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quarta-feira, 19 de agosto de 2020

Activismo pela Humanidade

Posted: 18 Aug 2020 03:48 AM PDT

«A estranheza reside no facto de ainda ser necessário. O activismo consiste na defesa de uma causa, dum ideal, é uma luta que se entende precisar de ser feita. É uma voz, é um grito, um acordar, uma chamada para acção, com o objectivo de mudar mentalidades e em última análise penetrar nos processos de decisão política.

O problema reside no facto de, a política ser fechada no essencial, a interesses puramente nacionais. E logo temos um histórico, um presente e um convite para um futuro em que a nossa empatia para com outros seres humanos, esbarra nas fronteiras do nosso país. Vejamos, por exemplo, a nossa análise às consequências da pandemia: Se em Portugal os números estiverem a descer e em Espanha a aumentar para nós é uma vitória, como se esta linha que nos divide, dividisse também as vidas que importam, e as que importam menos. E obviamente que nós sentimos empatia pelos espanhóis, pois cruzam-se connosco com frequência, compreendemos o que dizem, partilhamos a religião maioritária e culturalmente temos muito em comum. Sofremos quase como se fosse na nossa pele os ataques na estação de comboio de Atocha em Madrid em 2004. Mas se formos um pouco mais longe o nosso coração deixa de bater. Quando as nossas atenções entram em mundos onde a cor de pele é substancialmente diferente, quando rezam a um deus estranho ou falam uma língua muito “esquisita”, nós deixamos de sentir. Deixamos de ver a humanidade que nos une. Desvanece o nosso sentido de humanidade comum.

O Iémen é a maior crise humanitária dos últimos cem anos, cerca de 100.000 crianças já morreram à fome, e cerca de cinco milhões de crianças estão em risco de se juntar a essa estatística. Na guerra do Congo já morreram cerca de seis milhões de pessoas em 25 anos, em algumas zonas a violência sexual atinge 70% das mulheres, e só numa província (Norte Kivu) estão identificados 130 grupos armados. Na Síria já morreram cerca de 500.000 pessoas, há cinco milhões de refugidos a viver em condições de desespero e mais de seis milhões de deslocados sem dinheiro sequer para passar a fronteira. “E o que é que eu posso fazer?” É nesta frase que nos refugiamos, é aqui que cavamos o fosso da humanidade e nos protegemos e perdoamos pela nossa inacção! Mas há sempre alguma coisa que podemos fazer. Há sempre.

O PAN quadruplicou a sua presença no Parlamento à custa do seu activismo pelos animais e natureza. Porquê? Porque efectivamente há uma preocupação crescente com a casa onde vivemos. E ainda bem que o activismo pelo planeta tem ganho um espaço prioritário na cabeça e nos corações da maioria das pessoas. Mas o que é cada cidadão português e Portugal na sua pequenez mundial pode fazer para salvar o planeta? Pode fazer a sua parte. Tão simples quanto isso. E pela humanidade o que é que estamos a fazer? Nada!

Se alguém na Assembleia da República ousar perguntar o que é que Portugal está a fazer para combater as 500.000 mortes de crianças por ano em África (todos os anos!) de Malária, certamente que a resposta será que em Portugal também há pessoas sem médico de família. Sem se perceber a quão desumana é esta junção de premissas, deixamos o mundo girar.

“A culpa é dos políticos!” é outro dos nossos refúgios preferidos. No entanto esquecemo-nos que em democracia, os políticos não são líderes, são seguidores. Seguem as vontades de quem os elege. E são eleitos pelas nossas vontades. Sejam políticos por convicção ou oportunismo, são as nossas vozes que os fazem falar!

Gritemos pela humanidade que vos garanto, alguém nos vai dar as respostas. As soluções serão duras, complexas, demoradas e vão necessariamente envolver uma grande fatia da população mundial, assim como as que estão implicadas em salvar o planeta. Mas são possíveis. E o que nós temos de fazer enquanto indivíduos e enquanto país, é muito simples: façam ver na vossa opinião, na vossa voz, no vosso voto que todos os seres humanos são iguais e têm os mesmos direitos.

O segredo é compreendermos o enorme poder da nossa individualidade. Parece pouco, mas é tudo. Façam a vossa parte. Façam-nos pensar no mundo.»

Gustavo Carona

A pressa facebookiana é má conselheira

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 18/08/2020)

Há um par de dias, Carlos César usou da sua exuberante forma de cordialidade para exigir no Facebook aos partidos de esquerda que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”, mostrando se “são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a legislatura...ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços”. A meio de agosto e antes de começarem as negociações detalhadas sobre os temas do Orçamento, este “de uma vez por todas e sem mais demoras” soa ao que é. O problema é que para fazer chantagem se exige algum saber e basto sentido de oportunidade. Ambos escasseiam neste “de uma vez por todas”.

Há um ano atrás, em junho e era véspera de eleições, o mesmo César explicava que o PS não devia continuar a geringonça e devia romper com o Bloco porque, se o PS fosse “sempre atrás do BE”, o país voltaria “ao tempo da bancarrota”. Num discurso aos seus deputados, explicou que era preciso evitar as “aventuras orçamentais que levariam ao colapso e à desconfiança internacional” e que, para isso, a única solução era uma maioria absoluta contra os “bloqueios” e “constantes dificuldades” da geringonça. O primeiro-ministro, em entrevista ao Expresso, explicou o mesmo apelo aos eleitores: ou maioria absoluta ou caos. Parece que, um ano depois, é ao contrário, haverá bancarrota se não houver acordo “de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”.

Há um ano, havia em todo o caso uma alternativa na manga, que era o “acordo de cavalheiros” com o PCP. O PCP tem “uma estabilidade na sua ação política que lhe dá coerência, sustentabilidade, previsibilidade, e, portanto, é muito fácil trabalhar com ele”, dizia Costa. E era uma certeza pessoal, a mais profunda das emoções: “quando ele (Jerónimo) diz que entre gente de bem basta um aperto de mão ou mesmo olharmo-nos olhos nos olhos”, não é preciso um acordo escrito, explicava o primeiro-ministro. Com a sua “experiência de trabalho com Jerónimo de Sousa", Costa afirmava não ter a “a menor das dúvidas”, assunto arrumado. Olhando-se nos olhos, com um aperto de mão, “é fácil trabalhar” com o PCP, a coisa estava garantida, não havia “a menor das dúvidas”. Parece que, um ano depois, é também ao contrário, já é conveniente o acordo escrito que era então rejeitado.

O certo é que falhou tudo. O PCP foi prejudicado por estas insinuações, o PS não teve maioria absoluta e foi necessário definir as novas condições de governação. Mas, como antecipado por tais declarações belicistas, a partir das eleições o governo recusou qualquer quadro de cooperação para a legislatura.

A geringonça foi enterrada com a convicção de que o PS estava mais forte e ditava a lei, quando, pelo contrário, ao perder a oportunidade da maioria absoluta e ao destruir a geringonça, ficou mais frágil, como hoje se verifica nestas aflições de agosto.

Curiosamente, César agora culpa o PCP, com o qual então não havia “a menor das dúvidas”, pela rejeição da geringonça e pela instabilidade política assim criada: “A recusa do PCP, logo após as últimas eleições, em subscrever um acordo para esta Legislatura, tal como havia sido conseguido na anterior, prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com um único parceiro - o BE -, do qual resultaria, certamente, uma tendência de exclusão do PCP e em pouco reduziria a ameaça da instabilidade”. É uma acusação injusta e até extravagante, dado que essa recusa tinha sido claramente anunciada por Jerónimo de Sousa durante a campanha e foi Costa quem inventou um pretenso idílio em que bastaria “olharem-se nos olhos” e “um aperto de mão” para tudo ficar resolvido. Era falso, como se verificou num ápice.

Assim, a realidade é teimosa: há um ano, o PS recusou começar uma negociação que poderia criar uma maioria parlamentar, pois não aceitava um acordo, afirmando que este levaria à “bancarrota” e, além disso, não admitia que estivessem na mesa de discussão as reformas laborais da troika, apesar de prometer ao país um “olhar nos olhos” com o PCP, numa encenação unilateral. Um ano depois, César exige ao PCP (com quem “é fácil trabalhar” mas não quer) e ao Bloco (que propôs um acordo mas que foi recusado) que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”. A palavra “calculismos” tem aqui um sabor amargo. O problema é que o governo ainda não fez as suas escolhas para apresentar as suas propostas orçamentais; que o plano Costa e Silva ainda não foi concretizado em projetos de médio e longo prazo; e que as discussões detalhadas entre o governo e os partidos de esquerda ainda não avançaram, estando agendadas para as próximas semanas. Como podem então concluir-se antes de começarem? A intimação facebookiana de César só tem por isso uma leitura e não lhe é lisonjeira.

Era preferível mais prudência e menos calculismo. Sair da gritaria no Facebook e sentar-se em reuniões de trabalho. Evitar truques de retórica e estudar propostas. Deixar as rasteiras e discutir questões difíceis. Evitar atalhos. Aliás, poderia ser um sinal interessante que o governo aceitasse agora discutir normas da lei laboral no combate à precariedade e desemprego, se não se tratar de um engodo que vá desaguar no direito de veto das associações patronais na concertação social, mas é preocupante que ao mesmo tempo inicie um recuo sobre o salário mínimo nacional. No meio destes movimentos paradoxais, a ordem dada pelo presidente do PS é o mais desastrado das percalços.

terça-feira, 18 de agosto de 2020

O lar de Reguengos e o preço de encerrar um país pobre

Posted: 17 Aug 2020 03:48 AM PDT

«Não é apenas em Portugal que os lares são os espaços mais sensíveis para esta pandemia. Cá, acrescem problemas como a pouca qualificação dos funcionários e os lares ilegais. Será a justiça a avaliar o que a lei pode punir, caso se confirme a macabra conclusão do relatório da Ordem dos Médicos que a ministra decidiu que não valia a pena ler antes de dar uma entrevista em que este seria, previsivelmente, um dos temas principais. Não é todos os dias que se descobre que pessoas institucionalizadas morreram desidratadas. Por isso, é justo que as falhas na fiscalização e a responsabilidade política da ministra em relação ao que aconteceu no lar de Reguengos dominem o debate público. Sobretudo depois da entrevista catastrófica que deu ao Expresso.

Mas é bom recordar que a responsabilidade primeira é da Fundação Maria Inácia Vogado Perdigão Silva, proprietária do lar e dirigida pelo presidente da Câmara. É injusto sublinhar o trabalho extraordinário do sector social quando corre bem e ficar pelas responsabilidades de fiscalização do Estado quando corre mal. Quando se trata de transferir funções sociais do Estado o sector social está acima de qualquer suspeita, mas quando há ganhos políticos a tirar de uma tragédia lá se descobre que também nele reina a promiscuidade com interesses partidários (e económicos, e religiosos). Porque este é um problema transversal ao país, não apenas no Estado.

Sei que todos preferiam ficar por aqui. Mas há uma culpa coletiva que pesa sobre os nossos ombros. Alimentamos um equívoco há meses: o de que instigar o medo nas pessoas levaria a que se preocupassem mais com os mais vulneráveis, a começar pelos velhos. Nunca foi assim nas pandemias. Para além de revelarem as fragilidades que já existem na sociedade, elas tendem a exibir os instintos mais primários e egoístas. E é por isso que os velhos de Reguengos foram abandonados. Porque o medo foi instigado até à crueldade. É verdade que, pelo menos ali, os problemas nem sequer começaram com o covid. Ele só agudizou o abandono. Ali e um pouco por todo o lado. O isolamento em relação às famílias e à sociedade nunca poderia ser bom para os mais velhos. Era só mais fácil, no meio do pânico.

Agora, que começa a vir à superfície o preço encerrar um país pobre em casa e nos lares, serão os que exigiram que isso se fizesse depressa, em força e sem ponderações os mais lestos a procurar os culpados pelos custos do confinamento. As doses cavalares de medo, que a absurda repetição quase diária em telejornais do número de mortos e infetados alimentou, tem forte responsabilidade no abandono destes velhos. E nos muitos que morreram por não procurarem ou não encontrarem apoio médico noutras doenças. E nas crianças roubadas do seu crescimento saudável. E no suicídio económico do país.

Estou nos antípodas da irresponsabilidade de um Bolsonaro ou de um Trump. Há uma pandemia e temos de ter cautelas. Mas a morte pela cura está mesmo a consumar-se. E estas mortes terão de pesar na consciência de quem, mesmo depois delas, não tenha a coragem de correr alguns riscos no regresso ao mínimos de normalidade. Comecemos por nos redimir abrindo todas as escolas, já em setembro, apoiados em estudos que nos dizem que é isso mesmo que temos de fazer.

Quanto aos lares, espero que este macabro episódio (que, como escreveu o Henrique Raposo, mobilizou menos indignação do que a tragédia de Santo Tirso) tenha pelo menos servido para deixar claro que o isolamento dos velhos nos lares é um crime. Morrer velho por causa de uma pandemia é, desde que às vitimas tenha sido dado o direito de escolha lúcida e informada, uma tragédia. Mas faz parte das tragédias humanas. Morrer abandonado e desidratado é uma inaceitável crueldade. Todos acabaremos por morrer, mas as mortes não são todas iguais. Pelo menos no que dizem da sociedade em vivemos.»

Daniel Oliveira

segunda-feira, 17 de agosto de 2020

“De uma vez por todas e sem demoras”. Carlos César apela à esquerda que diga se quer acordo com PS”


“De uma vez por todas e sem demoras”. Carlos César apela à esquerda que diga se quer acordo com PS

por estatuadesal

(Liliana Valente, in Expresso Diário, 17/08/2020)

O presidente do PS lança pressão aos antigos parceiros da "geringonça". Ou decidem agora ou "preferem assobiar para o ar à espera de percalços"?


A colagem fotográfica é quase nostálgica. Nela aparecem os quatro líderes, Heloísa Apolónia (PEV), Catarina Martins (BE), Jerónimo de Sousa (PCP) e António Costa (PS) e num canto, Carlos César, a olhar para a assinatura das posições conjuntas que há cinco anos selavam o compromisso de um apoio que duraria os quatro anos da legislatura passada. O presidente do PS pôs esta colagem (os acordos foram assinados separadamente) no seu Facebook, pensada ao pormenor para o recado que tinha para dar: É hora de "PS, BE, PCP e PEV assumirem essa necessidade e definirem-se de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos. O país precisa dessa tranquilidade e de uma governação estável e responsável, com o apoio activo da esquerda portuguesa", escreveu Carlos César.O tempo em que o faz não é de somenos. Carlos César veio a terreiro na semana em que Governo e partidos à sua esquerda se preparam para se sentarem à mesa das negociações: esquerda com olhos postos no Orçamento do Estado para 2021; Governo com a intenção anunciada de um acordo para a legislatura, uma "geringonça" 2.0, com o PAN como plus e a pandemia como cola.

António Costa tem repetido que quer governar com os antigos parceiros e desde o debate do Estado da Nação, a meio de Julho, que fez saber que quer levar esta intenção de novo para o plano dos acordos, com um entendimento duradouro, que lhe dê garantias na legislatura. Aos apelos de Costa, junta-se o pragmatismo de César que diz à esquerda que "é tempo" de dizerem se "são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a legislatura...ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços".

A expressão "enunciado programático" leva o tal entendimento a um conjunto de princípios mais do que medidas. E a expressão "suficiente, mas claro" remete para um acordo pelos mínimos, ou seja, um acordo de princípios em que estejam de acordo, não entrando nos pormenores em que se dividem. No seio do Governo há quem recorde que foi exactamente o que aconteceu nas posições conjuntas de 2016, em que os partidos deixaram de fora os temas sobre os quais não se entendem, as linhas vermelhas.

Contudo, em cima da mesa podem estar alguns dossiês em que não há grande confluência de pontos de vista, como é o caso da reforma da legislação laboral. BE, PCP e PAN querem aprofundar a legislação laboral no seu todo, o Governo só em pequenas doses, no que diz respeito ao teletrabalho e às novas formas de trabalho (como as plataformas colaborativas). O Bloco de Esquerda fez das alterações ao Código do Trabalho o seu cavalo de batalha nas negociações depois das eleições legislativas e não quer deixá-las cair. Aliás, o primeiro-ministro e Catarina Martins trocaram acusações durante meses sobre a "culpa" de não terem chegado a bom porto: Catarina Martins dizia que o Governo não quis negociar as alterações ao Código do Trabalho e Costa sempre disse que não aceitava as pré-condições para o diálogo.

No post que escreveu no Facebook, Carlos César fez arqueologia política para explicar o porquê de não haver entendimento desde o início, deixando de fora essa habitual troca de galhardetes com o Bloco de Esquerda e remetendo a responsabilidade da falta de acordo para o PCP. "A recusa do PCP, logo após as últimas eleições, em subscrever um acordo para esta Legislatura, tal como havia sido conseguido na anterior, prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com um único parceiro - o BE -, do qual resultaria, certamente, uma tendência de exclusão do PCP e em pouco reduziria a ameaça da instabilidade".

Mas o mundo mudou e agora a pandemia, acrescenta César, tornou imperativa a necessidade de mais estabilidade: "Entretanto, a crise pandémica do Covid 19, trouxe, ou assim devia ter acontecido, outra consciência sobre a absoluta necessidade de uma confluência formal e segura, que assegure um governo com uma orientação estável e um programa de recuperação com o fôlego e o sentido de médio prazo indispensáveis", escreveu.

De forma subtil, mas não deixando de referir, César deixa de fora o PSD. Nas últimas semanas, depois de Rui Rio ter admitido que não pode colocar de fora de cogitação no futuro conversas com o Chega, se este se moderar, o assunto tem estado na ordem do dia e não se tem ouvido muitos socialistas sobre o tema. Mas num dia em que sai uma sondagem que dá um aumento das intenções de voto em André Ventura, César diz do PSD: "O PSD está a ser claro quando se chega ao resto da direita". Frase que escreveu para concluir que não há outro caminho, que não seja pela esquerda.

Guia para vítimas sensatas

por estatuadesal

(Fernanda Câncio, in Diário de Notícias, 15/08/2020)

Parece que se descobriu que afinal temos um problema de racismo. Mas quem ainda ontem o negava agora diz que problema está tanto nos racistas como em quem os combate - é tudo gente nervosa. É que o racismo combate-se com muita calma: primeiro nega-se, depois nega-se e no fim culpam-se as vítimas.


Vou começar por um reductiozinho ad hitlerum, para poderem dizer que sou uma exagerada e já perdi a discussão antes de sequer começar.

É a história de seis raparigas que tinham entre 18 e 23 anos quando se deu a libertação dos campos de extermínio nazis, onde elas estavam e aos quais elas, ao contrário da maioria, sobreviveram. Essa sobrevida é contada em Depois de Auschwitz, um documentário de 2017 que narra o percurso de vida dessas seis judias, duas delas irmãs, e que passou na RTP3 na segunda-feira, 10 de agosto.

Nele ficamos a saber como a libertação esteve longe de ser o fim do martírio. As duas irmãs polacas, por exemplo, levaram um mês a conseguir voltar, pelos seus próprios meios, à cidade natal, para descobrirem que não só ninguém da família sobrevivera como a sua casa estava ocupada por polacos, que não tencionavam sair. A receção foi ódio e desprezo: "Porque voltaram? Estão a voltar mais do que os que partiram. Que vêm para aqui fazer? Vão-se embora."

Ainda assim, tiveram sorte: muitos dos que saíram dos campos de concentração, certifica-nos a voz off, acabaram por ser mortos ao tentar voltar a casa. Uma das irmãs confirma: dois judeus foram acusados de estar a negociar no mercado negro, amarrados a uma carroça e arrastados até à morte. O Reich fora derrotado mas o faroeste antissemita continuava muito bem de saúde, pelo que as duas perceberam que não bastava terem-lhes matado a família e roubado a casa: não tinham país sequer. E, como muitos outros nas mesmas circunstâncias, não viram outro remédio senão rumar à Alemanha ocupada, onde ao menos havia campos para desalojados.

É sempre tão fácil mantermos a calma e a fleuma, até o sentido de humor, em relação àquilo que não nos diz respeito. Raiva porquê, não é? Se podemos resolver as coisas com sensatez. Por exemplo o racismo - por que motivo havemos de nos irritar com o racismo?

"Estava muito zangada", diz uma delas. "Quando cheguei lá odiava tudo. Odiava o malvado chão, cada pessoa. Um dia estava num elétrico e vi um soldado americano a beijar uma alemã. Envergonho-me de o dizer mas empurrei-a para fora do veículo. Não conseguia controlar-me. Acho que se tivesse uma arma teria matado muita gente. Não podia perdoar o que nos tinham feito."

Acabaram por, como todas as seis sobreviventes, fugir para os EUA. Lá havia outros judeus, judeus que não tinham passado pelo mesmo. Mas precisamente por isso ninguém queria ouvir o que lhes tinha acontecido. "Cada vez que começava a falar do campo de concentração, diziam-me "Agora estás na América, isso ficou para trás, não interessa"", conta uma delas. E quando uma das irmãs polacas confessou a um primo americano que após a libertação tinha feito parte de um grupo que assaltava casas na Alemanha, a resposta dele foi: "Isso não está correto, roubar." Isso, explica ela com um sorriso, calou-a. "Percebi que não podia falar, porque seria julgada pelos padrões dele. Ele não sabia que existiam outros padrões."

Imaginem isto, se conseguirem: terem perdido toda a vossa família, a vossa vida, na mais completa barbárie; terem sobrevivido por um triz sofrendo e assistindo a coisas inomináveis e dizerem-vos que não podiam ter raiva, que não podiam ter vontade de vingança, que não podiam sequer assaltar as casas vazias dos vossos inimigos para sobreviver. Conseguem imaginar? Se calhar conseguem - basta não terem imaginação suficiente para tentarem colocar-se no lugar destas mulheres. Basta acharem que a raiva e o ressentimento são sempre coisas más, que nunca se justificam, mesmo perante o maior mal.

Isto leva-me a outra parábola, contada em Os Irmãos Karamazov, de Dostoievski: a da criança serva que o senhor feudal russo castiga à frente da mãe. A criança magoou sem querer um dos mastins do senhor; furioso, este encerra-a no canil toda a noite e a seguir larga os cães contra ela, obrigando a mãe a assistir à sua morte atroz. A conclusão do narrador é de que a mãe não tinha, mesmo que quisesse, o direito de perdoar-lhe; não podia perdoar pelo filho despedaçado pelos cães - essa dor, esse pavor, não era dela.

Lembro-me desta história sempre que vejo pessoas a advogar calma e perdão em relação a agravos e dores que não suas - é sempre tão fácil mantermos a calma e o fleuma, até o sentido de humor, em relação àquilo que não nos diz respeito. Raiva porquê, não é? Se podemos resolver as coisas com sensatez. Por exemplo o racismo - por que motivo havemos de nos irritar com o racismo? Foi racismo, claro, que ergueu os campos de concentração dos quais as seis raparigas do início do texto conseguiram escapar; foi racismo que lhes ocupou as casas; racismo que lhes disse, quando vinham do horror absoluto, "vão-se embora, não vos queremos aqui". Foi o racismo de muita gente, de países inteiros, de povos inteiros, que as vitimizou - mas, hey, elas não podiam ter raiva, não podiam sequer falar disso com fúria. Não puderam falar disso durante anos, décadas - era um assunto chato, desagradável, pesado. Melhor calar.

Com sorte, porém, talvez ninguém tenha dito às jovens judias "vocês com essa conversa sobre o antissemitismo é que criaram o nazismo". Talvez com sorte ninguém lhes tenha chamado histéricas ou odientas. E agora, dizem vocês que me leem, se chegaram aqui: mas estás a comparar o que aconteceu a essas raparigas com o que se passa com os negros e ciganos em Portugal? Reparem, estou. Estou realmente a comparar vítimas de racismo com vítimas de racismo, e racistas com racistas. Estou a comparar negacionistas com negacionistas e gente bem-intencionada e com muitos princípios que sofre de absoluta falta de empatia e de imaginação, como o primo da miúda polaca, com tantos de vocês, que não fazem a menor ideia do que é ter medo de polícias só porque se é negro ou cigano, que não sabem o que é ser insultado quotidianamente só porque se é negro ou cigano, ouvir todos os dias na vossa terra "volta para a tua terra". Que não sabem o que é ter a mãe ou o pai a dizer "não ligues quando te chamarem preto, nem respondas, continua como se nada fosse".

Como se nada fosse: é isso que vocês advogam, baixar a cabeça, calar a boca, engolir a humilhação, assumir o medo "para não ser pior"? Era isso que fariam? Ou nunca pensaram bem nisso sequer, porque não vos acontece, não vos aconteceu nem nunca acontecerá e, importante, não vai acontecer aos vossos filhos?

Reparem: eu, branca, também não sei o que é. Mas posso tentar perceber. Posso por exemplo ouvir crianças e adolescentes contarem a sua experiência de racismo ainda antes de saberem dar-lhe um nome, ainda antes de sequer se verem como diferentes da norma - porque é essa experiência que lhes confere uma identidade outra. Não sei dessa violência, não a senti nunca. Mas sei que não tenho, como a mãe de Dostoievski, o direito de perdoar pelos outros, muito menos exigir-lhes que perdoem ou que tenham calma, que não se irritem, que sejam "sensatos".

Agora, a outra questão, que é a mesma: se o discurso antirracista, se a denúncia do racismo, se a voz e o protagonismo crescente dos excluídos e discriminados acicata os racistas e os pode levar a uma escalada de violência? Sem dúvida. As mães e os pais negros sabem isso, por isso aconselham os filhos a calar. Se a maior representação e libertação dos grupos oprimidos tem uma relação direta com a ascensão da extrema-direita? Tem. Tal como é sabido que no contexto de violência doméstica o momento de maior perigo é aquele em que a vítima se tenta libertar, é provável que quando as vítimas de racismo se revoltam e começam a combatê-lo e a exigir direitos quem não quer admitir-lhos se sinta na necessidade de assumir mais claramente a sua posição. A violência esteve sempre lá - porque racismo é violência - mas fica mais visível para quem andava distraído.

Se compreendemos que os pais negros por medo do que possa suceder aos filhos negros lhes digam que oiçam e engulam os agravos e andem para a frente, como país não temos esse direito. Não temos o direito de pedir às vítimas que baixem a cabeça, e muito menos de as comparar, de as equivaler aos que as vitimizam e ameaçam.

Mas se sabemos tudo isto, e compreendemos que os pais negros por medo do que possa suceder aos filhos negros lhes digam que oiçam e engulam os agravos e andem para a frente, como país não temos esse direito. Não têm esse direito os representantes eleitos, não tem esse direito o Presidente da República, não tem esse direito o governo nem o líder da oposição. Não têm o direito de pedir às vítimas que baixem a cabeça, e muito menos de as comparar, de as equivaler aos que as vitimizam e ameaçam. Não chegava já termos chegado aqui graças à insultuosa persistência no negacionismo; tínhamos ainda de ouvir prescrições de sensatez e calma que não são mais do que culpabilização das vítimas. Tínhamos de como o primo da jovem polaca dar lições de boa educação à sobrevivente. Talvez dizer: se para sobreviveres tens de usar a tua raiva, então talvez seja melhor não sobreviveres. Soçobra sensatamente ao ódio que te dirigem - vai para a tua terra, vá.