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quarta-feira, 2 de setembro de 2020

A culpa é sempre do falecido?

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso, 01/09/2020)

Não é ainda público o relatório da Deloitte sobre o BES-Novo Banco (será que haverá uma tentativa de o manter secreto?) mas já surgiu, noite dentro, uma barragem informativa para interpretar as suas conclusões. O primeiro movimento foi o do comunicado do Ministério das Finanças, à 1h37' da manhã, que garante que as perdas “decorreram fundamentalmente de exposições a ativos que tiveram origem no período de atividade do BES”, ou seja, até 2014. Assim, por causa da herança maldita do BES, entre 4 de agosto de 2014 (o dia seguinte à resolução pelo Banco de Portugal e pelo governo Passos Coelho) e 31 de dezembro de 2018 teriam sido gerados 4042 milhões de perdas, que o Novo Banco veio depois a suportar (2300 milhões de euros em operações de crédito, 488 milhões em subsidiárias e 1234 milhões em misteriosos “outros ativos” não especificados). Em resumo, a culpa é do falecido.

Se for esse o teor do relatório, tem um custo, que não é ligeiro: significaria apontar a dedo os promotores de uma fraude encobrindo fraudes anteriores. Convém lembrar que, na resolução, foi garantido que tinha sido feita a separação dos créditos maus e que o Novo Banco estava livre de riscos; que o Banco de Portugal procedeu depois a uma segunda resolução, jurando então que não restava resquício de risco; que as autoridades de supervisão autorizaram e os auditores assinaram as contas, certificando o cálculo das imparidades; que a administração do banco, incluindo António Ramalho, publicitou que não havia nenhum defeito no provisionamento de créditos suspeitos ou arriscados. Ou seja, há seis anos que nos dizem que nunca poderiam surgir novas imparidades nas operações tão cuidadosamente verificadas.

Agora, é-nos dito que as perdas terão sido de 4042 milhões até 2018 porque essas contas eram falsas (espero que ninguém me tente convencer que créditos imobiliários devidamente avaliados se desvalorizaram em catadupa num período de auge especulativo da habitação), um número encantadoramente vizinho dos 3900 milhões que o Estado se comprometeu a pagar na eventualidade, dita impossível, de haver erros naquelas contas tão escrutinadas. Portanto, quem decidiu a resolução tê-lo-ia feito em inconsciência ou, pior, em consciência.

O coro de certezas sobre as contas certificadas cobriu todo o período desde a resolução (2014) até à venda à Lone Star (2016) e prolongou-se até hoje, só tendo sido interrompido quando, cada ano, foram reveladas novas perdas no valor conveniente para assegurar o cheque do Estado, tendo em cada ocasião a administração reiterado que se tratava da última vez. As contas foram sempre de confiança até à véspera de pedir a anualidade, e voltaram a sê-lo no dia seguinte, até à prestação seguinte. Ou seja, as contas foram sempre um embuste.

Diz-nos ainda o Público que o relatório da Deloitte, porventura pressionado pelas investigações jornalísticas, inclui a análise de uma operação de outubro de 2019, a venda da seguradora GNB Vida por 123 milhões de euros. A venda tinha sido aprazada por 190 milhões, quatro meses depois de o banco ter registado nas suas certificadissimas contas 400 milhões como valor deste ativo, e a Greg Lindberg, um financeiro norte-americano então acusado e agora condenado por crimes. Não sendo legalmente possível proceder a essa venda pela situação do comprador, o Novo Banco decidiu não anular o contrato, ao contrário do que aconteceu com outros negócios comparáveis na Europa, e esperar por um novo interessado, a Apax, que curiosamente tem sede no mesmo escritório de Lindberg em Londres e a quem fez um segundo generoso desconto, desta vez de mais 67 milhões, tendo ainda financiado esta operação. Essa perda foi, naturalmente, paga pelo Estado. Mas tudo foi aceite, era essa a natureza do contrato com a Lone Star.

A 14 de maio deste ano, na sequência da quezília entre Centeno e Costa sobre se devia ter sido feito o pagamento ao Novo Banco antes da auditoria, o primeiro-ministro, cedendo ao ministro, emitiu um comunicado em que se afirmava que “ficou também confirmado que as contas do Novo Banco relativas ao exercício de 2019, para além da supervisão do Banco Central Europeu, foram ainda auditadas previamente à concessão deste empréstimo”. E listava ainda as auditorias que garantiriam a correção das contas: “em primeiro lugar, pela Ernst & Young, auditora oficial do banco; em segundo lugar, pela Comissão de Acompanhamento do mecanismo de capital contingente do Novo Banco, composta pelo Dr. José Bracinha Vieira e pelo Dr. José Rodrigues de Jesus; e ainda pelo agente verificador designado pelo Fundo de Resolução, Oliver Wyman”.

A lista impressiona e, no entanto, nenhum destes auditores e autoridades terá cuidado da venda de um ativo de centenas de milhões de euros a um criminoso, com quase 70% de desconto, com prejuízo pago pelo contribuinte. Assim, quando à 1h37' desta madrugada o ministério nos revela que um relatório ainda secreto remeteria toda a culpa para o avô do Novo Banco e, porventura, para a desatenção dos auditores no passado distante, esquece com ligeireza algumas operações que decorreram durante o seu turno e, sobretudo, a incúria que permitiu que uma mentira tão repetida e tão evidente fosse aceite com a maior naturalidade.

Não é difícil concluir que o país foi enganado durante os seis anos desde a resolução e que nem houve muito esforço para disfarçar a trapaça.

Não tem de ser um caos

Posted: 01 Sep 2020 03:46 AM PDT

«O estudo em casa pode ter sido o melhor dos piores recursos em tempos de pandemia, mas hoje sabemos como o ensino presencial é insubstituível. Meses depois do primeiro susto, o regresso às aulas não tem de ser uma impossibilidade, nem um caos.

Assim como o SNS, também a Escola Pública precisa de cuidados e preparação para cumprir o seu papel enquanto serviço público essencial e universal. Com um corpo docente envelhecido e falta crónica de técnicos especializados e trabalhadores não docentes, há muito que as medidas mais importantes estão identificadas. A covid só aumentou a sua urgência.

No regresso à escola, as regras sanitárias são certamente importantes, mas não podem ser asseguradas sem o pessoal de apoio necessário. O distanciamento social deve ser levado em atenção, mas vale de pouco com turmas sobrelotadas em espaços limitados. O ensino de qualidade tem de ser prioridade, mas é ameaçado pela falta de professores, agravada pela necessidade de substituir todos os que se insiram em grupo de risco.

Em Lisboa, o Agrupamento de Escolas Vergílio Ferreira, que esteve aberto durante todos estes meses para receber os estudantes filhos de trabalhadores essenciais, não registou qualquer surto de covid. Isto porque foi possível garantir que tanto o espaço como o número de professores e técnicos eram adequados à quantidade de crianças. Embora na Autarquia de Lisboa (onde o Bloco é responsável pela pasta da Educação) todas as escolas cumpram pela primeira vez os rácios de funcionários por aluno, esse cumprimento é responsabilidade do Ministério da Educação. Se o Governo já estava em falta porque nunca chegou a implementar a revisão de rácios aprovada no Orçamento de 2020, agora tudo isso se tornou insuficiente.

Em Madrid as turmas já começaram a ser desdobradas. Em Portugal essa medida (óbvia) de proteção da comunidade escolar foi rejeitada no Parlamento com os votos contra do PS e da Direita. Foi tempo que se perdeu para preparar o ano escolar que agora começa.

Chegamos hoje a setembro e o Governo não contratou mais pessoal nem fez o levantamento das necessidades de professores. Não preparou a redução das turmas nem assegurou o desdobramento dos espaços, recorrendo, por exemplo, às autarquias. Falta fazer quase tudo, mas isso não é desculpa quando se sabe o que tem de ser feito para evitar que o início do ano escolar seja um caos.»

Mariana Mortágua

terça-feira, 1 de setembro de 2020

Amanhã é o primeiro dia do resto da sua vida

Posted: 31 Aug 2020 03:28 AM PDT

«Num Tempo Que Passou, estava em Lisboa a gravar o "Sexualidades" e alguém me entregou uma carta. Familiar, no plural, qualquer coisa do género "vemos-o-programa,-vens-jantar-cá-a-casa?."

A minha disposição em Maré Alta, partilhar a mesa com o Sérgio Godinho! As suas canções há anos e anos comigo; inconfundíveis. Maravilhava-me como tantas palavras nelas cabiam, não metidas a martelo, mas por a sua mestria as tornar esguias e maleáveis, tudo encaixava e era único; seria ridículo ter Cuidado Com As Imitações.

Foi uma delícia, saímos pela Lisboa Que Amanhece, havia quem nos visse parecidos e lhe perguntasse "é teu primo?". Posto à la Nizan, eu tinha 40 anos e não deixarei ninguém dizer que estávamos No Lado Errado Da Noite. Vim-me embora Com Um Brilhozinho Nos Olhos e uma certeza - Hoje Fiz Um Amigo.

Trinta anos volvidos, cada reencontro é pretexto para continuarmos a conversa, indiferentes aos meses ou até anos de intervalo entre duas frases. Várias vezes me enrosquei na plateia para assistir a ensaios, com o fascínio que me despertam os artistas nesses momentos. Há neles a cumplicidade de anos de estrada que permite as associações livres mais hilariantes ou ternurentas, a banda toca, ensaia e vive por e para si mesma, o velho entusiasmo permanece, dir-se-ia que usaram e abusaram do Elixir Da Eterna Juventude.

Claro que já perdi a conta aos espectáculos, mas retenho um na memória. O Coliseu do Porto a rebentar pelas costuras para ouvir um dos filhos dilectos da cidade. Canções cantadas em coro e a plenos pulmões, não importa o dia, É Terça-Feira. De repente, o meu filho mais novo murmurou, com orgulho satisfeito - "estão aqui três gerações". Era verdade, O Coro das Velhas contagiara gargantas juvenis. Que pode mais ambicionar um artista? A sua obra correu de mão em mão, saltou de ouvido para ouvido, jovens cresceram a escutar os mais velhos trautearem canções que também os tocaram; fizeram-nas suas. Que Força É Essa, que faz do talento património imaterial das lendas familiares?

Por isso, Espalhem A Notícia - o Sérgio faz anos. E presenteiem-no com o que maior ternura lhe pode despertar, trauteiem-lhe as canções; A Vida É Feita De Pequenos Nadas, ficará feliz. Eu vou fazer figas para que um dia destes, nas suas andanças, pense - "O Porto Aqui Tão Perto, vou desafiar o Júlio para um peixe em Matosinhos."

E sentados em amena cavaqueira sobre o quotidiano deste Portugal, Portugal - talvez acompanhados pelo Palma - brindaremos Aos Amores.

Revivendo O Primeiro Dia da nossa amizade.

Nota: O texto em itálico é da autoria de Sérgio Godinho, com excepção de Portugal, Portugal (António Joaquim Fernandes/Márcia Lúcia Amaral Fernandes Fernandes).»

Júlio Machado Vaz

segunda-feira, 31 de agosto de 2020

Salvem-se a si próprios

Posted: 30 Aug 2020 03:11 AM PDT

«Setembro aí está à porta num contexto nacional e internacional que não permite empurrar lixo para debaixo do tapete, nem a mais pequena desatenção por parte do Governo ou das forças políticas e sociais que não aceitam o agravamento das injustiças, das desigualdades e dos bloqueios ao desenvolvimento do país.

Durante seis meses, conscientemente, congelaram-se problemas à espera de melhores dias, o Estado foi chamado a prestar proteção reforçada e a assegurar rendimentos a muitos portugueses e, acima de tudo, a apoiar empresas que jamais sobreviveriam apenas pelos seus próprios meios. Como se perspetivava, a partir deste fim de férias (que imensos portugueses não tiveram) não é sustentável prosseguir aquelas políticas nos moldes em que vinham a ser aplicadas. Os recursos são limitados e está na hora de fazer escolhas na perspetiva de se encetar um plano estratégico progressista para a saída da crise. No Orçamento do Estado para 2021, peça primordial de opções de longo alcance, essas escolhas devem estar refletidas.

O país precisa de investimento público e privado, de apoios ajustados a todos as formações e estruturas económicas, mas é notória a existência de demasiados empresários entregues ao velho vício da pedinchice ao Estado, escamoteando responsabilidades próprias. Entretanto, eleva-se o coro ensaiado por "destacadas" figuras do jornalismo e "líderes" de opinião, que visa colocar os trabalhadores e o povo português sob a batuta da austeridade. Estas pessoas, em regra privilegiadas, estão imbuídas da suprema e permanente tarefa de ensinar os pobres a apertar o cinto.

A rentrée política este ano é muito exigente. Necessitamos de soluções para problemas prementes: é um imperativo proteger e reforçar (já) o sistema de saúde; abrir as escolas e garantir aulas presenciais; reforçar a proteção da maioria dos trabalhadores no ativo e os desempregados; preservar meios para apoios cirúrgicos a empresas nos seus processos de retoma, de reestruturações ou de criação de novos projetos. Nestas soluções, por experimentações calculadas, a ação do Estado será fundamental, mas de igual relevo serão, também, a participação da sociedade e o assumir de riscos e responsabilidades por parte das empresas.

As reivindicações fundamentais de centenas de milhares de trabalhadores - dos setores público e privado - que perante os duros impactos da pandemia foram considerados essenciais e que continuam com salários de miséria e frágeis condições de trabalho devem ser cumpridas. Sem hesitações, há que pôr de lado políticas de desvalorização interna que impõem reduções de salários e cortes nos direitos e rendimentos do trabalho. Entretanto, tenha-se presente que, quanto mais a Direita (ou partes desta) descamba para posições retrógradas e fascistas, mais se enfraquece a capacidade de mobilização dos cidadãos e mais crescem as reivindicações parasitárias ao Estado.

Dados divulgados sobre a evolução do défice público apresentam-nos, sem surpresa, mas com preocupação, uma quebra das receitas e um aumento das despesas. Este cenário reclama maior atividade económica e disponibilização de rendimentos na sociedade. O envolvimento empenhado e responsável das empresas na obtenção destes objetivos será um contributo para a própria salvação da maioria delas.»

Manuel Carvalho da Silva

domingo, 30 de agosto de 2020

Estado corporativo

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 29/08/2020)

Daniel Oliveira

O caso de Reguengos conta a história do Portugal profundo. O cacique local que, além de presidente da Câmara, dirige o lar. Uma assistência social baseada em IPSS dependentes de teias partidárias e religiosas. Idosos abandonados a um negócio que não cuida nem ninguém obriga a cuidar. E um poder central incapaz de confrontar os poderes locais despóticos de que se alimenta. Só falta uma peça: o corporativismo, grande doença nacional. Para o percebemos temos que compreender o que esteve em causa em Reguengos para além das condições do lar e da má resposta do Estado. Tudo aconteceu num cenário de contestação à mobilização de médicos do SNS para os lares em caso de surto. Reguengos foi um instrumento nesta guerra, que também envolve dinheiro. Há médicos que querem fazer pelo privado (ou receber à parte, no público) o que têm achado profissionalmente intolerável fazer pelo SNS. Tenho dificuldade em aceitar que um médico, seja qual for a sua especialidade, resista a socorrer quem precisa em plena pandemia. Por piores que sejam as condições. Estou certo de que os utentes daquele lar têm direito ao serviço público de saúde e sei que nenhum lar pode ter um corpo médico capaz de responder a um surto pandémico.

Assistimos à substituição do Estado democrático pelo Estado corporativo, em que elites profissionais capturam as funções públicas para seu benefício

Quando o caso do obstetra de Setúbal chegou aos jornais, o bastonário assumiu a clamorosa negligência de quem o devia fiscalizar e explicou que, quanto às clínicas, nada podia fazer: a Ordem “não tem funções de auditoria e fiscalização”, isso cabe às entidades reguladoras do Estado. Agora, que pensa o contrário, podemos pedir-lhe contas por clínicas e hospitais. Mas espera-se mais rigor nas comissões de inquérito. A de Reguengos era composta por dirigentes locais da Ordem e por duas pessoas com responsabilidades partidá­rias, não ficando atrás da teia socialista da ARS. Sem qualquer cuidado em proteger a investigação, um dos membros vinha de uma guerra aberta com as autoridades de saúde regionais sobre a mobilização de médicos do SNS para o lar. E assim se explica por que é má ideia dar poderes de fiscalização sobre o Estado a uma ordem profissional. Esse poder acabará por ser usado como forma de pressão corporativa sobre o Estado empregador, concorrente e contratante daqueles que ela representa.

A segunda parte desta história é a confusão entre ordens e sindicatos. Já o tínhamos visto com os enfermeiros, contra Costa, e com os médicos, contra Passos. Neste casamento, os sindicatos serão sempre subalternizados. Não têm os recursos da quotização compulsiva, o poder disciplinar e a representação universal.

As ordens, que em Portugal têm delegações de poderes mais extensas do que em muitos países europeus (em alguns nem a inscrição é obrigatória), têm alargado a sua influência. Transformam-se em sindicatos únicos de inscrição obrigatória, reguladores dos profissionais e fiscalizadores de entidades públicas e privadas. Assistimos à lenta substituição do Estado democrático, sujeito ao escrutínio de todos, pelo Estado corporativo, em que elites profissionais capturam as funções públicas para seu benefício.

E à substituição do sindicalismo por uma nova unicidade sindical corporativa. Reguengos é o Portugal profundo. Mas quem cavalga a onda corporativa não o mudará para melhor.