risco, e diminui uma eventual oposição às medidas de saúde pública.

Dito isto, não tenhamos dúvidas de que a comunicação de risco é um processo altamente complexo e, ao contrário do que muitos parecem julgar, nem todos os “especialistas” que diariamente vemos no espaço público mediático estarão aptos a praticar este tipo de comunicação. Exemplo disto mesmo é a aparente ausência de estratégia do Governo e, por arrasto, das autoridades sanitárias no que à comunicação diz respeito.

De facto, há muito que se percebeu que, em termos de comunicação, anda-se repetidamente a correr atrás do prejuízo. Não parece existir uma estratégia de comunicação concertada ou sequer profissionais capazes de orientar políticos e técnicos naquelas que são as maiores dificuldades da comunicação de risco.

E se no início desta pandemia poderíamos pensar que todos fomos apanhados desprevenidos, e que as estruturas, incluindo as oficiais, precisavam de se adaptar, a verdade é que, quatro meses volvidos desde o primeiro caso confirmado em Portugal, pouco ou nada mudou em termos de comunicação.

A resposta comunicacional tem ficado muito aquém do que seria desejável, sendo simultaneamente pouco pragmática e pouco tranquilizadora. A comunicação oficial resume-se praticamente às conferências de imprensa, até há bem pouco tempo diárias, protagonizadas por representantes das autoridades sanitárias e por governantes pela hora de almoço, num modelo que claramente não acompanha nem a evolução epidemiológica nem a avalanche de informação com que nos deparamos a toda a hora. O mesmo pode ser dito em relação à documentação que, nos últimos meses, tem sido divulgada pela Direcção-Geral de Saúde (DGS) através do seu site. Um sem fim de comunicados, normas, orientações, informações, que deixam até o especialista mais atento perdido no meio dos documentos.

Não devemos também esquecer que nem só de palavras vive a comunicação e, neste aspecto, a classe política precisa de ser relembrada, uma e outra vez, de que o distanciamento social também se lhes aplica. De pouco adianta dizer à população para cumprir o distanciamento quando os próprios políticos aparecem frequentemente em grupo no espaço público mediático, num claro exercício de “olha para o que eu digo, não olhes para o que eu faço”.

Os últimos seis meses foram, de facto, particularmente férteis em maus exemplos de comunicação protagonizados por entidades oficiais, precisamente aquelas de quem se esperaria mais contenção, por um lado, e maior assertividade, por outro. A comunicação é frequentemente o “parente pobre” em vários domínios e a actual crise de saúde pública tem posto a nu uma série de fragilidades que começam muitas vezes nos organismos oficiais. É urgente repensar a comunicação em saúde a partir das entidades oficiais, adaptando a resposta comunicacional à situação que vivemos e promovendo a comunicação a um lugar mais central no “combate” a esta pandemia.

A valorização da comunicação em saúde, que implica naturalmente a integração de especialistas em comunicação na resposta às crises sanitárias, é um investimento a vários níveis. Porque uma aposta na comunicação em saúde é o melhor caminho para o aumento da literacia em saúde, que contribuirá para que tenhamos cidadãos mais informados, mais autónomos, e mais capacitados para lidar com o risco em saúde pública.»

Rita Araújo

sexta-feira, 3 de julho de 2020

A escolha que sobrava para a TAP

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 02/07/2020)

Daniel Oliveira

Já o escrevi demasiadas vezes para ter de desenvolver muito mais: a renacionalização da TAP, depois da estranhíssima privatização na 25ª hora organizada por Passos (quando já sabia que não seria primeiro-ministro), foi uma fraude política. Uma fraude política dirigida por António Costa, executada pelo seu amigo Lacerda Machado – que depois foi nomeado para o Conselho de Administração da companhia aérea – e pelo qual deu a cara o agora eurodeputado Pedro Marques. O seu sucessor no Ministério limita-se a ter de resolver o que todos recebemos. A cláusula do contrato, que permite aos privados recuperarem os cerca de 200 milhões que emprestaram à TAP através de prestações acessórias no caso do Estado reforçar a sua posição acionista, é a confissão da própria fraude.

Escrevi, há uns dias, que havia três escolhas possíveis: meter mais dinheiro na TAP e manter esta situação pantanosa e insustentável, nacionalizar a TAP por via de aumento de capital ou de outra forma, ou permitir que TAP fosse à falência– deixando de ter uma companhia de bandeira ou criando uma nova, mais pequena, ao lado. À hora a que escrevo ainda não é claro se o controlo público se fará a bem ou a mal. Espero que seja a bem. A boa notícia é que foi posta de lado a possibilidade da injeção de dinheiro público sem controlo público. Não repetiremos Novo Banco, porque não entregamos o dinheiro do Estado para que outros tomem todas as decisões. O chumbo do acordo de empréstimo, por parte do Conselho de Administração da TAP, fechou essa parte de toda esta triste novela, que vai da privatização pela calada da noite à renacionalização que nunca o foi.

Quem julga que com a solução de Passos Coelho não estaríamos na mesmíssima situação, está desatento: teríamos de salvar a TAP, porque precisaríamos dela na mesma. Aliás, a principal conclusão do que se passou há cinco anos é que, no essencial, não mudou nada. Por isso mesmo foi uma fraude.

Sobravam as outras duas possibilidades. Há muito que defendo que Portugal não deve depender do turismo para viver. Mas dizer isso não é achar que podemos deixar a casa arder. 90% dos nossos turistas chegam pelo ar (os opositores do TGV estarão seguramente orgulhosos desta dependência) e uma parte não negligenciável vem pela TAP. Os responsáveis do turismo explicam o efeito que teria o desaparecimento da TAP para a nossa principal atividade exportadora. Seria estranho que o Estado gastasse milhares de milhões para tentar salvar a economia e deixasse falir uma das que mais ajuda a exportar. E não se julgue que esta escolha é a mais confortável para o Governo. Terá de ser ele a reestruturar a empresa, com custos políticos. E não sabe ao certo o que o espera. Só pode haver um plano para a TAP quando o Estado souber ao certo o que lá se passa, o que não tenho a certeza que acontecesse na atual solução.

Falar dos custos da nacionalização ignorando os efeitos da falência para a economia, para o Estado e para o emprego é fazer demagogia. E se é para meter dinheiro do Estado, que o Estado controle o dinheiro que lá põe – e os privados não queriam pôr nenhum.

David Neeleman não queria ficar. Mas queria ir-se embora com algum. Esse algum seria garantido pela tal cláusula que nunca deveria ter existido. Perante isto, a nacionalização à bruta foi a arma negocial do Estado. Na realidade, o litígio é mau para todos. Ao Estado, porque pagará mais do que Neeleman lhe pede, através da decisão de um tribunal arbitral. A Neeleman, porque terá de esperar pela resolução judicial. Mas o controlo público ou a falência eram as únicas alternativas. Acionistas privados que não querem pôr um cêntimo na TAP não lhe garantiam qualquer futuro. O resto é barganha negocial em torno de uma meta de 50 milhões, que tinha um valor um simbólico para o Governo. Humberto Pedrosa, que quer continuar na empresa – suponho que por razões de prestígio social –, chegou a ser uma possibilidade para desbloquear o impasse. Não sei se no fim ainda o será.

No momento em que escrevo, o Estado cedeu pagar 55 milhões, cerca de um quarto do que teria pagar segundo a cláusula. Mas quer que a Azul, de Neeleman, renuncie à conversão em ações do empréstimo de 90 milhões (a taxas de juro de assalto) que fez à TAP. É por isto que tudo está pendurado e é por isto que o Governo pode ter de optar por uma nacionalização, no Conselho de Ministros de hoje. É para aí que as coisas apontam no momento em que escrevo. Mas o controlo público (70% para o Estado, 25% para Humberto Pedrosa e os restantes 5% continuam com os trabalhadores) é certo. Não havia outra saída para quem não concorde com a falência.

Nenhuma novela acaba sem um bom dramalhão. E o amigo de Costa e dos negócios, primeiro responsável pela desastrosa fraude política da "nacionalização", com respetiva cláusula que agora torna tudo mais difícil, já começou a vender a sua narrativa, tentando passar para quem chegou há uns meses a responsabilidade deste desfecho. Todas as personagens se podem tentar reinventar. Sempre no registo opaco que caracteriza alguém que tem como cargo ser amigo de alguém, Lacerda Machado não foge à regra. E a Costa, dá-lhe jeito enjeitar as suas próprias responsabilidades. Lacerda ainda tentará passar pelo homem que tentou salvar a TAP. Tudo se consegue, basta querer muito.

A normalidade é uma ilusão: a crise não

Posted: 02 Jul 2020 03:47 AM PDT

«A interrupção da vida quotidiana causa pela pandemia de covid-19 na Índia lembrou-me uma chocante decisão de Narendra Modi em Novembro de 2016: descontinuar 86% da moeda indiana (desmonetização); o desaparecimento abrupto de dinheiro prejudicou a cadeia de fornecimento e fez com que o desemprego sistémico piorasse a vida dos indianos mais pobres – interrompendo as suas vidas – do mesmo modo que a pandemia os afecta agora. Devido à covid, o Estado indiano, como outros, enfrentou uma situação anormal – uma suspensão da normalidade. O que significa a normalidade para a população indiana? A quem serve a normalidade?

Para os milhões de trabalhadores informais a “normalidade” pode ser uma ilusão. Durante o lockdown indiano centenas de trabalhadores migrantes morreram e desapareceram da superfície da sociedade, sem deixar rasto. Trabalhadores informais, vendedores de vegetais, fazendeiros pobres, vendedores de rua, pessoas em situação de rua – todos são partes dessa normalidade da excepção. Eles têm vivido, desde sempre, uma situação dura, uma vida anormal sendo a normalidade para eles. Essas pessoas, pessoas de lugar de abjecção como nos diz Julia Kristeva, sobrevivem com escassos salários diários, enfrentam a violência policial e têm a apatia do resto da sociedade – isto, diariamente; possivelmente, a normalidade é apenas uma ilusão para eles.

O lockdown na Índia forçou a deslocação da população migrante. A pandemia não é uma situação de crise que podemos claramente opor à normalidade; essa é uma crise permanente para milhares de trabalhadores e trabalhadoras migrantes – incapazes de garantir mesmo a própria alimentação – que foram forçadas a regressar a pé às suas cidades, enfrentando descalças centenas de quilómetros, sem comida e sem poderem aceder aos transportes, que pararam. A crise, para eles, não é uma excepção em relação à dita normalidade. Já tantas vezes sentiram a interrupção das suas vidas diárias que a palavra “normalidade” perdeu o sentido para eles.

As suas vidas foram sabotadas pelo “discurso da normalidade”, que faz parecer que as suas vidas são vividas na normalidade, como os restantes compatriotas. Na verdade, foram encurralados num inescapável ciclo de crises pelo Estado, pelas corporações e pela classe média privilegiada. A maioria vive em favelas; sentem a crise através da extrema pobreza, da fome, da doença e da profunda desigualdade salarial. A crise é uma parte essencial das suas vidas, vidas onde a ideia de “vida normal” está ausente.

Eles são o fundamento invisível da sociedade visível, fundamento sobre o qual a nação e o Estado se mantêm. Sem eles, a sociedade indiana não poderia funcionar. Para os 450 milhões de trabalhadores informais indianos, a vida nunca foi normal. Se é que a sua própria existência importa ao Estado indiano – eu tenho sérias dúvidas sobre isso. Sem seguro de saúde, em condições de trabalho precárias, sem segurança social, baixos salários; as suas vidas têm sido um permanente estado de crise, mesmo durante os ditos “tempos normais”.

Durante o infame lockdown indiano, vimos os cadáveres dos pobres, dos famintos, dos pedintes, desempregados, trabalhadores migrantes, mulheres e crianças – desumanamente espalhados ao longo do país. Mesmo nos tempos ditos normais, eles já morriam assim; morriam de fome, de doença, suicidavam-se devido a dívidas, morriam pelas mãos da violência estatal ou da discriminação estatrificada. Não obstante, foi durante os tempos anormais da pandemia que as suas mortes chamaram mais atenção e simpatia. Contudo, aqueles que sobreviveram agora morrem aos poucos com o desemprego, a inflação e a incapacidade para comprarem comida. A transformação necessária na Índia ainda está por acontecer.

De facto, a pandemia perturbou profundamente a vida de milhões, a nível global; contudo, foi a incapacidade da liderança de certos países que exacerbou a crise. O caos organizado do governo da Índia levou a uma crise humanitária de proporções épicas, reproduzindo desigualdades já existentes e aprofundando a exclusão da população marginalizada. São tempos como estes que atestam a capacidade do Estado para assegurar as necessidades básicas da população vulnerável. Em tais crises, a liderança efectiva poderia evitar o desastre, como aconteceu no caso de Portugal e da Nova Zelândia.

Em Portugal, em contraste com a Índia, foi adoptada uma abordagem humana no combate à pandemia. Foi dado tempo suficiente para que as pessoas se organizassem antes que a emergência nacional passasse a ser efectiva – aos indianos, foram dadas apenas horas antes do lockdown – ninguém foi brutalizado pela polícia e o transporte público passou a ser completamente gratuito para todos. No entanto, entristeceu-me ver, em Lisboa (aonde estive durante o lockdown), como alguns empresários da comunidade asiática, principalmente bengaleses, paquistaneses e chineses exploravam os seus empregados asiáticos. Salários diminuídos, extensão das horas de trabalho, demissões sem direitos, coacção, incumprimento do contrato de trabalho – esses são algumas das violações dos direitos humanos a que me refiro. Durante o lockdown, trabalhadores asiáticos sofreram nas mãos dos patrões asiáticos. Mas, em tempos normais, eles sofrem o mesmo destino, diariamente. A normalidade, provavelmente, é uma ilusão para eles – mas a crise não é. Dor, agonia e frustração que emergem da crise é algo bastante real para eles.

Finalizando, pode-se dizer que a pandemia instaurou uma crise de carácter excepcional para as elites e para a classe média. Contudo, para os milhões de trabalhadores migrantes indianos a crise é a normalidade. A pandemia expôs a fragilidade da sociedade indiana. Mostrou o desprezo da sociedade indiana aos seus trabalhadores migrantes. O quanto as sociedades podem aguentar forças de voláteis disrupções – só o tempo dirá. A pandemia pode até ter redefinido a ideia de normalidade aos privilegiados. Mas para os excluídos, marginalizados e discriminados, o conforto da normalidade foi sempre uma ilusão.»

Amit Singh

quinta-feira, 2 de julho de 2020

A 25ª hora do apartheid

Posted: 01 Jul 2020 03:45 AM PDT

«Calculista, antecipa que terá pela frente não mais do que um protesto fingido dos sauditas, a quem promete uma frente comum contra o inimigo iraniano, um aplauso da Casa Branca, um assentimento compungido de Gantz, com quem formou uma coligação que prometia um caminho distinto desta iniciativa de confiscação territorial, e o entusiasmo da extrema-direita israelita.

Mesmo que nenhum dos seus antecessores tenha tido o atrevimento de proceder a esta anexação, se bem que todos tenham violado as deliberações das Nações Unidas com uma displicência que fez escola, para Netanyahu o jogo é tudo ou nada.

Desde as primeiras vitórias militares contra os palestinianos e os exércitos árabes, e com a ocupação de Jerusalém, Israel tem desprezado a solução dos dois Estados, que aliás se tem revelado um beco sem saída. Impôs assim uma divisão e descontinuidade territorial entre Gaza e a Cisjordânia, operando deste modo uma fragmentação política e impedindo a constituição de uma comunidade nacional da Palestina, e submeteu este povo a uma estratégia que alguns têm comparado, o que é razoável, à da imposição dos bantustões do apartheid.

Ao mesmo tempo, criou uma tecnologia de destruição, de vigilância e de punição coletiva (o assassinato extra-judicial, o derrube das casas das famílias dos acusados) que deixa uma marca irreparável, assente no direito irrestrito de matar e de demolir.

Mas a anexação dá um novo passo nessa escalada, retira território e empurra qualquer reivindicação nacional para a guerra. É mesmo o que Netanyahu pretende, o seu poder interno depende do militarismo, o seu poder externo depende da exibição incontestada do extermínio.

A Cisjordânia é um sexto do Alentejo mas tem mais do quádruplo da população, quase três milhões de pessoas (dos quais só 400 mil são colonos israelitas). É uma gigantesca concentração popular, de gente sofrida e humilhada. A sua terra é o que lhes resta e, por isso, só se pode esperar que esta aventura militar e política acentue a tensão e o conflito. Antes isso do que eleições, pensará o primeiro-ministro: se tivesse que dar direito de voto aos cidadãos da zona anexada (afinal, não se tornam eleitores em Israel se dele fazem parte?), toda a operação ficaria em risco. A guerra permanente é mesmo a política por outros meios.»

Francisco Louçã