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quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sobre a proposta de um não referendo à eutanásia

Posted: 21 Oct 2020 03:45 AM PDT

«No dia 23 de Outubro o Parlamento vai decidir pela não realização do referendo sobre a despenalização da morte antecipada em Portugal. Já todos adivinhamos que vai ser esse o sentido de voto da maioria, a mesma maioria que aprovou o que agora se pretende referendar. Porquê, então, esta questão agora?

Entendo que a resposta deve estar relacionada com a evocação de um último argumento contra a despenalização da morte medicamente antecipada. Propõe-se o referendo, este não é aprovado, e poderá sempre argumentar-se que a maioria dos portugueses seria contra este processo retirando legitimidade à aprovação de uma Lei neste sentido.

Discordo em absoluto desta ideia. Entendo que um referendo sobre um tema tão complexo não legitima, antes dicotomiza ainda mais a sociedade sobre o tema. Na generalidade, as pessoas tomam decisões a partir das suas crenças, desejos e preconceitos, o que normalmente não resulta bem em decisões difíceis com enormes repercussões sociais. Um referendo colocaria as pessoas ainda mais barricadas atrás das suas certezas, num dos lados e, por defensivas, sem capacidade de dialogar com o outro lado. O que creio precisarmos aprender num tema como este é a lidar com as dúvidas que um processo de antecipação da morte de alguém nos tem que colocar, nomeadamente como encontrar soluções que nos ajudem a diminuir as margens de erro das decisões a tomar.

A lógica da democracia representativa, que como sabemos é um sistema com defeitos e limitações, é eleger pessoas com sensibilidades diversas, para pensarem, ouvindo contributos técnicos, e fazerem escolhas responsáveis sobre assuntos complexos a partir dessa diversidade. E a antecipação da morte a pedido do próprio deve ser dos assuntos mais complexos e difíceis de considerar. Há vários anos que me debruço sobre este tema, procurando contribuir com conhecimento científico e fugindo da dimensão opinativa. Tenho medo daqueles que afirmam posições definitivas e “certas”. Essas opiniões apenas servem para polarizar a discussão e reduzir a mesma a uma dicotomização falaciosa de favor ou contra, altamente condicionadora da capacidade de compreender as diversas perspectivas de um problema como este.

Não, não estamos perante uma escolha simples entre respeitar a vontade da pessoa ou colocar em causa o respeito pela vida humana. Sim, estamos perante uma escolha que implicará compreender o papel do Estado e quais os custos para as pessoas e para a sociedade de, por um lado, prolongar a vida das pessoas e, muitas vezes, o seu sofrimento, ou, por outro, terminar a vida de alguém prematuramente, a seu pedido. Sim, estamos perante uma discussão que pretende ajudar a compreender até que ponto as decisões das pessoas podem estar assentes em medos irrealistas, em convicções mal construídas, ou até em pressões de terceiros. Sim, estamos perante a dificuldade de sabermos até que ponto o desejo de morrer, numa pessoa com doença terminal ou lesão definitiva, se altera ao longo do tempo, e em caso afirmativo, saber como, quando, porquê e qual deve ser o impacto daí resultante. Sim, estamos essencialmente perante um problema complexo de tomada de decisão que queremos que seja o mais representativa possível do melhor interesse do doente. Porque todos já tomamos decisões das quais nos arrependemos depois.

Por isso mesmo me é absolutamente incompreensível como tão pouco se tem estudado sobre o processo de tomada de decisão na eutanásia ou no suicídio assistido. Como também não consigo compreender como podem os psicólogos serem tão pouco parte de um processo como este, quando a maior complexidade não está relacionada com a definição do diagnóstico ou a técnica de antecipação da morte, mas sim com a decisão e as condições de decisão do doente, com o facto de estarmos seguros de que ao acedermos ao pedido do doente estaremos de facto a fazer aquilo que é melhor para ele.

Apelo a que não se tente diluir a responsabilidade de uma decisão destas num referendo. Não se procure politizar ou promover ideologias num tema tão difícil. Vamos procurar, sim, encontrar soluções que limitem e previnam ao máximo potenciais erros de avaliação e que valorizem a relação e a confiança entre profissionais de saúde e doentes. Vamos procurar compreender melhor porque é a evolução do desejo de morrer distinta num doente terminal face a uma pessoa com uma lesão definitiva. Vamos criar condições para que as pessoas possam reflectir, livremente e sem juízos de valor, sobre as suas decisões e receios com alguém capaz de a ouvir e de a compreender, sem com isso (a) julgar. Vamos, portanto, procurar soluções que humanizem os cuidados de saúde e promovam, de facto e deste modo, a dignidade da pessoa.»

Miguel Ricou

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por estatuadesal

(Luís Filipe Castro Mendes, in Diário de Notícias, 17/10/2020)

Il fenómeno è stato fulmineo e folgorante. Dopo pochi anni le lucciole non c"erano piú.
(Pier Paolo Pasolini)


Em criança vivi algum tempo na ilha Terceira. A base aérea americana nas Lajes era todos os fins de semana um lugar de visita em família, onde sons e objetos de um novo mundo, ainda mal conhecido por cá, convidavam ao consumo e acenavam à minha curiosidade.

À data, em 1955, era presidente dos Estados Unidos o republicano Dwight Eisenhower (Ike), o general que comandara as forças que, do lado ocidental, fizeram cair o nazi-fascismo na Europa. Um soldado americano (negro, por sinal) que gostava de brincar comigo, o Jimmy, ofereceu-me então um pin lindíssimo (achei eu na altura) que encerrava o slogan eleitoral de Eisenhower: I LIKE IKE.

Muito mais tarde, quando li Roman Jakobson, descobri que esta sigla lhe serviu para exemplificar aquilo a que o autor chamou "função poética da linguagem", que eu glosarei aqui como a faculdade de as palavras brincarem consigo próprias.

A música das palavras, o jogo das palavras umas com as outras, a chamada função poética, tudo isto é coisa que aprendemos muito pequenos, logo que começamos a falar. No meu caso, a beleza de I LIKE IKE foi seguida de muitos poemas que minha mãe me lia e que eu, mesmo que não atingisse todo o seu sentido, vivia na música, no ritmo e no jogo sem fim que as palavras brincavam no poema.

A poesia não é difícil, ela dá-se a cada um de nós muito cedo na vida e aceitá-la ou recusá-la está desde sempre ao nosso alcance. Mas entre nós (e não só entre nós) a poesia parece estar a viver hoje como a Cinderela da literatura.

Já ninguém sabe já muito bem para que serve a poesia e os que a leem são quase sempre os que também a escrevem ou os que fazem parte de uma tribo silenciosa e secreta, assintomática eu diria, que poucas vezes encontra os seus semelhantes e por isso faz uma festa cada vez que reconhece algum: os leitores de poesia.

O espanto que causou a atribuição do Prémio Nobel a uma criatura que escreve poemas e não aparece na televisão é paralela a uma corrente atitude de maravilhamento bacoco com uma ideia arcaica da poesia como aura sagrada que investe de distinção e doura de vaidade as elucubrações de quem se professe seu seguidor. E é coexistente essa ideia sublimada de poesia, que inventa aprendizes de feiticeiro e promove maldições de ópera bufa, com o real desprezo pela poesia que o dia a dia e a leitura dos jornais nos vai indicando.

E no entanto cada vez mais vozes jovens e menos jovens se aventuram por esse caminho, escrita que dificilmente promete publicação ou reconhecimento a quem começa, escrita que exige tudo e nada dá a quem a ela se vota. Só os que escolhem a dificuldade merecem esse rumo, por isso os poetas não começam por ser populares, bonzinhos, jeitosos ou engraçadinhos. Começam por reconhecer que, como avisava Jorge de Sena na sua Carta a Um Jovem Poeta: a poesia é a solidão mesma, não a que vivemos, não a que sofremos, não a que possamos imaginar, mas a solidão em si, vivendo-se à sua custa. E isso é reconhecer que na poesia tudo aprendemos e nada sabemos, nada a não ser a necessidade bruta de seguir essa obstinação sem recurso e sem remédio de continuar a ferirmo-nos contra as palavras.
De Louise Glück, poeta mais que consagrada no cânone da poesia moderna dos Estados Unidos, parecia que nunca aqui ninguém ouvira falar. Tivesse ela escrito um romance saboroso e badalado, fosse ela porta-voz de uma qualquer causa identificada, já os meios de comunicação lhe teriam concedido a mercê de uma referência. Mas não era o caso. Louise Glück só carregava consigo a ferida da poesia, só trazia com ela a sua própria voz sofrida. É uma solidão que assusta e convida a afastar-nos. Só a tribo solitária e assintomática dos leitores de poesia reconheceu nela o odor selvagem de caça por que a poesia se dá a conhecer.

A poesia coexiste mal com o ruído em que estamos a ver desfazer-se a música do mundo. A poesia não é fácil, mesmo quando se dá sem reservas nem disfarces. Por isso ela é relevante e valiosa, mesmo que pouco já esperemos dela. E por isso as palavras de que é feita continuarão a acender luzes por dentro das nossas noites. Teimosamente, como os pirilampos antes de desaparecerem.

quarta-feira, 21 de outubro de 2020

Reforçar o SNS para além dos anúncios

Posted: 20 Oct 2020 03:34 AM PDT

«Não foi preciso uma pandemia para compreendermos que o SNS, para se fortalecer como pilar da nossa democracia, precisa de profissionais, de investimento, mas também de uma estratégia. O modelo que vigorava desde os anos 90 enfraquecia o serviço público que se tornava numa plataforma de contratação a privados, sem ganhos, quer na qualidade dos cuidados, quer na poupança de recursos financeiros. Esta foi a debilidade que António Arnaut e João Semedo fizeram questão de expor, quando escreveram um projeto de nova Lei de Bases da Saúde.

A nova Lei de Bases foi um trabalho difícil, exigiu negociações duras com o PS, mas produziu alguns instrumentos para a organização futura do SNS. O passo seguinte seria, tal como previsto em 2019 e inscrito no Orçamento para 2020, um reforço em 8400 profissionais adicionais, o início da definição de um regime de exclusividade no SNS e a aquisição de meios de diagnóstico. São medidas óbvias, se pensarmos que o SNS gasta milhões a contratar fora os profissionais e meios de que não dispõe. Medidas que a pandemia tornou ainda mais urgentes.

Apesar deste compromisso, assente num diagnóstico consensual, em 2020 o SNS está a perder quase mil médicos, nada se avançou no regime de exclusividade e pouco foi feito para internalizar os meios de diagnóstico.

Os concursos abriram já perto do fim do ano e enfrentam duas dificuldades que põem em causa toda a sua eficácia. A primeira é que, face às condições laborais e remuneratórias, o SNS não consegue atrair e fixar os profissionais necessários. Veja-se que ficaram por preencher mais de 100 vagas para médicos de família, apesar de termos mais de um milhão de pessoas sem médico de família. A segunda dificuldade, que se aplica em particular aos médicos especialistas, resulta do poder da Ordem dos Médicos para limitar artificialmente o número de vagas disponíveis para formação, pondo em causa a quantidade de especialistas futuros.

Se queremos reforçar o SNS e garantir que ele enfrenta a pandemia sem descuidar todos os outros serviços, não basta abrir concursos. É preciso defender as condições de trabalho e dedicação dos profissionais ao serviço público de saúde. Por isso, o Bloco quer que o Governo contrate os profissionais com que se comprometeu, detalhando o calendário e localização destas contratações, mas essa medida só será efetiva se for acompanhada de outras, que fixem os profissionais no SNS, como o regime de exclusividade e a criação da carreira de técnico auxiliar de saúde. Estas medidas, que nos separam do Governo no Orçamento, não são detalhes. Não podemos aceitar um compromisso que sabemos que o Governo não tem instrumentos para cumprir. Responsabilidade é olhar para o SNS, compreend.er o que correu mal e propor medidas para que não se repita.»

Mariana Mortágua

terça-feira, 20 de outubro de 2020

Como Trump fortaleceu a China

Posted: 19 Oct 2020 03:46 AM PDT

«No dia 21 de Setembro, num comício em Dayton, Ohio, proclamou Donald Trump: “Se Biden vencer, a China vence. Se nós vencermos, vence o Ohio e, com plena justiça, vence a América.” É oportuno perguntar que o pensam os chineses do assunto. Não é saber se Xi Jinping “vota Trump” ou “vota Biden”. É a sua percepção dos quatro anos da presidência de Donald Trump.

Resume Yan Xuetong: “Trump arruinou o sistema de alianças dos Estados Unidos” e deu lugar ao “período de melhor oportunidade estratégica para a China desde o fim da Guerra Fria”. Cito Yan porque é um dos mais escutados especialistas chineses, na Ásia e no Ocidente, decano do Instituto de Relações Internacionais Modernas, da Universidade Tsinghua, de Pequim, e presidente do Carnegie-Tsinghua Center for Global Policy.

Explicitou numa entrevista: “A China tem a oportunidade de reduzir a diferença de poderio em relação aos EUA. (…) O Presidente Trump confirmou claramente que a liderança global é um fardo ruinoso para os EUA.” Note-se que Yan não pensa que Pequim esteja a caminho da hegemonia nos próximos tempos: “Só quando a comunidade internacional reconhecer que a China é um Estado mais responsável do que os EUA, a China será capaz de substituir os EUA na liderança do mundo.”

Diz um documento oficial do Partido Comunista Chinês (PCC): “Apesar de os regimes ocidentais parecerem deter o poder, a sua vontade e a capacidade de intervir nos assuntos mundiais está em declínio. Os Estados Unidos já não podem ser o garante da segurança global e da prosperidade, pelo contrário, prosseguem uma política externa unilateral e inclusive nacionalista.”

Esta opinião não é unânime dentro das elites chinesas. Mas está largamente difundida. “Muitos chineses anónimos desejam que Trump vença, porque pensam que ele destruiu o sistema americano e as suas alianças”, diz à Time Wang Yiwei, director do Instituto de Assuntos Internacionais da Universidade Renmim, de Pequim. “Se Trump continuar a fazer o mesmo pode haver novas oportunidades para a China.”

A percepção chinesa do declínio americano não se deve apenas à errática política chinesa e asiática de Trump. Pequim olha atentamente as vicissitudes domésticas americanas e, em particular, o estrondoso fracasso na luta contra a pandemia da covid-19. Encara os EUA como uma nação dividida, decadente e em risco de crise institucional. Esta percepção não é apenas chinesa. Preocupa também, e muito, os ocidentais. “Por razões de orgulho ou estratégia pode ser correcto entrar em confronto com a China”, escreve Janah Ganesh, analista do Financial Times. O problema é isso coincidir “com a mais fracturante época na vida nacional desde há meio século”. Consequência? “Uma América dividida não pode competir com a China num duelo de superpotências.”

Equívocos estratégicos

A percepção que uma potência tem da força ou fraqueza dos rivais é determinante na sua estratégia. A actual e mais agressiva política externa chinesa reflecte em larga medida a sua análise da América. Ao mesmo tempo que falam no declínio americano, os líderes chineses crêem que os EUA tentarão desesperadamente conter a ascensão da China. Daqui as discussões em torno da chamada “nova guerra fria” e o risco de um choque entre as duas potências.

Donald Trump chegou ao poder propondo-se “meter a China na ordem”, em nome do slogan America First. Ao fim de quatro anos, há uma geral percepção de que os Estados Unidos estão a perder influência, enquanto a China promoveu o seu estatuto internacional. A relação bilateral entre Washington e Pequim é a mais importante do mundo de hoje, não afecta apenas as duas potências mas o futuro da ordem internacional.

O conflito sino-americano não é uma invenção de Xi e Trump, é algo de natureza estrutural e longa duração, que se desenvolve em distintas etapas desde o início do século. Novos líderes não vão alterar a natureza irremediavelmente competitiva da rivalidade entre as duas potências. Mas podem regulá-la. Para a China, continua a ser primacial anular a supremacia americana na Ásia. Para os EUA, isso está fora de causa.

Teóricos de estratégia americanos apontam pesados erros à Administração Trump. Um artigo de Lawrence D. Kaplan no Washington Post, significativamente intitulado “How Trump is losing Asia” ("Como Trump está a perder a Ásia"), resume esses argumentos. Trump abandonou a Parceria Transpacífico enquanto a China acelerava a Nova Rota da Seda; e pôs em causa as garantias de segurança aos seus aliados, em especial o Japão. Não é apenas Pequim que ganha margem de manobra na Ásia, são os aliados que perdem a confiança nos Estados Unidos. Escreve Kaplan: “Pela primeira vez, desde a II Guerra Mundial, o Presidente dos EUA abalou a essência dessa confiança. A China está a promover uma visão, certamente imperfeita e coerciva, enquanto os EUA nada têm para oferecer.” Sem aliados e apoio local, os Estados Unidos não podem permanecer uma potência influente na Ásia.

Diga-se, de passagem, que a grande perturbação lançada por Trump deriva em grande parte dele reduzir a política externa a instrumento da política doméstica. Isto é patente desde a sua campanha eleitoral de 2016 e tem efeitos perversos.

Melhor do que Xi

O sinólogo britânico Steve Tsang, director da Escola de Estudos Orientais e Africanos (SOAS), de Londres, declara ao FT: “Desde que Trump se tornou Presidente, fez mais do que ninguém, incluindo Xi, para tornar a China grande de novo, dando a Xi o que ele desejava para a promoção global da China. A balança de poder no mundo oscilou mais a favor da China.”

Que expectativas há em Pequim sobre o desfecho da eleição americana? Chen Zhiwu, da Universidade de Hong Kong, diz ao mesmo jornal que haverá uma diferença de estilo entre Trump e Biden. “Uma Administração Biden pode facilitar a vida à China durante um ou dois anos, mas a longo prazo levantará desafios mais duros à China.”

O analista Yu Jie, do think tank Chatham House, de Londres, faz uma distinção: “Uma vitória de Trump pode ser temível para a China mas também um presente político para Xi. Quanto mais os EUA demonizarem a China, mais os cidadãos chineses – mesmo os que discordam da liderança de Xi – se unirão à sua volta.”

Sublinhado final: outro problema preocupante é o risco de a China calcular mal a dimensão do “declínio americano”. Mas não é a matéria desta análise. Aguardemos os resultados do 3 de Novembro.»

Jorge Almeida Fernandes

segunda-feira, 19 de outubro de 2020

Sobre as apps covid: “La technologie est la société rendue durable”

Posted: 18 Oct 2020 03:59 AM PDT

«A polémica com as aplicações móveis para rastreamento digital de contactos continua com a recente proposta de tornar a sua instalação obrigatória. A intenção do Governo tem tanto de inaceitável como de compreensível. Perante o aumento de casos, e a mais que previsível sobrecarga dos serviços de saúde, o Governo esgota todas as alternativas. Não para evitar o que parece inevitável, mas provavelmente para justificar e preparar a população para um novo estado de emergência. Quanto estivermos novamente confinados, com tudo o que isso significa em termos económicos e sociais, o Governo poderá sempre dizer que a instalação massiva da app teria evitado um mal maior.

Tal como escrevi aqui em Maio, o principal obstáculo às aplicações covid-19 não é a segurança ou a privacidade, mas sim a sua utilidade numa lógica de cidadania. Uma aplicação que se instala sem ter qualquer interactividade não permite que os utilizadores criem um bom modelo mental sobre o seu funcionamento. O célebre episódio de Rui Rio tornou pública a dúvida que persiste em grande parte das pessoas, incluindo as que acham que a instalação do StayAway Covid é um acto de cidadania digital. Todos criamos modelos mentais a partir das nossas crenças e usamos esses modelos para nos orientarmos no mundo que nos rodeia. Os computadores usam modelos mentais de ficheiros, pastas, tampos de secretária e baldes de lixo para permitir que as pessoas possam lidar facilmente com conceitos complexos dos sistemas informáticos como sistemas de ficheiros, permissões, dispositivos de armazenamento, etc. Infelizmente, as app de rastreamento não desenvolvem qualquer modelo mental. Ficam suspeitamente ligadas (ou não) até que algo aconteça!

As apps de rastreamento digital foram desenvolvidas com base em duas premissas erradas. Primeiro, que o principal objectivo seria servir as autoridades de saúde ajudando-as a refazer os processos tradicionais de rastreamento. Segundo, foram desenvolvidas por equipas de engenharia muito competentes nos algoritmos de segurança e privacidade, mas sem qualquer competência em interacção. O resultado é uma aplicação tecnicamente impecável, mas completamente incompreensível para o comum dos cidadãos (e admito que para os próprios profissionais de saúde). Ao desenvolver uma solução focada na autoridade de saúde criaram-se expectativas erradas sobre a sua eficácia. Ao não apostar na adopção, na interactividade e no feedback aos utilizadores (tal como fazem as aplicações de exercício físico), alimentam-se todo o tipo de especulações e aproveitamentos políticos.

Provavelmente, o grande contributo destas apps será o debate público sobre a cidadania digital. Esta questão fez-me lembrar a célebre frase de Bruno Latour (sempre ele) sobre a agência dos objectos inanimados: “La technologie est la société rendue durable.” No exemplo clássico de Latour, é o chaveiro pesado que se encontrava em muitos hotéis e que induzia os hospedes a deixar a chave na recepção. O chaveiro de Latour é assim um exemplo de um objecto inanimado que transporta simbolicamente uma regra. O desconforto de carregar um pesado chaveiro para fora do hotel é muito mais eficaz do que qualquer mensagem escrita. O valor desta inovação é claro, mas naturalmente tem um preço. Primeiro, o hotel tem que se aliar a quem consegue produzir a inovação que, por sua vez, se tem que aliar a quem sabe fazer chaveiros pesados e desconfortáveis. Segundo, a regra “deixe a chave na recepção” deixa de ser uma regra para passar a ser um acto muitas vezes não intencional nem consciente dos clientes.

O que torna o exemplo de Latour interessante é que antes da introdução da inovação apenas o gerente do hotel estava interessado em que os clientes deixassem a chave na recepção. Com a introdução das chaves pesadas e desconfortáveis, o gerente e os clientes passaram a concordar que o mais conveniente para todos seria que as chaves ficassem na recepção. Ao contrário do exemplo de Latour, as apps de rastreamento digital acabam por não servir as intenções do Governo e das autoridades ao não criarem o movimento necessário para que os cidadãos, por conveniência ou utilidade, decidam contribuir sem serem obrigados.

P.S.: Uma palavra de apreço à equipa do INESC-TEC pelo esforço e competência e ao Rui Oliveira pela coragem de assumir que não concorda que a aplicação seja tornada obrigatória.»

Nuno Jardim Nunes

Professor Catedrático do Instituto Superior Técnico; Presidente do Instituto de Tecnologias Interativas do LARSyS