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sábado, 22 de agosto de 2020

Quando nos descolonizamos?

Posted: 21 Aug 2020 04:10 AM PDT

«O 25 de abril de 1974 não pôs fim apenas a uma ditadura de 48 anos. Pôs fim a uma guerra colonial - que esteve mesmo na origem da revolta militar - e, num plano mais vasto, suspendeu séculos de identidade nacional e sistema político-económico assentes nos chamados descobrimentos, na expansão e no colonialismo.

A democracia que temos vindo a construir no último quase meio século não soube verdadeiramente lidar com esta mudança. Pode mesmo dizer-se que falhou nesse plano. Soubemos implementar as liberdades políticas e o estado de direito; soubemos, graças às lutas sindicais e das classes trabalhadoras, enfrentar as desigualdades de classe - apesar de permanecerem, transformaram-se, são reconhecidas e não são vistas como estatutos perenes como castas; soubemos, graças às lutas feministas, enfrentar o sexismo e a misoginia, promovendo a crescente igualdade de género); soubemos, inclusive, enfrentar as desigualdades com base na orientação sexual e na identidade de género. Mas não soubemos enfrentar as desigualdades assentes na etnicidade e na “raça”. Ou seja, não soubemos enfrentar o racismo.

Onde começa essa incapacidade? Desde logo na forma como confundimos a descolonização política com a descolonização das mentalidades. O passado colonial foi varrido para debaixo do tapete e o país foi reconfigurado como europeu, como tendo regressado ao seu território original. Mas a estória que contamos sobre nós próprios como história assenta ainda nos aspetos elogiados da expansão do estado português e do colonialismo como elementos centrais da identidade. Em democracia apenas passámos uma camada de verniz sobre velhas estórias. Acentuámos o “universalismo”, o “humanismo” e o “encontro de culturas”, inventámos a noção de lusofonia e a CPLP (ambas produtos portugueses e para consumo identitário português) e, no plano interno, investimos nos conceitos de “integração” e “interculturalidade”. Não revisitámos a história, não fizemos um processo de verdade e reconciliação, e não incorporámos negros e afrodescendentes (e ciganos) como verdadeiros cidadãos.

O problema é que essas camadas de verniz foram e são demasiado consentâneas com a narrativa herdade da ditadura. Normalmente resumimo-la na expressão “luso-tropicalismo”, que comporta a ideia de um colonialismo mais brando do que os outros e duma consequente ausência de racismo em Portugal, suposições ampla e definitivamente refutadas pela investigação histórica e antropológica contemporânea.

Nada mudou verdadeiramente, dos livros escolares à conversa de café. Nem sequer o tremendo esforço de construção da democracia e duma sociedade mais justa veio substituir a estória que contamos sobre nós próprios. Não parece ser disto, da liberdade e da democracia, que a maioria dos portugueses se orgulha, mas sim, e ainda, dos “descobrimentos”, da expansão e mesmo do colonialismo e seus avatares contemporâneos. Há quase 50 anos que o Estado português, e mesmo a sociedade, recusa a ideia de uma narrativa mais complexa, que inclua também o comércio de pessoas escravizadas, as campanhas de “pacificação”, o trabalho forçado imposto aos indígenas das colónias, e tantas violências físicas e simbólicas perpetradas nas colónias. Isto reforça a noção dos americanos originais e dos africanos como objetos da história e da nossa ação, e não como sujeitos.

Todo o ocidente moderno foi construído a partir da indústria do trabalho escravo massificado (e é isso que o distingue de outras formas anteriores de escravatura) e da exploração colonial. Ambas necessitaram da invenção da noção de raça (que, mesmo sendo um conceito biologicamente inválido, tem efeitos sociológicos ainda) e da sua articulação em hierarquias de mais primitivos a mais civilizados, os primeiros necessitando ou da proteção e paternalismo dos segundos ou merecendo a punição e a subjugação pela sua inferioridade. O racismo nasce aí e é, nesse sentido, um sistema ou estrutura que ainda prevalece. Em todo o Ocidente, da Europa às sociedades neo-europeias das Américas. O racismo, neste sentido, não é apenas um sentimento ou atitude, e não é simétrico e generalizado entre as “raças”. Ele é uma forma de organização social, uma estrutura, e é feito, maioritária e sistemicamente, de racismo branco e europeu para com pessoas e sociedades negras e/ou não-europeias.

Alguns países souberam fazer, ou foram obrigados a fazer, um esforço no sentido de descolonizar as suas sociedades e de combater o racismo. Portugal tem sido imensamente incompetente nisso. A perpetuação da narrativa luso-tropicalista em democracia, e as referidas camadas de verniz, estabeleceram a negação do racismo. Hoje sabemos, graças ao ativismo antirracista que conseguiu emergir e graças a boa investigação científica e jornalística, que o racismo existe inegavelmente. Ele existe, claro, nos incidentes, crimes e violências físicas e simbólicas várias. E ele existe enquanto estrutura e sistema – no apartheid da geografia urbana e habitacional, no sistema escolar e educativo, no campo judicial e prisional, na interação com as instituições e serviços, na visibilidade pública e na representatividade política.

Nacionais ou imigrantes, as pessoas negras ou afrodescendentes em Portugal são sempre suspeitas de serem estrangeiras, de não pertencerem verdadeiramente. São vistas como tendo “a sua terra” alhures, são identificadas antes de tudo o mais pela visualidade do seu fenótipo, são suspeitas de hábitos culturais não “integrados”, num processo de classificação que tem como fonte de inspiração as imagens e os valores dos “descobrimentos”, da expansão e do colonialismo. Face às situações de discriminação e violência diretas e face às desigualdades raciais estruturais, o Estado português, e com o acordo passivo da maioria da sociedade, tem resumido a sua ação a um universalismo republicano que se vangloria de ser “cego face à cor” mas que acaba beneficiando - privilegiando, portanto – a maioria branca. O Estado português não é, obviamente, legalmente racista. Mas isso de pouco serve: ele precisa de ser antirracista.

O movimento antirracista cresceu em anos recentes, sobretudo porque passou a poder contar com o pensamento, as vozes e a ação de pessoas negras ou afrodescendentes (e ciganas, especificidade que por economia não posso incluir aqui). Além da denúncia dos casos de racismo – que demasiadas vezes são arquivados ou negados como racistas – elas exigem políticas antirracistas concretas no plano estrutural e sistémico. Elas são aquilo que noutras paragens se designa como ação afirmativa, à semelhança do que fizemos com o género. Mas o Estado português não só recusou, por exemplo, a inclusão de categorias de autoidentificação étnica e racial nos Censos, de modo a sabermos quem são as populações potencialmente recipientes de políticas de ação afirmativa, como os partidos políticos que representam a sociedade não têm, na sua esmagadora maioria, programas antirracistas.

A negação do racismo sistémico e estrutural, a atualização constante da falácia luso-tropicalista, a desatenção absoluta aos factos divulgados pelos movimentos sociais e aos dados fornecidos pela investigação científica, ou o apartheid social que não permite sequer o conhecimento da realidade através das relações humanas, conduzem as elites políticas, os fazedores de opinião e as pessoas ou cargos que genericamente influenciam a sociedade, a reagirem de formas absurdas aos avanços do antirracismo e às reações violentas da extrema-direita.

Há quem estabeleça uma simetria entre antirracismo e racismo, num gesto de enorme falha ética, por vezes sugerindo que o primeiro incentiva o segundo, numa extraordinária inversão da ordem dos fatores; há quem apele a uma temperança no debate, revelando, afinal, um desejo de negação; há quem branqueie os desígnios do oportunismo cínico do Chega e de André Ventura; há quem queira aproveitar-se do sucesso destes e da sua exploração populista das mentalidades racistas e coloniais, normalizando assim a extrema-direita; há quem equivalha, em termos de “radicalismo”, a extrema-direita aos partidos da esquerda, que sempre respeitaram o contrato constitucional; há quem acuse os movimentos antirracistas de radicalismo, sem reconhecer o quão radicalmente violento é o racismo; há quem remeta o racismo para um lugar subsidiário da classe social, sem perceber o que é o privilégio branco; há quem passivamente defenda que tudo é uma questão de mentalidades, que aos poucos se transformarão, como que por artes mágicas humanistas. Todas estas reações são exemplos do que normalmente se designada por “fragilidade branca”, um desconforto insuportável sentido quando a questão do racismo é levantada e não simplesmente esquecida.

Tenho noção dos meus privilégios, dos capitais que transporto desde que nasci. Capitais que foram construídos ao longo da História como definidores de um lugar mais alto nas hierarquias sociais: como homem, nas estruturas de desigualdade de género; como burguês, nas estruturas de classe; como letrado, nas hierarquias de capital cultural; como ocidental, europeu e branco, nas estruturas racializadas construídas no processo colonial; como nacional, no sistema de Estados-nação que divide nacionais de imigrantes ou refugiados. Talvez a politização da minha identidade como gay tenha ajudado a perceber o que é passar por micro-agressões quotidianas e o que é viver numa estrutura em que a minha sexualidade, amor, conjugalidade ou parentalidade não são (não eram...) reconhecidas. Mas têm sido sobretudo autores, artistas, académicos, ativistas, políticas e políticos antirracistas quem mais me tem ensinado, junto com a minha prática da antropologia, que Portugal ainda não se descolonizou; que Portugal tem um problema de negação do racismo; que Portugal tem um problema com o crescimento duma extrema-direita que capitaliza a negação do racismo; que, no centro político, esta negação ecoa mais – infeliz e dramaticamente - do que a urgência antirracista.

Mas, também, isto: que o antirracismo é a mais recente força cidadã no esforço de democratização da sociedade portuguesa. Necessitando urgentemente de ver a suas agendas acarinhadas pelas forças políticas progressistas e democráticas e transformadas em políticas concretas: no emprego, na habitação, na educação, na justiça e segurança, no espaço público e na política.

Quando nos descolonizamos, finalmente? Quando tornamos a nossa História mais rica e complexa, mais friccional do que ficcional? Quando reconhecemos a existência duma desigualdade estrutural assente na racialização? Quando passamos do antirracismo moral para o antirracismo político com ações afirmativas?

Em suma: quando completamos o projeto democrático?»

Miguel Vale de Almeida

sexta-feira, 21 de agosto de 2020

A insensatez

Posted: 20 Aug 2020 03:48 AM PDT

«Compreendo e concordo quando se diz que a melhor forma de combater a extrema-direita é dar condições de vida às pessoas. Mas já esta frase em si traz qualquer coisa que incomoda. Dar, quem dá? Uns dão, e outros são as pessoas?

Democracia plena seria uma em que todos fossemos as pessoas, e que essas frases que separam uns dos outros nunca viessem sequer à nossa cabeça. As coisas funcionam quando somos: nós. Temos um excelente exemplo disso que aconteceu agora mesmo. O famoso achatar da curva só era possível se nós fossemos um grupo, fomos. Mas estávamos todos com medo do que pudesse vir a acontecer a cada um, às nossas famílias, amigos. Por isso pergunto-me se esse “nós” conta. Num mundo ideal todos devíamos ter condições, conhecimentos, para poder governar, para participar da feitura das leis. Trabalharmos para a nossa comunidade como nas corridas de estafeta, em que um passa o testemunho ao outro. Não vai acontecer.

E haverá sempre gente de extrema-direita, haverá sempre o ódio, haverá sempre quem tenha um poster do Hitler em casa. Haverá sempre nostálgicos da ditadura. Haverá sempre nostálgicos da escravatura. O que não se pode é dar espaço a esse gente. O que não se pode é dar-lhes tempo para se organizarem, dar-lhes a oportunidade de se apresentarem com se não fossem estes que mencionei atrás. A nossa sociedade terá sempre imperfeições. Alguns de nós teremos sempre medo de alguma coisa que possa aí vir, e que venha acabar com o nosso bem estar, que venha ocupar o nosso lugar. A extrema-direita serve-se do medo para o transformar em ódio. Quando não temos um inimigo entre nós, haverá sempre quem grite que ele vem aí. Em Portugal essas pessoas ganharam força num momento em que o país estava a melhorar, em que a esperança estava a voltar. Porque são movimentos internacionais, porque o Trump abriu portas para muitas coisas impossíveis de acreditar possíveis nesta época. Porque o partido do Trump nunca quis tirar-lhe o espaço.

Não se pode dar espaço a esta gente, e em Portugal estamos a escancarar-lhes a porta.

Alguns exemplos:

Em 2011 fiz uma pesquisa grande sobre a PSP. Assisti aos primeiros testes de recrutamento para a escola da polícia, assisti a aulas, falei com estudantes da escola de polícia, falei com comandantes de várias esquadras, visitei clubes de polícias, quartos onde dormiam. Fui a manifestações da PSP em frente ao Parlamento. No meu entender esta polícia não é a mesma que conheci em 2011, passaram-se nove anos. Nove anos dá tempo para infiltrar gente com um propósito específico dentro dessa força. Quero acreditar que são ainda uma minoria, mas podem vir a ser mais, podem ter cada vez mais atitudes contra negros, contra ciganos, contra migrantes. Acontecendo isso, haverá uma reação crescente, natural e justa, contra a polícia. A extrema-direita, já com lugar institucional, vai “defender a ordem”, vai mentir, vai ganhar mais seguidores.

Não vejo tudo o que dá na televisão, só posso dar exemplos do que vi.

Conversa entre Marçal Grilo, e Nobre Guedes. Antigos ministros, um pelo PS e outro pelo CDS, em comentários à semana dos mascarados em frente à sede do SOS Racismo, e das ameaças às deputadas, e associações anti-racistas.

Marçal Grilo:

1. A extrema-direita e a extrema-esquerda precisam deste tipo de tema. Precisam disto como do pão para a boca. E depois há uns tontos que ainda não perceberam que isto é um tema dos dois, da extrema-esquerda, e da extrema-direita.

2. A extrema-direita é sempre mais agressiva do que a extrema esquerda. Penso que há aqui uma certa articulação, sobretudo com alguns movimentos alemães neo-nazis porque os alemães sabem muito disto. Têm um grande background desta coisa, sabem muito bem como é que isto se faz porque sabem muito bem como é que isto se fez.

Nobre Guedes:

1. O que está por trás disto é a dificuldade que a esquerda está a ter em lidar com o Chega.

2. O Rui Rio não tem que se meter nisto, mas já o CDS, a Iniciativa Liberal, o Chega, e quem sabe o Aliança, todos eles deviam fazer um esforço de federação para se apresentarem às autárquicas.

3. O espaço da direita tem que ser reorganizado. Estes 3 ou 4% não servem para rigorosamente nada.

Segundo Marçal Grilo há, em Portugal, grupos ligados aos neo-nazis alemães, mas nós não temos nada que ver com isso porque isso é uma coisa lá entre a extrema-direita e a extrema-esquerda. É isso? E já agora a pergunta que a jornalista não fez: quem é essa extrema-esquerda? São as deputadas ameaçadas?

E Guedes diz que o que está por trás disto é a dificuldade que a esquerda está a ter em lidar com o Chega. Disto? Das ameaças?

Mas logo o seu raciocínio se torna mais explícito: O CDS está a desaparecer, e se não se juntar ao Chega, desaparece. O que o CDS e o PSD, ou pelo menos Rio estão a fazer, é pior do que os republicanos que não retiraram o apoio ao Trump, estão a dar um apoio ao Chega que o Chega nem pediu. E quanto mais apoio lhes derem, mais legitimados ficam, e menos precisarão desse apoio.

Mais um exemplo:

Poucos dias antes destes acontecimentos, ouvimos Ricciardi referindo-se a Mariana Mortágua, membro de um órgão de soberania, “essa figura o melhor que faria era reduzir-se ao silêncio”, “essa senhora devia ter vergonha, e devia era desaparecer de vez”. Consequências: zero.

Não estou a dizer que Ricciardi esteve por trás das ameaças subsequentes, mas ele para além de banqueiro é um homem do futebol, e sabe-se que há claques de futebol ligadas a grupos de extrema-direita. E por isso, quem me garante que Mortágua não está na lista das ameaçadas por causa do que ele disse? Porque é que não está Catarina Martins, por exemplo? As deputadas Beatriz Gomes Dias, e Joacine Katar Moreira são claramente ameaçadas por esses racistas pela sua cor de pele.

Quando o Presidente da República apela à calma e à sensatez, eu concordo. Sensatez é o que se pede, mas não é com tanto silêncio e passadeiras vermelhas que se é sensato.»

Teresa Villaverde

quarta-feira, 19 de agosto de 2020

A fuga do rei Juan Carlos

por estatuadesal

(Red Roja, in Resistir, 05/08/2020)

O abcesso de podridão explodiu e o borbón – ao qual chamam de emérito, para maior escárnio – escapou para assegurar o saqueio acumulado durante décadas e a sua impunidade.

Mas a evidência da corrupção da monarquia permite revelar outras.

A vitória do fascismo mediante um dos massacres mais terríveis da história moderna foi também uma espoliação maciça, uma imensa acumulação de capital roubado, que garantiu a sua continuidade mediante a monarquia borbónica. Com as dezenas de milhares de assassinados que continuam enterrados nas valas – para vergonha de governos "pregressistas" de todos os níveis do Estado – pretende-se manter sepultado também o saqueio gigantesco sobre o qual se fundaram e no qual se desenvolveram os grandes capitais do Reino de Espanha.

O fecho de abóbada sobre a qual se veio assentando a pilhagem supranumerária dos cofres públicos – que se soma à exploração capitalista – é a monarquia borbónica. E o rei, muito consciente de tudo isso, vinha exigindo receber o dízimo do grande negócio.

Com todas as cumplicidades políticas, também devidamente remuneradas, o monarca constituiu-se em cúpula da rede de corrupção que permitiu amassar fortunas aos proprietários das grandes empresas. As "mordidas dos 3%" que reluziram na Catalunha são só uma pequena parte da cascata de comissões e subornos que edificaram a fortuna do borbón e, por debaixo dele, dos diferentes níveis da administração e das empresas que obtém lucros a partir de decisões políticas. As viagens oficiais carregadas de empresários, destacados políticos e altos funcionários, com o rei à cabeça, são a imagem viva da utilização do Estado ao serviço do capital.

É essa cadeia de cumplicidade e delitos, que infecta todas as estruturas do poder político e económico, que tem mantido a impunidade do rei como chefe do bando de ladrões.

Felipe VI senta-se num trono alagado de sangue e corrupção. E ocupa-o por ser o filho do rei designado pelo ditador mais criminoso que houve na história dos povos do Estado espanhol e também, herdeiro parte da mãe da sangrenta e corrupta monarquia grega colaboradora directa da ditadura fascista.

Os poderes de facto – o capital e seus aparelhos do Estado – com cumplicidade do governo "progressista", obrigaram o borbón a escapar. Tal como quando lhe exigiram a abdicação, pretendem que mude algo para que nada mude – e o "emérito" é o bode expiatório. Em 2014 o detonador foi o medo de uma mobilização popular alimentada pelas consequências da crise e à qual se fez acreditar então que "Podemos" mudar as coisas mediante as eleições.

Hoje, perante o tsunami económico e social que se está a abater sobre a classe operária, a decisão foi fulminante para tentar escorar uma monarquia cada vez mais fraca. Mas agora, para maior escárnio, o governo e os meios de comunicação do poder, tentam apresentar a fuga do ladrão pai como uma contribuição para a estabilidade do trono do filho.

A colaboração do governo PSOE-Podemos no encobrimento do ladrão fugido revela mais uma vez a sua função real de escoramento de todas as estruturas do Regime de 78 e do grande capital. E, naturalmente, sua capacidade nula para mudar uma ínfima parte do código genético franquista dos aparelhos do Estado.

Enquanto os cárceres estão cheios de presos políticos, quando ainda estão quentes decisões judiciais que tentam esmagar a liberdade de expressão para denunciar à mesma monarquia jovens adeptos do rap como Pablo Hasel ou mantém encarcerados os dirigentes políticos catalães que organizaram um referendo, algum ingénuo poderia perguntar: Os altos tribunais do Estado colocarão o borbón em [ordem de] busca e captura? Emitirá o Ministério do Interior uma ordem de detenção internacional? Apreenderão suas propriedades como garantia do pagamento das enormes quantidades roubadas precisamente por exercer a chefatura máxima do Estado? Evidentemente, não. E não se trata de procurar através das urnas outro Podemos mais poderoso.

A perseguição àqueles que reclamam liberdade continuará, os mortos continuarão nas valas e seus assassinos continuarão morrendo impunes e cobertos de medalhas, enquanto os povos do Estado espanhol não mandarem à lixeira da história todas as estruturas de poder do Regime instaurado pela Constituição de 1978.

Nestes momento em que a indignação popular põe em manifesto a debilidade relativa das estruturas de poder – a própria fuga do borbón é mostra disso – Red Roja conclama à classe operária e aos povos do Estado espanhol, assim como às organizações capazes de representar sua soberania e independência, a mobilizar-se contra a monarquia e pela ruptura com todas as instituições herdeiras da Ditadura.

Uma tarefa pendente num caminho longo

Mas acabar com a monarquia e demais instituições do Regime de 78 é uma tarefa pendente num caminho mais longo.

As crises – e a que vivemos é de grandes proporções – são momentos de oportunidade para impulsionar a tarefa histórica de uma organização revolucionária: contribuir para destruir o capitalismo e construir o socialismo. Sabemos também que esse objectivo requer conceber o caminho que conduza rumo à construção do poder do povo e da direcção política capaz de levá-lo a cabo.

Entendemos que o avanço de ambos os processos não é o resultado de declarações de vontade ou de decisões de gabinete. É possível só com as energias que a luta de classes é capaz de desencadear e com a condição de que estas não possam ser absorvidas e reconduzidas aos seus próprios fins pelo poder.

Com a finalidade de introduzir elementos de ruptura com a ordem actual nas lutas populares pelas suas necessidades vitais, Red Roja faz um apelo ao debate para a constituição de uma Frente de Salvação Popular [1] cujos pontos cumpram com o objectivo central: serem entendidos como imprescindíveis pelo povo e incapazes de serem concedidos pelo poder, ao qual não cabe senão enfrentar sem conciliação possível.

Tais elementos são:
1º Expropriação da banca privada.
2º Recusa a pagar a chamada “dívida pública”.
3º Ruptura com os ditames da UE.
4º Intervenção das grandes empresas de produção e distribuição.
5º Implementar a planificação racional e democrática da economia.

Activismo pela Humanidade

Posted: 18 Aug 2020 03:48 AM PDT

«A estranheza reside no facto de ainda ser necessário. O activismo consiste na defesa de uma causa, dum ideal, é uma luta que se entende precisar de ser feita. É uma voz, é um grito, um acordar, uma chamada para acção, com o objectivo de mudar mentalidades e em última análise penetrar nos processos de decisão política.

O problema reside no facto de, a política ser fechada no essencial, a interesses puramente nacionais. E logo temos um histórico, um presente e um convite para um futuro em que a nossa empatia para com outros seres humanos, esbarra nas fronteiras do nosso país. Vejamos, por exemplo, a nossa análise às consequências da pandemia: Se em Portugal os números estiverem a descer e em Espanha a aumentar para nós é uma vitória, como se esta linha que nos divide, dividisse também as vidas que importam, e as que importam menos. E obviamente que nós sentimos empatia pelos espanhóis, pois cruzam-se connosco com frequência, compreendemos o que dizem, partilhamos a religião maioritária e culturalmente temos muito em comum. Sofremos quase como se fosse na nossa pele os ataques na estação de comboio de Atocha em Madrid em 2004. Mas se formos um pouco mais longe o nosso coração deixa de bater. Quando as nossas atenções entram em mundos onde a cor de pele é substancialmente diferente, quando rezam a um deus estranho ou falam uma língua muito “esquisita”, nós deixamos de sentir. Deixamos de ver a humanidade que nos une. Desvanece o nosso sentido de humanidade comum.

O Iémen é a maior crise humanitária dos últimos cem anos, cerca de 100.000 crianças já morreram à fome, e cerca de cinco milhões de crianças estão em risco de se juntar a essa estatística. Na guerra do Congo já morreram cerca de seis milhões de pessoas em 25 anos, em algumas zonas a violência sexual atinge 70% das mulheres, e só numa província (Norte Kivu) estão identificados 130 grupos armados. Na Síria já morreram cerca de 500.000 pessoas, há cinco milhões de refugidos a viver em condições de desespero e mais de seis milhões de deslocados sem dinheiro sequer para passar a fronteira. “E o que é que eu posso fazer?” É nesta frase que nos refugiamos, é aqui que cavamos o fosso da humanidade e nos protegemos e perdoamos pela nossa inacção! Mas há sempre alguma coisa que podemos fazer. Há sempre.

O PAN quadruplicou a sua presença no Parlamento à custa do seu activismo pelos animais e natureza. Porquê? Porque efectivamente há uma preocupação crescente com a casa onde vivemos. E ainda bem que o activismo pelo planeta tem ganho um espaço prioritário na cabeça e nos corações da maioria das pessoas. Mas o que é cada cidadão português e Portugal na sua pequenez mundial pode fazer para salvar o planeta? Pode fazer a sua parte. Tão simples quanto isso. E pela humanidade o que é que estamos a fazer? Nada!

Se alguém na Assembleia da República ousar perguntar o que é que Portugal está a fazer para combater as 500.000 mortes de crianças por ano em África (todos os anos!) de Malária, certamente que a resposta será que em Portugal também há pessoas sem médico de família. Sem se perceber a quão desumana é esta junção de premissas, deixamos o mundo girar.

“A culpa é dos políticos!” é outro dos nossos refúgios preferidos. No entanto esquecemo-nos que em democracia, os políticos não são líderes, são seguidores. Seguem as vontades de quem os elege. E são eleitos pelas nossas vontades. Sejam políticos por convicção ou oportunismo, são as nossas vozes que os fazem falar!

Gritemos pela humanidade que vos garanto, alguém nos vai dar as respostas. As soluções serão duras, complexas, demoradas e vão necessariamente envolver uma grande fatia da população mundial, assim como as que estão implicadas em salvar o planeta. Mas são possíveis. E o que nós temos de fazer enquanto indivíduos e enquanto país, é muito simples: façam ver na vossa opinião, na vossa voz, no vosso voto que todos os seres humanos são iguais e têm os mesmos direitos.

O segredo é compreendermos o enorme poder da nossa individualidade. Parece pouco, mas é tudo. Façam a vossa parte. Façam-nos pensar no mundo.»

Gustavo Carona

A pressa facebookiana é má conselheira

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 18/08/2020)

Há um par de dias, Carlos César usou da sua exuberante forma de cordialidade para exigir no Facebook aos partidos de esquerda que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”, mostrando se “são ou não capazes de reunir esses consensos num enunciado programático com o PS, suficiente mas claro, para a legislatura...ou se preferem assobiar para o ar à espera dos percalços”. A meio de agosto e antes de começarem as negociações detalhadas sobre os temas do Orçamento, este “de uma vez por todas e sem mais demoras” soa ao que é. O problema é que para fazer chantagem se exige algum saber e basto sentido de oportunidade. Ambos escasseiam neste “de uma vez por todas”.

Há um ano atrás, em junho e era véspera de eleições, o mesmo César explicava que o PS não devia continuar a geringonça e devia romper com o Bloco porque, se o PS fosse “sempre atrás do BE”, o país voltaria “ao tempo da bancarrota”. Num discurso aos seus deputados, explicou que era preciso evitar as “aventuras orçamentais que levariam ao colapso e à desconfiança internacional” e que, para isso, a única solução era uma maioria absoluta contra os “bloqueios” e “constantes dificuldades” da geringonça. O primeiro-ministro, em entrevista ao Expresso, explicou o mesmo apelo aos eleitores: ou maioria absoluta ou caos. Parece que, um ano depois, é ao contrário, haverá bancarrota se não houver acordo “de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”.

Há um ano, havia em todo o caso uma alternativa na manga, que era o “acordo de cavalheiros” com o PCP. O PCP tem “uma estabilidade na sua ação política que lhe dá coerência, sustentabilidade, previsibilidade, e, portanto, é muito fácil trabalhar com ele”, dizia Costa. E era uma certeza pessoal, a mais profunda das emoções: “quando ele (Jerónimo) diz que entre gente de bem basta um aperto de mão ou mesmo olharmo-nos olhos nos olhos”, não é preciso um acordo escrito, explicava o primeiro-ministro. Com a sua “experiência de trabalho com Jerónimo de Sousa", Costa afirmava não ter a “a menor das dúvidas”, assunto arrumado. Olhando-se nos olhos, com um aperto de mão, “é fácil trabalhar” com o PCP, a coisa estava garantida, não havia “a menor das dúvidas”. Parece que, um ano depois, é também ao contrário, já é conveniente o acordo escrito que era então rejeitado.

O certo é que falhou tudo. O PCP foi prejudicado por estas insinuações, o PS não teve maioria absoluta e foi necessário definir as novas condições de governação. Mas, como antecipado por tais declarações belicistas, a partir das eleições o governo recusou qualquer quadro de cooperação para a legislatura.

A geringonça foi enterrada com a convicção de que o PS estava mais forte e ditava a lei, quando, pelo contrário, ao perder a oportunidade da maioria absoluta e ao destruir a geringonça, ficou mais frágil, como hoje se verifica nestas aflições de agosto.

Curiosamente, César agora culpa o PCP, com o qual então não havia “a menor das dúvidas”, pela rejeição da geringonça e pela instabilidade política assim criada: “A recusa do PCP, logo após as últimas eleições, em subscrever um acordo para esta Legislatura, tal como havia sido conseguido na anterior, prejudicou a coerência e a utilidade de um acordo com um único parceiro - o BE -, do qual resultaria, certamente, uma tendência de exclusão do PCP e em pouco reduziria a ameaça da instabilidade”. É uma acusação injusta e até extravagante, dado que essa recusa tinha sido claramente anunciada por Jerónimo de Sousa durante a campanha e foi Costa quem inventou um pretenso idílio em que bastaria “olharem-se nos olhos” e “um aperto de mão” para tudo ficar resolvido. Era falso, como se verificou num ápice.

Assim, a realidade é teimosa: há um ano, o PS recusou começar uma negociação que poderia criar uma maioria parlamentar, pois não aceitava um acordo, afirmando que este levaria à “bancarrota” e, além disso, não admitia que estivessem na mesa de discussão as reformas laborais da troika, apesar de prometer ao país um “olhar nos olhos” com o PCP, numa encenação unilateral. Um ano depois, César exige ao PCP (com quem “é fácil trabalhar” mas não quer) e ao Bloco (que propôs um acordo mas que foi recusado) que “se definam de uma vez por todas e sem mais demoras e calculismos”. A palavra “calculismos” tem aqui um sabor amargo. O problema é que o governo ainda não fez as suas escolhas para apresentar as suas propostas orçamentais; que o plano Costa e Silva ainda não foi concretizado em projetos de médio e longo prazo; e que as discussões detalhadas entre o governo e os partidos de esquerda ainda não avançaram, estando agendadas para as próximas semanas. Como podem então concluir-se antes de começarem? A intimação facebookiana de César só tem por isso uma leitura e não lhe é lisonjeira.

Era preferível mais prudência e menos calculismo. Sair da gritaria no Facebook e sentar-se em reuniões de trabalho. Evitar truques de retórica e estudar propostas. Deixar as rasteiras e discutir questões difíceis. Evitar atalhos. Aliás, poderia ser um sinal interessante que o governo aceitasse agora discutir normas da lei laboral no combate à precariedade e desemprego, se não se tratar de um engodo que vá desaguar no direito de veto das associações patronais na concertação social, mas é preocupante que ao mesmo tempo inicie um recuo sobre o salário mínimo nacional. No meio destes movimentos paradoxais, a ordem dada pelo presidente do PS é o mais desastrado das percalços.