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domingo, 30 de agosto de 2020

Bairros de lata: porquê?

Posted: 29 Aug 2020 03:21 AM PDT

«Poucas coisas simbolizam tanto a doença de uma sociedade como o bairro de lata. Grandes metrópoles pelo mundo inteiro padecem dessa chaga enorme que é o slum ou a favela. S. Paulo, Cidade do México, Nairobi, Bombaim… batem recordes dramáticos. O problema é social e tem um nome simples: pobreza. E por detrás desta palavra ‘pobreza’ vêm inúmeros outros problemas: degradação, ressentimento, doença, violência… a lista é quase infinita.

Quando a desigualdade chega ao ponto de as casas dos que vivem na pobreza serem barracas feitas dos restos que outros deitam fora o problema é já antigo, muito grave e a sua solução não pode ser apenas local. O bairro de lata não é uma doença que se cure; é o sinal de um problema maior que dá a volta à governação toda de um país.

Infelizmente, em Portugal também temos situações destas. Sobretudo nos subúrbios das grandes cidades e concretamente na região de Lisboa, onde o Expresso, há cerca de um ano, contou 13 bairros de lata com mais de 12 mil famílias. Ninguém diria? Fala-se pouco neles, a não ser quando são notícia policial, como aconteceu no Bairro da Jamaica, no Seixal. De resto, oculta-se esta realidade e faz-se por ignorá-la.

A segregação habitacional, a miséria residencial, a própria estigmatização territorial do estatuto social abjeto são qualquer coisa que corrói profundamente uma sociedade desde o seu interior. Viver naquela miséria é o horror; ter aquela miséria a viver entre nós deveria sê-lo também.

Portugal que multiplica condomínios de luxo, que vende ao desbarato propriedade pública com desconto aos fundos imobiliários especulativos e atrai milionários isentando-os de impostos com vistos gold ou sem eles é o mesmo país que vira hipocritamente a cara aos seus bairros de lata, esperando que a discreta ação da Igreja e de algumas associações cívicas faça o que manifestamente não pode fazer. Ou seja, atacar o problema no ponto onde ele nasce: na desigualdade, na pobreza e na exclusão.

É que a pobreza e a desigualdade extrema, a exclusão e o mal-estar social de todos esses problemas são um rastilho de revoltas e constituem uma autêntica bomba-relógio: não há nada a fazer contra a explosão. É antes que as políticas são úteis, não é depois.

Um bairro de lata é uma violência todos os dias que se pode tornar violento de um dia para o outro. Ora, os bairros de lata, os guetos degradados, não se acabam com políticas contra a fealdade das suas barracas ou edificações precárias ou contra o mau comportamento cívico de alguns dos seus habitantes. É preciso uma iliteracia sociológica muito profunda para acreditar nisso. O bairro de lata é a expressão alarmante dos erros mais graves que persistentemente minaram as prioridades políticas sucessivas do país.

De quando em vez lançaram-se políticas para tentar resolver o problema. Foi o caso do pós-25 de Abril, quando só em Lisboa existiam 100 mil barracas; e mais tarde, depois de, em 1993, Mário Soares ter dedicado uma Presidência Aberta ao assunto — altura em que se lançou o PER — Programa Especial de Realojamento. Passados quase 30 anos, alguns destes bairros estão hoje muito degradados e sem políticas de inclusão. Em 2006, o programa Porta 65 colocou fogos devolutos a preços razoáveis apoiados pelo Estado. Em 2018 foi a vez do programa 1º Direito, com a garantia governamental de que se iria acabar com estas situações até 2024.

Tudo sempre pouco, tudo sempre muito insuficiente e ineficaz. Entretanto, o problema agrava-se e as tensões sobem. E a pergunta continua eternamente a mesma: ainda há bairros de lata — porquê?»

Luísa Schmidt

sábado, 29 de agosto de 2020

Os velhos

por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 29/08/2020)

Miguel Sousa Tavares

Reguengos e os seus 18 mortos transformaram-se numa discussão política, jurídica e corporativa e num despique feio de passagem de culpas e responsabilidades, que teve o efeito útil de pretender que Reguengos fora um caso único e excepcional, fruto do acaso, do azar ou de um somatório de incompetências convergentes. Seria Juno confundido com a nuvem. Era bom que assim fosse, mas não é: 40% de mortes por covid em lares levam-nos a suspeitar da verdade toda. E a suspeita é que Reguengos tenha sido apenas o paradigma da existência submersa que ocorre na generalidade dos lares onde os nossos velhos estão depositados, entregues à sorte, ao acaso e às boas vontades e competências que outros, supostamente, fiscalizam. Porém, se tudo corre mal, como em Reguengos, buscamos afanosamente e para sossego das nossas consciências quem responda pelos velhos que foram abandonados sem assistência, sem apoio médico ou de enfermagem, sem cuidados de higiene, sem o mínimo de dignidade. Mas a questão está muito para lá da responsabilidade de uma instituição de solidariedade social privada, de uma ARS, de um Ministério A ou B ou de um Governo. A responsabilidade é colectiva, é da sociedade que estamos a criar e cujas consequências fingimos não ver.

Portugal é o quinto país mais envelhecido do mundo, apenas atrás de Japão, Itália, Grécia e Finlândia, e prevê-se que até ao final desta década tenha subido à terceira posição. Em 1950, 7% da população tinha mais de 65 anos, hoje são 23% com idade média acima dos 40 anos, a segunda mais alta da Europa, e será de mais de 50 anos em 2030. A esperança de vida das mulheres está hoje nos 85 anos e estará até final do século acima dos 100 anos. Paralelamente, temos a mais baixa taxa de natalidade da Europa: 1,3 filhos por mulher, largamente abaixo da taxa de reposição populacional, que é de 2,1. Alguns destes dados contam uma história de sucesso, que remete, por exemplo, para os incríveis resultados da luta contra a mortalidade infantil, que colocaram Portugal no topo dos países mais desenvolvidos do mundo; para a emancipação das mulheres, trocando o lar pelo trabalho e pela independência financeira; para a melhoria constante da alimentação, da cobertura sanitária e clínica da população, conduzindo à conhecida fórmula de a taxa de natalidade diminuir em função do crescimento da taxa de bem-estar económico. Só que exagerámos: a nossa taxa de natalidade, não obstante todas as justificações que se queiram encontrar, espelha também um egoísmo geracional, que encontramos refletido, aliás, a toda a hora e em muitos aspectos da vida em sociedade — e, reflexamente, da vida política portuguesa. É essa escandalosamente baixa taxa de natalidade que, não acompanhando a extensão crescente da esperança de vida dos portugueses, faz com que, no final, por mais que o Estado nos cubra de impostos e por mais que invista a torto e a direito, não consiga arrancar-nos da cepa torta: desde 2000 até hoje, o crescimento do PIB praticamente não se mexeu e paulatinamente vamos sendo ultrapassados, um a um, por países que estavam muito atrás de nós e que aderiram à UE muito depois de nós, até que já quase nenhum resta atrás de nós. Este é o grande, o maior problema nacional.

<span class="creditofoto">ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO</span>ILUSTRAÇÃO HUGO PINTO

Caminhamos a passos largos para que a já terrível equação 1 x 2 (um pensionista para dois activos) chegue à absolutamente insustentável equação 1 x 1. Há anos que fomos avisados, há anos que o sabemos, há anos que vemos os números agravarem-se e o fosso estreitar-se, e continuamos, impávidos, a fingir que nada se passa, a ouvir, um por um, todos os sectores profissionais declararem-se de desgaste rápido, reclamando reformas mais cedo do que os outros, a ouvir todos os partidos prometerem sucessivos aumentos de pensões, ao mesmo tempo que exigem também aumentos de salários na Função Pública, promoções automáticas, actualizações do salário mínimo acima da inflação e uma série infindável de novas despesas fiscais em formas de benefícios ou isenções que a situação de emergência económica em que vivemos, longe de atenuar, incitando à cautela na distribuição dos dinheiros públicos, antes parece ter exacerbado. Tudo sustentado em mais impostos para aqueles que os pagam e, em o dinheiro não chegando, em mais dívida para as gerações seguintes pagarem.

Ou seja: olhando para uma sociedade que se tornou economicamente inviável, porque produz 161 velhos por cada 100 jovens, com cada vez menos activos e mais reformados e com custos cada vez maiores para assistir e cuidar dos velhos, que vivem cada vez mais tempo e exigem tratamentos sempre mais caros, qual é a resposta que a política tem para dar? Mais despesa pública. Mais despesa pública — que já ultrapassa 50% de um PIB estagnado há 20 anos — a ser coberta com cada vez mais impostos e mais dívida... a pagar amanhã com mais impostos e mais dívida. Alguém sério pode ter alguma dúvida de que esta fuga para a frente só pode conduzir ao desastre? Certamente que não. Então, porque não mudamos de discurso, de atitude? Por uma razão simples: porque a política é feita pelos partidos (felizmente, porque a alternativa é a ditadura). Mas, infelizmente, raras vezes os partidos se atrevem a dizer a verdade e a propor o caminho mais difícil, porque a verdade custa votos e os votos perdidos custam o poder. E, por isso, pedem o que sabem ser impossível ou suicidário e prometem o que sabem não ter dinheiro para pagar.

Os nossos políticos falam para quem vota e governam para os eleitores swingers, que são os que dão e retiram o poder. Distribuem assim as promessas e as prebendas pelos activos e pelos grupos de reformados, que só são mobilizáveis pelo aumento das pensões, dispensando os principais pagadores de impostos a quem não tem nada para oferecer. Fora disto, não se atrevem a arriscar um único voto com conversas desagradáveis. Em política, as más notícias podem sempre esperar.

O que os governos deveriam fazer, depois de contarem a verdade toda, era atacar o centro do problema, apostando em políticas de natalidade a sério. Começar por uma política fiscal altamente regressiva a favor das famílias e dos pais com filhos ou com netos ou adoptados a cargo, em lugar destas pindéricas benesses actuais. Dinheiro, dinheiro a sério, para quem tiver filhos e se ocupar deles.

E, a par de uma política fiscal, uma política de habitação nas cidades em que um jovem valesse mais do que dois turistas e um casal de jovens pais valesse mais do que dez turistas. Depois, como já aqui defendi, fazer variar o valor das pensões de reforma, não apenas em função dos anos de descontos e do valor das prestações pagas mas também do número de filhos que se teve e que se criou, conforme é mais do que justo, porque quem teve mais filhos e assim mais contribuiu para a sustentação financeira da Segurança Social, com isso sacrificando-se mais na sua vida pessoal e profissional, deve receber mais do que quem não teve filho algum ou se ficou pelos 1,3 filhos da estatística. E a própria idade da reforma deveria ser mais baixa em função do número de anos em que se teve filhos a cargo, pois se há actividade de desgaste rápido é a de mãe e de pai. Enfim, e por muito que isso custe aos defensores da cristandade, e a fim de evitar que daqui a 20 anos a nossa população se tenha reduzido em dois milhões, Portugal devia ter uma política pensada e consistente de absorção de imigrantes — não esses pobres trabalhadores sazonais que por aí andam desprotegidos de todos, mas verdadeiros cidadãos de pleno direito para serem portugueses no lugar daqueles que esta geração não quer ou não tem condições para fazer. E, finalmente, estender os benefícios fiscais aos que tomarem a cargo os seus velhos, em lugar de os entregar em lares ou em casas vazias, apenas povoadas de solidão e abandono.

Isto custaria dinheiro ao Estado. Custaria muito dinheiro. E esse dinheiro viria de onde? Viria da clientela habitual do Estado, dos instalados à sombra do erário público, pagando com votos o dinheiro gasto com eles e arrecadado com os impostos alheios. Seria um escândalo, uma zaragata sem fim, uma berraria de todos os lados. Tirar aos vivos para dar aos nascituros? Tirar aos votantes para dar aos inocentes? Um escândalo!

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia

28.08.1963 – Luther King: «I have a dream»

Posted: 28 Aug 2020 08:54 AM PDT

Há 57 anos, quando Martin Luther King pronunciou este seu célebre discurso durante a «March on Washignton for Jobs and Freedom», não podia ter imaginado que, depois de todo o progresso que se seguiu, o seu país viria a ter, mais de meio século depois, um presidente como Donald Trump. A história dos direitos adquiridos não será destruída. Mas não está a ser fácil.

(No fim deste post, o texto do discurso na íntegra.)
A propósito:
«I have a dream» – Texto:


I am happy to join with you today in what will go down in history as the greatest demonstration for freedom in the history of our nation.

Five score years ago, a great American, in whose symbolic shadow we stand today, signed the Emancipation Proclamation. This momentous decree came as a great beacon light of hope to millions of Negro slaves who had been seared in the flames of withering injustice. It came as a joyous daybreak to end the long night of captivity. .

But one hundred years later, the Negro still is not free. One hundred years later, the life of the Negro is still sadly crippled by the manacles of segregation and the chains of discrimination. One hundred years later, the Negro lives on a lonely island of poverty in the midst of a vast ocean of material prosperity. One hundred years later, the Negro is still languished in the corners of American society and finds himself in exile in his own land. So we have come here today to dramatize an shameful condition. .

In a sense we've come to our nation's Capital to cash a check. When the architects of our republic wrote the magnificent words of the Constitution and the Declaration of Independence, they were signing a promissory note to which every American was to fall heir. .

This note was a promise that all men, yes, black men as well as white men, would be guaranteed the unalienable rights of life, liberty, and the pursuit of happiness. .

It is obvious today that America has defaulted on this promissory note insofar as her citizens of color are concerned. Instead of honoring this sacred obligation, America has given the Negro people a bad check; a check which has come back marked "insufficient funds." .

But we refuse to believe that the bank of justice is bankrupt. We refuse to believe that there are insufficient funds in the great vaults of opportunity of this nation. So we have come to cash this check- a check that will give us upon demand the riches of freedom and the security of justice. .

We have also come to this hallowed spot to remind America of the fierce urgency of now. This is no time to engage in the luxury of cooling off or to take the tranquilizing drug of gradualism. .

Now is the time to make real the promises of democracy. Now is the time to rise from the dark and desolate valley of segregation to the sunlit path of racial justice. Now is the time to lift our nation from the quicksands of racial injustice to the solid rock of brotherhood. Now is the time to make justice a reality for all of God's children. .

It would be fatal for the nation to overlook the urgency of the moment. This sweltering summer of the Negro's legitimate discontent will not pass until there is an invigorating autumn of freedom and equality. Nineteen sixty-three is not an end, but a beginning. Those who hope that the Negro needed to blow off steam and will now be content will have a rude awakening if the nation returns to business as usual. There will be neither rest nor tranquility in America until the Negro is granted his citizenship rights. The whirlwinds of revolt will continue to shake the foundations of our nation until the bright day of justice emerges. .

But there is something that I must say to my people who stand on the warm threshold which leads into the palace of justice. In the process of gaining our rightful place we must not be guilty of wrongful deeds. Let us not seek to satisfy our thirst for freedom by drinking from the cup of bitterness and hatred. We must forever conduct our struggle on the high plane of dignity and discipline. We must not allow our creative protest to degenerate into physical violence. Again and again we must rise to the majestic heights of meeting physical force with soul force. .

The marvelous new militancy which has engulfed the Negro community must not lead us to a distrust of all white people, for many of our white brothers, as evidenced by their presence here today, have come to realize that their destiny is tied up with our destiny. And they have come to realize that their freedom is inextricably bound to our freedom. We cannot walk alone. .

And as we walk, we must make the pledge that we shall march ahead. We cannot turn back. There are those who are asking the devotees of civil rights, "When will you be satisfied?" .

We can never be satisfied as long as the Negro is the victim of the unspeakable horrors of police brutality. .

We can never be satisfied as long as our bodies, heavy with the fatigue of travel, cannot gain lodging in the motels of the highways and the hotels of the cities. .

We cannot be satisfied as long as the Negro's basic mobility is from a smaller ghetto to a larger one. .

We can never be satisfied as long as our chlidren are stripped of their selfhood and robbed of their dignity by signs stating "for whites only." .

We cannot be satisfied as long as a Negro in Mississippi cannot vote and a Negro in New York believes he has nothing for which to vote. .

No, no, we are not satisfied, and we will not be satisfied until justice rolls down like waters and righteousness like a mighty stream. .

I am not unmindful that some of you have come here out of great trials and tribulations. Some of you have come fresh from narrow jail cells. Some of you have come from areas where your quest for freedom left you battered by the storms of persecution and staggered by the winds of police brutality. You have been the veterans of creative suffering. Continue to work with the faith that unearned suffering is redemptive. .

Go back to Mississippi, go back to Alabama, go back to South Carolina, go back to Georgia, go back to Louisiana, go back to the slums and ghettos of our northern cities, knowing that somehow this situation can and will be changed. Let us not wallow in the valley of despair. .

I say to you today, my friends, so even though we face the difficulties of today and tomorrow, I still have a dream. It is a dream deeply rooted in the American dream. .

I have a dream that one day this nation will rise up and live out the true meaning of its creed: "We hold these truths to be self-evident; that all men are created equal." .

I have a dream that one day on the red hills of Georgia the sons of former slaves and the sons of former slave owners will be able to sit down together at the table of brotherhood. .

I have a dream that one day even the state of Mississippi, a state sweltering with the heat of injustice, sweltering with the heat of oppression, will be transformed into an oasis of freedom and justice. .

I have a dream that my four little children will one day live in a nation where they will not be judged by the color of their skin but by the content of their character. .

I have a dream today. .

I have a dream that one day down in Alabama, with its vicious racists, with its governor having his lips dripping with the words of interposition and nullification, that one day right down in Alabama little black boys and black girls will be able to join hands with little white boys and white girls as sisters and brothers. .

I have a dream today.

As Ordens Profissionais

por estatuadesal

(Carlos Pereira Martins, in Facebook, 27/08/2020)

As Ordens Profissionais actuam com poderes delegados pelo Parlamento, única e exclusivamente para “regular o exercício da Profissão”

Escrevo com muito conhecimento de causa.

Presidi durante quase uma década, à Comissão Executiva do Conselho Nacional das Ordens Profissionais, o chamado Conselho de Bastonários.
Já antes, na década anterior, tinha integrado o Conselho Nacional das Profissões Liberais, que antecedeu o Conselho Nacional das Ordens.

Conheço, pois, como as minhas mãos, a historia das últimas décadas de cada Ordem Profissional, as especificidades de cada uma das Profissões Reguladas e o quadro legislativo e normativo que as regula e lhes confere poderes delegados pela Assembleia da República, agora, através da nova Lei-Quadro das Ordens Profissionais.

Ser Bastonário, era, nesses tempos, uma distinção muito importante. Sempre, pessoas e profissionais da maior competência, pessoas integras e dispostas a exercer cargos e mandatos sempre pro bono, que os Estatutos impediam qualquer remuneração aos dirigentes e Bastonários. Movimento associativo na sua pureza.

Passaram "por mim" Bastonários como Pires de Lima, Germano de Sousa, o Enfermeiro Germano Couto, a Enfermeira Maria Augusta de Sousa, Maria Irene Silveira, Pedro Nunes, José Manuel Júdice, Rogério Alves, Marinho Pinto, José Manuel Silva, o Prof. Carlos Ribeiro, Maria de Jesus Serra Lopes e Castro Caldas nos Advogados e muitos outros.

Sempre, mas sempre mesmo, foi observada com todo o rigor uma regra simples mas essencial ao funcionamento e entendimento de todas as Ordens e Profissões naqueles fóruns comuns.
A regra que distinguia completamente as Ordens dos sindicatos de cada profissão e outra que impunha que ao Conselho apenas interessavam os pontos, aspectos e assuntos transversais a todas as Ordens e Profissões. Se assim não fosse, dadas as especificidades e diversidade de todas elas, não haveria entendimento e dialogo possível.

Por isso, vi com muito agrado a passagem como Bastonários de pessoas que vinham directamente do movimento sindical, dos sindicatos, como o Dr. Pedro Nunes nos Médicos e Maria Augusta de Sousa, nos Enfermeiros, para dar dois exemplos agora muito elucidativos.

E, nunca por nunca, qualquer destas pessoas, Bastonários, misturou os respectivos papeis. Uma vez Bastonários, foram sempre os assuntos e matérias relativos ao exercício das respectivas profissões, para os quais tinham poderes delegados pela Assembleia da República, que os norteou.

Vejo, pois, com grande perplexidade e enorme tristeza, pelo manifesto mal que causam a prazo ás respectivas Ordens e Profissões, as intervenções públicas de Bastonários recentemente eleitos, como no caso dos Enfermeiros e dos Médicos, a promiscuidade de actuação privilegiando a política pura e dura e a esfera sindical em detrimento das questões referentes ao exercício da profissão.

As Ordens Profissionais actuam com poderes delegados pelo Parlamento, única e exclusivamente para “regular o exercício da Profissão”, cada uma delas. Assim, sendo que uma Ordem ultrapasse ou desvirtue esses poderes delgados pela Assembleia da República, o Parlamento poderá a todo o momento retirar as competências a essa Ordem, que mais não é que uma associação publica.

NÃO É POIS ADMISSIVEL QUE UMA ORDEM OU UM SEU BASTONÁRIO apareça publicamente com uma capa que aparente não ser a figura institucional de Bastonário, a imiscuir-se na política pura e dura, encomendando pretensas auditorias, relatórios e pareceres ou mesmo nas questões sindicais da profissão ou a angariar fundos para questões que ultrapassam a sua função de regulador e verificador das competências dos profissionais para exercerem aquela e só aquela profissão específica. Uma vez empossado Bastonário, é-o a todo o momento e em todo o lado, não é possivel despir as competências e funções institucionais.

Confesso que, nos tempos mais recentes, tenho sentido uma enorme tristeza na constatação de que os pressupostos que enunciei para as Ordens e os Bastonários não são agora observados.

Lamentável, penso até que ilegal à luz da Lei Quadro das Ordens Profissionais. Desvirtuando-se e confundindo-se os papeis e actuações, haveria lugar, penso, a que fosse revista ou retirada, nesses casos, a delegação de Poderes atribuída pelo Parlamento.

A credibilidade e honorabilidade de um Bastonário, desses tempos idos, não se compadeciam com a mistura nas lutas políticas. Um Bastonário desses anos, entendia e cumpria que representava profissionais ideologicamente situados em todo o espectro politico. Por isso mesmo, deixavam a política aos Partidos e dessa forma adquiriam maior independência, credibilidade e maior poder negocial e representativo para as Ordens, para as respectivas Profissões Reguladas.

Depois de Trump, o dilúvio

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 28/08/2020)

Daniel Oliveira

Corre por aí um meme em que aparece Bernie Sanders ao lado da Ocasio-Cortez, em cima, e Joe Biden ao lado de Kamala Harri, em baixo. A legenda diz: “quando pedes uma Coca-Cola e eles perguntam: ‘pode ser Pepsi’”? Claro que este meme foi feito por um apoiante de Bernie. Se fosse este o sentimento dos democratas, Sanders teria ganho. Só que Biden é o “outro". Aquele que era preferível a Bernie para os centristas e agora será preferível a Trump para os progressistas, sem nunca mobilizar realmente muita gente. E não se pode sentar na vantagem que as sondagens lhe dão, porque o espera o inferno. Para Trump e as suas tropas vale tudo e tudo será feito. Se já é geralmente assim nos EUA,se já é assim com os republicanos há muito tempo, com Trump não há limites para o mergulho na lama.

Nas últimas semanas e na própria convenção republicana, Donald Trump regressou ao que parece ser a sua linha de campanha enquanto as sondagens não lhe correrem de feição: que os EUA se prepararam para o maior golpe da história do mundo. Com ele é sempre em grande. Em causa está a necessidade de alargar o voto por correspondência, devido à covid 19. Na realidade, os democratas até serão os que mais usarão este método de voto. O texto em português mais esclarecedor e sintético que li sobre o tema foi aqui.

A pandemia trocou as voltas a muitos governos. E também as trocou a Trump. Se todos tiveram de improvisar um pouco, a sua resposta foi especialmente incompetente. Uma pandemia não se combate com tweets e polémicas diárias. Nem sequer chega arranjar um inimigo, apesar de Trump, como Bolsonaro, o ter tentado com a China. Não consta que com isso tenha sido salva uma única vida. Para lidar com uma pandemia é preciso mínimos de competência política – e nem assim corre bem – que todo o foguetório de que vive a extrema-direita não consegue simular. E com a pandemia veio a crise económica. A economia, e não o seu discurso incendiário e de ódio, é que lhe podia dar a reeleição. Sobra o discurso da “lei e da ordem” perante a revolta racial. Um discurso que funciona.

Não sei se Trump tem as eleições perdidas. Desde as últimas, em que senti nos EUA coisas bastante diferentes daquelas que por cá se diziam, que desconfio de sondagens e previsões. Sei que tudo está contra ele. E ao lançar a suspeita de fraude eleitoral, Trump dá sinais de nervosismo. Se há quatro anos até um Trump vencia Hillary, pode ser que agora até um Biden vença Trump.

A preparação dos seus apoiantes para a recusa de uma derrota não surpreende. Trump usa a democracia, não acredita nela. Como Bolsonaro, que perante os contrapoderes que qualquer democracia exige põe os seus seguidores a defender golpes militares e o encerramento de tribunais. Todas as instituições e as suas decisões são politicamente contestáveis. Mas contestar é diferente de defender o derrube pela força dos que limitem o poder executivo.

Há uma diferença entre Trump, Bolsonaro ou, à sua pequeníssima escala, Ventura e os outros políticos, sejam moderados ou radicais: eles não têm um projeto de continuidade que exija a preservação das instituições; não têm um programa político que sobreviva ao seu exercício de poder. Eles são o projeto. À sua volta, há quem tenha projeto e os use, há quem tenha interesses e também os use. Bandos de fanáticos e de oportunistas, uns com projetos futuros outros com ganâncias presentes, aproveitam o momento da conquista para a violência ou o saque. Mas eles têm o seu próprio ego como único fim. Não faria qualquer sentido para um político como Trump aceitar uma derrota eleitoral. Ele está nos antípodas de Al Gore, que em nome do futuro do país aceitou uma derrota que estava convencido, ele e muita gente, que não tinha sofrido. Trump nada tem a preservar a não ser o seu próprio poder.