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quarta-feira, 7 de outubro de 2020

As razões do PS contra os contratos coletivos

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 06/10/2020)

Ao contrário de muita gente, creio que a razão do PS para defender desunhadamente o princípio da caducidade das convenções coletivas de trabalho tem uma sólida razão ideológica e, o que é mais importante, política.


A norma da caducidade automática das convenções foi introduzida pela direita numa reforma laboral em 2003 e depois reforçada pelo PS em 2009, tendo-a agravado ao desvalorizar regras específicas de cada contrato que ainda permitiam a sua continuidade até à substituição por nova convenção. O resultado desta medida, combinada com outras restrições à ação sindical, foi fulgurante: em 2008 ainda foram abrangidos 1704 mil trabalhadores pela atualização dos salários convencionais, em 2011 já só foram 1203 mil e, em 2013, limitaram-se a 187 mil. Em cinco anos, o número reduziu-se de dez para um. Houve depois uma ligeira recuperação, mas sempre num patamar de perda de poder negocial da parte mais fraca.

Para o trabalho, o mundo mudou com esta medida. Maria da Paz Campos Lima, professora do ISCTE, apresentou estes números num estudo de 2016 e explicou essa estratégia patronal a que sucessivos governos deram provimento: “A caducidade das convenções coletivas requerida pelas organizações patronais significa, em geral, uma de duas coisas: ou força as negociações de novas convenções a partir do zero, uma ambição de longa data para alguns setores patronais, na perspetiva de definição de novas normas numa relação de forças que lhes seja mais favorável; ou permite, no quadro do paralelismo de convenções, substitui-las por outras mais favoráveis ao lado patronal, e nalguns casos assinadas por sindicatos minoritários”. Essas são as razões ideológicas e políticas do PS, é assim que entende as relações laborais e não faz disso segredo.

Ora, do que não se pode acusar esta estratégia é de ser incoerente. Por isso, e mais uma vez ao contrário de vários analistas, percebo porque é que o PS sempre recusou alterar esta regra, que afinal é também de sua autoria, e, quando convidado a discutir o tema no contexto de uma negociação para um acordo para esta legislatura, há um ano, fechou imediatamente a porta com estrondo. Comentadores alinhados com o PS saudaram essa determinação, abundando no tema tradicional: não se mexe no que resulta e seria uma “provocação” discutir tal assunto. Sim, têm razão, isto resulta, provocou uma desvalorização estrutural da contratação coletiva e, assim, contribuiu para as perdas de rendimento ao longo da década que correu desde a recessão anterior. Tornou-se uma norma de política estruturante.

Nesse sentido, o facto de o PS aceitar agora discuti-la, in extremis, é revelador de uma dificuldade e de uma oportunidade. Reconhecendo que a norma não deve continuar a ser aplicada em momento de recessão, o governo propõe a sua suspensão por um curto período de dois anos (mas ameaça retirar a proposta se não houver acordo em tudo o resto do orçamento). Só que a solução é esdrúxula, dado que a constatação do aumento da desigualdade dos rendimentos em Portugal sugere corrigir as normas desigualitárias, em vez de garantir a sua recuperação passado um curto período. Deste modo, voltar-se-ia sempre ao ponto de partida: se o PS entende que o princípio deve ser a vantagem patronal na negociação, o que agora estará a fazer é um subterfúgio passageiro; se a longa crise de uma década o reorientou para uma norma que proteja o trabalho, então a lei deve ser mudada, o que seria uma vitória do bom senso.

Admita-se que, como tantas vezes, se trata de uma mera jogada. O governo pretenderia assim acenar à esquerda sem desagradar demasiado ao patronato, dado que, afinal, neste período isto limita-se a adiar a caducidade para cerca de 40 mil trabalhadores. O problema é que, deste modo, se institui uma guilhotina: passada a suspensão, voltará a regra, business as usual. Por isso, duvido que os trabalhadores saúdem uma medida provisória que os incita a aceitar o regresso imediato a uma normalidade punitiva para o salário.

O que está em causa para o Orçamento de 2021?

Posted: 06 Oct 2020 03:35 AM PDT

«Em 2015, quando negociamos um acordo escrito com o PS, sabíamos que tínhamos de nos bater por medidas muito além do seu programa eleitoral e que davam ao país o que mais precisava: um plano para aumentar o salário mínimo e os rendimentos, o aumento das pensões, a tarifa social da energia ou a redução do IRS.

Tudo o que hoje parece óbvio e adquirido, em 2015 foi conseguido contra o plano e as pressões de quem considerava a austeridade inevitável e a Comissão Europeia uma força invencível.

Cinco anos depois, enfrentamos um desafio maior: combater uma pandemia mundial com efeitos económicos e sociais devastadores. O mesmo sentido de responsabilidade leva-nos agora a propor medidas que são essenciais para uma resposta determinada à crise: proteger o emprego e os salários, cuidar do SNS, apoiar os rendimentos e impedir novas perdas públicas com o Novo Banco.

Até agora, o Governo não garantiu concretização suficiente na maior parte destas áreas: na proteção social, recusa o reforço das prestações de desemprego e não se compromete quanto a prazo ou valores da nova prestação social a criar. No trabalho, não admite alterações estruturais à lei e anunciou um recuo na atualização do salário mínimo nacional. Na saúde, não cumpriu o acordo para o aumento dos profissionais do SNS, que conta agora com menos médicos que no início da pandemia. Quanto ao Novo Banco, o Governo insiste em continuar a financiar os prejuízos da gestão do Lone Star, mesmo depois dos indícios de uma gestão desenhada para aumentar as perdas públicas. A solução apresentada, de pôr os bancos a financiar o Fundo de Resolução, é um truque de ilusionismo que não protege os contribuintes nem a estabilidade do Novo Banco.

O Bloco fez, desde o início das negociações, um percurso transparente, com condições claras e públicas. A viabilização do Orçamento depende da construção de uma proposta que consagre uma prestação social consistente e a reposição das regras do subsídio de desemprego anteriores a 2010; que penalize de forma relevante os despedimentos em empresas com lucros ou apoios públicos, que reponha a indemnização por despedimento e a duração de três meses para o período experimental; que crie a carreira de técnico auxiliar de saúde e garanta ao SNS mais 8400 profissionais do que tinha em 2019 e mais vagas para a formação de médicos especialistas; que ponha fim ao assalto da Lone Star ao Novo Banco e ao erário público.

Insistamos na clareza: nenhuma destas medidas vale uma crise política, pelo contrário. Em 2015, a relação de forças levou o PS a assinar o acordo que muitos julgavam impossível. Esperemos que, em 2020, os cálculos eleitorais do PS não o levem a cair na tentação de fazer diferente. O país precisa de respostas à altura da situação e da responsabilidade de as procurar à Esquerda.»

Mariana Mortágua

Um partido com 7% dos votos pode ter 12 deputados

Posted: 05 Oct 2020 03:54 AM PDT

«Há especialistas que sabem responder muito melhor do que eu à pergunta sobre quantos deputados pode ter um partido com 7% dos votos, porque há muitos factores a ter em conta. Em que círculos eleitorais são obtidos esses votos, quantas pessoas votam, quantos partidos concorrem, como de distribuem os votos. As incógnitas são várias.

Numa perspectiva muito conservadora, é possível eleger um deputado com perto de 2% do total de votos. Nas últimas legislativas, porém, três partidos conseguiram sentar três parlamentares (um cada um) em São Bento com menos de 1,5% cada. O PAN, com cerca de 3,5%, elegeu quatro. E a CDU, com aproximadamente 6,5%, elegeu 12.

A última sondagem publicada neste fim-de-semana no Expresso sobre intenções de voto nas legislativas aponta para que os dois maiores partidos mantenham valores idênticos aos obtidos em 2019. O PS sobe ligeiramente e o PSD desce algumas décimas, mas no essencial, no topo, pouco muda. O Bloco mantém-se em terceiro, perdendo votos. E o Chega sobe a quarto lugar, passando literalmente pela direita a CDU, o CDS, a IL e o Livre.

É aqui que está a grande diferença. O crescimento do Chega já não é só uma intuição, é uma evidência nas sondagens. Com estes valores, o partido de André Ventura passaria em tempo recorde, e com uma certa facilidade, de um deputado único para o quarto maior grupo parlamentar, com pelo menos uma dúzia de deputados (a percentagem que obtém na sondagem coloca-o acima da CDU nas legislativas de 2019).

Valorizando estes números, que são os mais recentes, o CDS passaria a contar tanto quanto a Iniciativa Liberal conta actualmente, por exemplo. Nestas condições, o contributo de Francisco Rodrigues dos Santos para um eventual bloco de direita seria irrelevante e não faria qualquer diferença.

É pelo facto de o Chega ser o partido que teria mais a ganhar numa ida às urnas que, neste momento, não interessa a nenhum dos principais partidos que haja uma crise política. O Presidente da República tem-no repetido à exaustão, numa tentativa de que esses mesmos partidos vejam além das negociações orçamentais.

É que, a julgar por estes números, o que mudaria se houvesse eleições antecipadas não era a chefia do Governo, que continuaria a caber ao PS. Tão pouco mudaria a liderança da oposição, que se manteria nas mãos do PSD. A grande mudança seria naquele pequeno partido de extrema-direita que hoje, só com um deputado, já influencia muito o discurso, o debate e a agenda parlamentar, introduzindo temas já por várias vezes considerados inconstitucionais. É esta a razão por que nenhum responsável político quer ouvir falar em crise e em eleições.

Todos nós já conhecemos André Ventura desde que era vereador do PSD em Loures e vamos escrutinando as suas propostas e declarações. Mas agora importa saber mais. Além dele, quem é o Chega? Diogo Pacheco Amorim? Elementos herdados de partidos ou movimentos extremistas? E mais? Quem teria lugar no Parlamento se as sondagens se confirmassem? Quem são e de onde vêm os militantes que sobressaíram no último congresso para mostrar que pensam diferente do líder (e que conseguem ser mais radicais do que ele)? Há um Chega além de Ventura?

Tenho muito mais perguntas para os próximos tempos. Tentarei também ter as respostas.»

Sónia Sapage

O mundo pos-covid que chegará… um dia

por estatuadesal

(Vítor Lima, in Blog Grazia Tanta, 01/10/2020)

1 – Os seres humanos, instrumentos do capital

Entre os múltiplos efeitos da pandemia podem destacar-se alguns – não sanitários -, tais como um maior apuro no aproveitamento, pelos grandes empórios, quanto ao escrutínio, enquadramento, manipulação de dados pessoais, para efeitos da sua segmentação ou homogeneização, com o estabelecimento de normas a cumprir e a concomitante vigilância, diluindo capacidades individuais num trabalho alienante e inútil, articulado com um tempo de lazer preenchido com atividades estupidificantes.

Essas atividades inúteis servem apenas para convencer o seu praticante a manter-se integrado no circo do capital, por muito inútil que seja o seu “trabalho” do ponto de vista económico, social ou de enriquecimento cultural. Trabalho, sendo esforço, só tem cabimento se produz algo de socialmente necessário ou útil; porém, em muitos casos, toda a vida do executante é atravessada sem que ele se aperceba alguma vez da inutilidade ou dos danos que resultaram da aplicação do seu tempo e das suas capacidades físicas e anímicas. Essa distorção na vida dos seres humanos tornou-se típica do capitalismo e, pela sua dimensão, conduz a danos de ordem anímica, ambiental e sanitária que afetam grandes grupos humanos ou mesmo a Humanidade; como é o caso da cangalhada militar.

Antigamente, nas classes dominantes, mormente na nobreza, as suas principais atividades eram o lazer e a guerra, com a entrega da gestão do património, da captação de impostos e tributos, a alguém capacitado para o efeito - um eclesiástico ou um plebeu. Nas outras camadas populacionais, no campo ou nas embrionárias cidades, não havia lugar para tarefas inúteis, encaradas como trabalho; todos sabiam o objetivo e a utilidade real do seu esforço de trabalho, mesmo que este fosse o lazer ou a satisfação de um capricho de um senhor. Tratava-se de garantir a subsistência e de medir o esforço laboral em função das necessidades do grupo familiar e do pagamento do tributo ao senhor local – em géneros, jovens para a guerra ou para o serviço doméstico no castelo ou no palácio.

Em épocas de epidemia, de más colheitas ou de devastação pela guerra - não havendo … subsídios de desemprego ou tarefas definidas pelos poderes públicos para colmatar a ausência de um rendimento, como no New Deal, só restava a emigração ou, a procura de ocupação nas cidades, onde a atividade produtiva era bem mais diversificada do que no campo.

A mobilidade, após a expansão europeia do século XVI alargou-se ao espaço global, por cobiça, espírito de aventura, guerra ou, através do comércio de especiarias, escravos, armas... Essa mobilidade envolvia áreas onde viviam sociedades complexas e até mais avançadas do que as europeias mas que cederam à colonização europeia. Onde isso não acontecia, como na América do Norte e nas Caraíbas a regra foi o extermínio dos seus habitantes e o recurso massivo à escravatura… a coberto das figuras divinas do panteão cristão e dos seus sacerdotes.

O capitalismo, gerando a procura incessante da acumulação de capital e beneficiando de tecnologias geradoras de elevados ganhos de produtividade, poderia reduzir o tempo dedicado ao trabalho libertando a Humanidade do esforço laboral e dando-lhe tempo livre para sua utilização no deleite da cultura, do desporto, da sociabilidade...

Mas não o fez e continuará a não fazer. Beneficia do essencial dos ganhos de produtividade, constrói enormes burocracias e instrumentos de controlo do trabalho e dos seus executantes, para que a mão-de-obra se mantenha pacificada e capturada pela lógica do capitalismo, aceitando como escrita nas estrelas a sua subalternidade face os capitalistas.

Desenvolve-se toda uma ideologia baseada na segmentação dos rendimentos do trabalho entre trabalhadores e patrões; e estes, mesmo sendo muito minoritários beneficiam da maioria dos ganhos. Dizem os próceres do capital que é essencial haver capitalistas porque são estes que criam o emprego, pagam os salários… evidenciando assim, o caráter secundário, acessório dos trabalhadores.

Na bíblia dos capitalistas, Deus criou o capitalista e, no seguimento, criou o assalariado para assegurar o bem-estar e o entretenimento do primeiro.

2- A acumulação infinita de capital

O capitalismo não concebe limites para a acumulação e inventa formas de a aumentar até ao infinito, para assim consolidar a sua perenidade e perpetuar o seu poder sobre a população e os recursos do planeta. Por um lado, no capítulo da produção de bens e serviços, procura maximizar a sua oferta para incrementar os lucros; e, por outro, em contradição total, procura manter o comedimento nos rendimentos do trabalho sabendo que um poder de compra restringido significa menos consumo, menos gasto. E, daí que aponte às pessoas o recurso insensato a dívida para alimentar o consumismo em todas as camadas sociais, após a secagem da capacidade de utilização dos rendimentos do trabalho. Como se sai disto?

Claro que tudo isso é insuficiente. Daí resulta a demência inerente ao sistema financeiro, que, como elemento central de multiplicação de capital, vive tomado de uma pulsão, uma gula que nunca se satisfaz, com o aumento e a valorização dos títulos que emite; nem com as margens de lucro que obtém nas transações que protagoniza, a todo o instante. Daí surgem as crises financeiras, os conflitos militares e o “investimento” em armamento, com o protagonismo dos gestores dos grandes bancos centrais, de instituições globais como o FMI ou o BIS – Bank of International Settlements que acompanha a situação do sistema financeiro global; bem como dos governos nacionais e das classes políticas que se encarregam de gerir os impactos do desvario financeiro, e transformá-los, em crise social e económica, com agudeza crescente e cada vez mais frequentes, como se pode observar comparando a crise de Wall Street em 2008 com a que se desenvolve na boleia do coronavírus.

A financeirização, com a criação de dinheiro em exponencial, de forma virtual, inserida em redes de circulação de dados, gerados de modo instantâneo e encadeados entre si, configura, a todo o momento, redes de negócios especulativos. A base material da economia, assente na produção de bens e serviços ou da auto-produção doméstica e do auto-consumo perdeu relevância e tornou-se um apêndice, um subproduto do mercado, devidamente supervisionado pelos aparelhos de Estado.

3 -Excedente de pessoas[1]

No momento presente vive-se um tempo de grande incerteza perante o vírus e de temor perante o assalto ao rendimento das classes populares. Entre os efeitos da pandemia podem destacar-se alguns, tais como um maior apuro no aproveitamento, pelos grandes empórios, do escrutínio, do enquadramento, da manipulação de dados pessoais, para efeitos da sua segmentação ou homogeneização; também, com o estabelecimento de normas a cumprir e a adequada vigilância, diluindo capacidades individuais num trabalho alienante e inútil; ou ainda, com um tempo de lazer preenchido com atividades estupidificantes. Com essas inúteis atividades – não sentidas como tal pelo trabalhador - pretende-se dar-lhe uma ideia falsa sobre a importância do seu labor. É uma prática alienante e pacificadora – típica do capitalismo.

Nos modos de produção anteriores ao capitalismo, as funções laborais poderiam ser penosas mas sabiam-se as suas finalidades; ninguém exercia funções sem saber o objetivo, mesmo que fosse a satisfação de um capricho do seu senhor. No capitalismo, as tecnologias permitiriam fortes reduções de tempo de trabalho, sem perda de rendimentos, se todas as funções a desempenhar fossem reconhecidas como socialmente úteis. Isso significaria um tempo acrescido de lazer, para estudo, cultura ou desporto e daí resultaria a grande questão de ordem política – se os meios permitem a produção de todos os bens e serviços úteis à Humanidade, é preciso abolir quantos condenam a multidão a jornadas de trabalho longas, penosas e com baixos rendimentos. Bem como todas as atividades socialmente inúteis ou nocivas.

Pela forma como a multidão - em tempos de covid-19 - permite o desemprego massivo, o layoff, o recurso ampliado à caridade, as limitações na circulação no espaço físico, a perda de horas de vida com os olhos vidrados na nova teletela, um futuro muito nebuloso e pouco promissor, deduz-se que a articulação entre os capitalistas e as classes políticas domina a situação.

Em Portugal está ainda bem presente o que se seguiu ao descalabro financeiro provocado pelo partido-estado PS/PSD, antes e durante a intervenção da troika (2011-2015); e, a pacificação pela “esquerda” da parca contestação então havida, ainda evidencia os seus efeitos. A classe política portuguesa, como em outros países, não resolveu qualquer problema dos então existentes e somou ainda os efeitos imputados ao covid-19.

A ocupação do Estado por partidos políticos que colocam todas as responsabilidades de gestão económica e social da sociedade nos seus próprios membros e apaniguados, remete a população para a situação de objeto manso e mole, de mainatos subordinados aos interesses da classe política. A crise do vírus, que no momento presente mostra uma duração muito para além do inicialmente previsto, revela, numa primeira instância a imensa incapacidade de gestão por parte das classes políticas – com relevo para a Europa Ocidental, EUA e Brasil – contrastante com a frieza e capacidade observada em vários países da Ásia Oriental. Em todos os casos, porém, há uma constante – a ausência de iniciativas populares capazes de se organizarem em rede, afastando-se das lógicas piramidais e da monstruosa burocracia que carateriza os aparelhos estatais; as populações colam-se à tv e assistem, passivas ao espetáculo repetitivo protagonizado por hordas de mandarins e plumitivos; e, imbecilizados, estarão prontos a dormir com máscara ou banharem-se em alcatrão se determinado por um primeiro-ministro.

Se a humanidade não pode, por limitações físicas ou institucionais, produzir o rendimento necessário para acompanhar a deriva especulativa financeira, esta tem de recorrer a artifícios para aumentar o capital envolvido no circuito económico; e, nesse processo, o sistema financeiro globalizado e os governos que o servem desestruturam as sociedades, espalham sofrimento, artificializam as economias, ofendem o planeta.

Em Portugal, neste verão, a taxa de poupança ultrapassou 10%, o que se confronta com valores próximos de zero (quando não, negativos), nos últimos anos; e isso, relaciona-se com grandes quebras no consumo e no rendimento disponível. O povo tem o bom senso de se precaver para dias piores, porém, do sistema bancário e dos governos não se sabe o que pode surgir; por exemplo, podem penalizar as contas com saldo acima de determinado valor para incentivar o consumo ou, aumentar a carga fiscal para reduzir o deficit público. O poder quer voltar à taxa de poupança nula para que o dinheiro possa ser captado pelo carrossel financeiro; o seu negócio é a geração de dívida, não de poupanças. E, em 2023, espera-se que na Europa do euro, deixe de haver dinheiro em papel ou metal; tudo ficará gravado, não nas estrelas mas nos servidores do sistema financeiro globalizado[2], num grau muito mais elevado de controlo das vidas das populações.

Hoje, o tão desejado crescimento económico, o do nebuloso PIB, tem como fulcral e mais usual, o recurso a dívidas contraídas por famílias, empresas e Estados. O carrossel financeiro roda num outro palco.

Em regra, as famílias endividam-se junto dos bancos, nomeadamente para suportar a posse de casa e meios de transporte, necessidades essenciais descuradas pelos Estados; estes, ávidos cobradores de impostos, cederam a sua satisfação à sagrada “iniciativa privada”[3]. A engrenagem da dívida, com origem nas famílias, tem o seguinte enquadramento:

·         As famílias endividam-se por décadas, aproveitando a baixa das taxas de juro concedidas pelos bancos; e os Estados mostram o seu parasitismo captando impostos – IMT, Selo e, posteriormente, IMI, ad secula seculorum.

·         O risco para os bancos é baixo porque o imóvel é objeto de hipoteca e de fianças; o risco, é todo das famílias, em casos de desemprego ou separação conjugal, por exemplo;

·         As baixas taxas de juro coadunam-se com os salários, também com fraca evolução. E as primeiras não preocupam particularmente os bancos, como se verá a seguir;

·         Os bancos credores, não ficam à espera que passem décadas para recuperar o capital emprestado e os juros. Juntam um grande número de créditos, repartem o seu valor em títulos que colocam no mercado financeiro, recuperando o equivalente a grande parte do crédito concedido às famílias devedoras. A essa operação chama-se titularização e corresponde à constituição de uma cascata de operações sucessivas, com a inclusão de novos créditos, envolvendo sucessivos grupos de compradores de habitações ou outros, de longo prazo;

·         Sucintamente, há uma dívida familiar constituída para várias décadas e um banco concedente do empréstimo. Esse banco vai reunir vários empréstimos desse tipo (e outros) e emitir títulos que serão comprados por outras instituições, recuperando assim, um valor onde se inclui o valor da totalidade desses vários empréstimos concedidos. Porém, não deixou de ser credor daquela família e de outras; apenas utilizou um expediente para antecipar o retorno dos valores dos empréstimos.

A transação colocou, em circulação, um valor que é o espelho dos empréstimos para habitação ali englobados; e, isso pode multiplicar-se n vezes, tantas quantas as titularizações efetuadas envolvendo os débitos, podendo associar-se a um jogo de espelhos ou à constituição das pirâmides de Ponzi, cujo valor máximo é, teoricamente, o infinito. Juntando todas aquelas dívidas, o mesmo banco torna-se devedor de quantos adquiriram os títulos emitidos, mas recolheu dinheiro para novas aplicações.

De permeio, os bancos podem aumentar as suas disponibilidades para a concessão de crédito, adquirindo títulos de dívida pública - eventualmente com taxas negativas – e que entregam, de imediato, ao banco central em troca de dinheiro para o seu uso corrente, a concessão de crédito ou a especulação bolsista. Isto é, os bancos centrais, sem alterar nada no equilíbrio dos seus balanços, procedem a acréscimos dos seus créditos sobre o volátil sistema financeiro que, em teoria deveriam controlar (como se viu nos casos… BPN, BES…) e aceitam como garantia títulos de dívida pública que virão a ser pagos pela carga fiscal que incide sobre os povos, por imposição das suas classes políticas, fachadas dos interesses do sistema financeiro e das transnacionais. O equilíbrio financeiro não se altera; o que acresce é a punção fiscal presente e futura para pagar a dívida pública e o endividamento particular, resultante do abandono pelos Estados de políticas de habitação e de transportes públicos em favor da tão cantada iniciativa privada.

Também as empresas recorrem ao endividamento. As baixas taxas de juro radicam-se na política dos bancos centrais no mesmo sentido, com as devidas repercussões na banca comercial que, por sua vez, desenvolve ações de titularização para libertar capitais para novos empréstimos.

O crédito barato - e as quase nulas taxas de remuneração dos depósitos - articulam-se para fomentar o consumo e, simultaneamente, desencorajar a poupança; daí que se forme uma quase obrigação no sentido do endividamento… como interessa ao sistema financeiro e às classes políticas que, na sequência, se apossam do futuro de pessoas e empresas, capturadas pelas obrigações face ao sistema financeiro. Assim, a formação do crédito nasce, não das poupanças mas nas pirâmides de Ponzi em que se insere a prática das titularizações.

Essas pirâmides engrandecem-se ainda com a constante entrada nos circuitos “legais” do dinheiro proveniente dos vários tráficos (drogas, armas, seres humanos…), corrupção, etc. para alegria do sistema financeiro e com o olhar distraído da supervisão dos bancos centrais e outros pomposos reguladores; em regra, os governos assanham-se mais contra as fugas fiscais dos pequenos negócios e muito pouco com a evasão fiscal dos ricos[4]. Esses reguladores e os governos nacionais, tradicionalmente, mostram-se distraídos com o dinheiro que circula entre o sistema financeiro visível e as dezenas de registos offshore espalhados pelo mundo, mormente em ilhas remotas.

As empresas, maximizando a obtenção do crédito barato, reduzem a utilização de capitais próprios; e, no caso português, banalizou-se também – e há muitos anos - a utilização, pelas empresas de contribuições, devidas e não pagas, à sonolenta Segurança Social portuguesa, parasitada por todos os governos… sem qualquer protesto do mundo sindical ou dos partidos ditos da oposição. A delapidação da Segurança Social é uma prática recorrente que faz parte de um acordo tácito no seio da classe política.

A competitividade das empresas vai assim surgir dos baixos níveis salariais dos trabalhadores – atomizados e desorganizados - nas horas de trabalho não pagas, no trabalho precário, no despedimento facilitado ou mesmo, pelos layoffs facilitados pelo governo em tempos de covid-19.

Todo este sistema baseado em cascatas de crédito é extremamente vulnerável mesmo que ancorado em taxas de juro bastante baixas, para evitar dificuldades às empresas e, ligadas a taxas de inflação igualmente baixas; assim, fomenta-se uma elevada propensão consumista da população que, com salários estagnados, envereda pelo recurso ao crédito, facilitado pela banca.

Este modelo de integração de entidades – empresas, mormente as mais pequenas, os Estados e a banca – depende essencialmente do banco central que dificilmente o poderá cancelar:

·         O abastecimento do sistema financeiro não pode cessar pois o crédito bancário seria bem mais caro e difícil de obter sem firmes garantias, o que muitas empresas não poderiam oferecer;

·         A sua cessação conduziria a uma enorme crise global, seria o desabar de um castelo de cartas, com a falência de inúmeras empresas, endividadas e com acumulação de malparado nos bancos. A ativação de hipotecas conduziria à acumulação de imobiliário sem compradores e, portanto, desvalorizado, com impactos a montante, na construção, que incorpora elementos de muitas indústrias, serviços e trabalho;

·           Os despedimentos de trabalhadores e a mobilização de rendimentos de substituição, vindos da esfera estatal, não evitariam dificuldades no pagamento das prestações dos créditos para habitação;

·           Os subsequentes efeitos nas contas públicas (deficits) afetariam o habitual recurso a “leilões” de dívida pública, certamente com taxas de juro muito mais altas do que hoje.


[1] Segundo a ministra portuguesa do Trabalho, 42000 empresas recorreram ao layoff simplificado (dois salários mínimos) e outras medidas que envolveram 380000 trabalhadores

[2] desaparição do dinheiro físico na Europa do euro – hoje, um valor de $ 14,5^11 - que incorporará as disponibilidades do sistema financeiro para a especulação a que se deve acrescer os custos do abastecimento das populações com notas e moedas, deixando as populações sem quaisquer instrumentos próprios de troca que não a direta, trocar batatas por cebolas, por exemplo. Se se pensar que a fortuna dos cinco mais ricos do planeta – Bezos, Gates, Arnaud, Zuckerberg e Ellison – é de $ 414^9… talvez não seja muito…

[3] http://grazia-tanta.blogspot.pt/2012/12/a-nao-politica-de-habitacao-e-o-imi-1.html

http://grazia-tanta.blogspot.pt/2013/01/a-nao-politica-de-habitacao-e-o-imi.html

[4] Em Portugal, o caso BES é um bom exemplo do entrançado de circuitos e da parcimónia como os governos encaram o assunto, incorporando nos seus elencos gente muito bem relacionada com o crime financeiro ou seniors de escritórios de advogados. Nenhum governante se quer (ou pode) mostrar como um Robin dos Bosques, embora abundem no seu seio os funcionários dos… sheriffs de Nottingham.

A América merece ser ela, não um vírus, a derrotar Trump

Posted: 04 Oct 2020 03:44 AM PDT

«No debate, Donald Trump mascarou Joe Biden: “Ele usa sempre a maior máscara que jamais vi!” Trump levou as mãos à cara, gozando com o zorro democrata. Quanto a ele próprio: “Sei quando preciso de máscara e uso-a.” E a sua equipa? “Ainda esta noite fizemos testes e guardamos a distância social.” Enfim, o costume, Trump claro e falso.

Nessa terça-feira, ao embarcar no Air Force One para Cleveland, a cidade do debate, Trump fez-se acompanhar pela mulher e filhos. Ao embarcar e desembarcar, ninguém usava máscara. O diretor da campanha Bill Stepien, sabe-se, nunca a usou dentro do avião. E, ao chegar, ele e Hope Hicks, a mais próxima colaboradora do Presidente na Casa Branca, entraram para uma carrinha, sem máscara — ambos pagariam caro.

Na quarta-feira, Trump fez um comício no aeroporto de Duluth, no Minnesota, com pessoas apinhadas, a maioria sem máscara. Trump, também sem máscara, pegou num molhe de bonés e atirou-os, um a um, para mãos estendidas e abertas. Para apanhar o boné — ou talvez mais. Na quinta-feira, a conselheira Hicks soube que apanhou mais. Na madrugada de sexta, o Twitter de Trump anunciou que ele e a sua mulher, Melania, também tiveram teste positivo à covid-19.

Do debate, disse na SIC o comentador televisivo Miguel Monjardino: “Foi um shit show.” E tendo ousado o palavrão anglófono, democratizou a informação: “Foi uma merda.” Gostei da ousadia da palavra, porém, o debate não foi shit, isto é, coisa sem valor. Pelo contrário, o debate gerou energia, tal como, a partir de excrementos, um processo chamado “digestão anaeróbia” captura o metano e o dióxido de carbono libertados por bactérias. É uma indústria moderna e útil, o aproveitamento dos excrementos. Na política também pode ser bom, se os cidadãos toparem a sinceridade sem vergonha e/ou a mentira descarada de quem debate.

O expelido por Trump, no debate, expôs Trump. Que culpa tem ele de que alguns cidadãos, de além-mar e por cá também, sejam pitosgas? Ensinar-nos sobre quem discute é, aliás, a primeira função de um debate. Trump é um livro aberto. Em discursos, comícios, tweets e entrevistas, Trump nunca engana. Já o vi num palanque a gozar, com gestos incontrolados, um paraplégico; num discurso, sobre um colega de partido, o falecido senador McCain, ouvi-o chamar cobarde a um herói de guerra; e, numa entrevista, dei por ele a meter a perna direita pela esquerda, para dizer o que levou um certificado médico a livrar da guerra do Vietname o filho de milionário que ele era…

Nos debates, se formos atentos à sua impudicícia, Trump diz-nos sempre muito. Viu-se na terça. Ele interrompeu quase todas as intervenções do adversário. Insultou o New York Times, que levou quatro anos a investigar o que qualquer candidato a Presidente faz questão em mostrar — a folha de impostos. Ignorou esta (15 últimos anos sem pagar ao fisco, exceto dois, cada um a 750 dólares) e ignorou as falências sucessivas, impróprias de um homem de negócios tão sagaz. E lançou à cara do adversário o vício de drogas por que passou um filho deste.

Enfim, uma lista de mudslingers (como os americanos chamam às campanhas sujas) que não é novidade em eleições nos EUA. A originalidade de Trump é a sua ação política quase se limitar a essa prática e ele prolongá-la por todo o mandato. Acresce agora o mais grave: o Presidente da América faz pairar dúvidas sobre a legitimidade das eleições, ameaça não aceitar os resultados e manter-se na Casa Branca, mesmo se derrotado. Do nunca visto, com um píncaro no debate: “Proud Boys, cheguem-se para trás e aguardem”, disse Trump. Malta, já vos chamo quando forem necessários...

Os Proud Boys são uma milícia armada pela supremacia branca. Imaginá-la a intimidar no dia da votação vai na esteira do que tem dito Trump. Mas algum senso veio do Partido Republicano e o Presidente teve de ir à Fox dizer que é contra os supremacistas brancos. E que pouco sabe dos Proud Boys. Entretanto, meteu-se o anúncio da covid-19 e Trump não teve ocasião de perguntar a Roger J. Stone, um seu antigo conselheiro, amigo desde a década de 80 e lobbyista de causas sulfurosas, incluindo os Proud Boys.

A investigação oficial sobre a interferência russa nas eleições de 2016 considerou Roger Stone personagem-chave na tramóia de Putin. O FBI levou Stone a testemunhar no Congresso e ele mentiu para proteger alguém. No ano passado, um tribunal condenou-o a sete anos de prisão mas, este julho, Trump comutou-lhe a pena. E Roger J. Stone Jr. está longe de ser o finório com maior influência no narcisista que tomou a Casa Branca.

Ironia extraordinária esta de um vírus transformar Trump no mais frágil dos candidatos em vésperas de presidenciais na América. Espera-se que lhe passe a covid-19, por duas razões. A primeira, porque a América merece ser ela, e não um vírus, a derrotar a bactéria que na história moderna mais pôs em perigo o país. A segunda, porque Donald Trump não pode desaparecer sem sabermos mais dele. Por exemplo, sobre o seu pai espiritual e mentor, o advogado Roy Cohn.

Cohn foi um dos homens fulcrais nos Estados Unidos na segunda metade do século passado. Aos 24 anos era a cabeça pensante do McCarthyism que à pala de combater o comunismo (em plena Guerra Fria) perseguiu intelectuais, artistas e funcionários, numa paranóia liberticida que também caçou homossexuais — apesar de Roy Cohn ser gay (no armário). Nas décadas de 60 e 70, tornou-se o advogado mais temido de Nova Iorque, difamando os adversários, tecendo uma rede entre a câmara, a arquidiocese e a máfia, importando-lhe menos a lei do que corromper juízes do Bronx e de Brooklyn. Um credo: sempre atacar, nunca pedir desculpa.

Em 1973, Donald J. Trump procurou Cohn, dez anos mais velho, mas já uma lenda com um quarto de século. Donald e o pai, milionários na construção civil, tinham um problema com o governo que queria multá-los por não alugarem casas a negros. O advogado pequenino, olhos azuis e um esgar de desprezo nos lábios tinha a solução: pôr o Governo em tribunal. Batem-te? Bate dez vezes mais forte. Ganha a todo o custo e nunca admitas ter errado. Apanhemos a máquina do tempo num regresso ao futuro: “Eu?! Dizer que a covid-16 era só simples gripe? Nunca disse…”

Foi o começo de uma feia amizade. Expulso da barra dos tribunais de Nova Iorque por falsificar a assinatura de um cliente bilionário, Roy Marcus Cohn morreu de sida, em 1986, dizendo que era cancro no fígado. Deixou a herança a um amante. Casas de luxo e o Rolls Royce de chapa de matrícula com as suas iniciais “RMC” e a da limusina Cadillac: “DJT”, as iniciais de Trump. O herdeiro ficou desiludido, o fisco abocanhou quase tudo por causa dos impostos em dívida. Sobrou um par de botões de punho incrustados de diamantes que Trump lhe oferecera. Nem isso ganhou o herdeiro: os diamantes eram falsos.

O cínico mestre Roy Cohn havia de gostar desse desfecho: o seu aprendiz iria longe. Talvez até à Casa Branca.»

Ferreira Fernandes