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segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Desvalorização salarial é erro

Posted: 24 Oct 2020 04:10 AM PDT

«Taxas de desemprego de grande dimensão transportam sempre uma forte tendência para a desvalorização salarial. Essa desvalorização e a persistência de desemprego transformam-se em profunda e prolongada crise, em entrave à recuperação económica, e afundam o patamar de desenvolvimento do país.

Quando observamos a evolução do peso dos rendimentos do trabalho no Produto Interno Bruto (PIB) constata-se uma queda da parte do trabalho, quase contínua, durante duas décadas. Em 2001 esse peso era de 60% e em 2019 de 51%. O enfraquecimento acelerado da negociação coletiva por efeito de disposições introduzidas no Código do Trabalho - em vigor desde 2003 - e o processo de financeirização da economia com alteração do seu padrão de especialização, constituíram causas fundamentais daquele rombo na fatia da riqueza a que os trabalhadores deviam ter direito. Está aí, também, uma fonte das desigualdades que marcam a sociedade portuguesa.

Só o Governo PSD/CDS, através da aplicação das receitas de desvalorização interna recomendadas pela troika e ampliadas pelo próprio Governo, impôs uma perda superior a cinco pontos percentuais entre 2010 (56,5) e 2015 (51,5). Na legislatura seguinte o Governo do Partido Socialista (PS) travou a queda, mas não encetou a recuperação que se impunha, dado que, em 2019, a parte do trabalho era de 51,44%.

No contexto em que estamos, ou se segue uma trajetória de coerência e articulação entre as políticas sociais (protegendo todos) e as políticas de emprego, evitando a todo o custo o agravamento do desemprego e, concomitantemente, impulsionando a criação de emprego e a melhoria da sua qualidade, ou marcharemos para o retrocesso. O Governo teima em adotar um rumo que não faz essa necessária articulação: afirma preocupações sociais e adota algumas medidas reparadoras, mas não prepara barreiras que impeçam uma nova vaga de desvalorização salarial.

As forças económicas conservadoras e da Direita ressuscitam as velhas teses de que o importante é criar emprego independentemente da sua qualidade, e que isso se garante entregando dinheiro aos acionistas das empresas. As políticas de baixos salários são apresentadas como inevitáveis e necessárias. Recusam contrapartidas claras e controláveis, designadamente pela assunção de compromissos negociados com os trabalhadores e os seus sindicatos, e muitos ainda pregam a necessidade de se atrair investimento estrangeiro na base da oferta de mão de obra barata.

Aí está a reposição da cartilha da troika, que se mostrou profundamente injusta e estéril. Acresce que esta crise pandémica afeta profundamente não só a procura interna como, de igual modo, a procura externa. Este facto e a constatação de que a pobreza é impeditiva do desenvolvimento, reforçam a necessidade de um forte combate à desvalorização salarial.

O Governo e o PS andam mal quando proclamam que os seus interlocutores preferenciais são os partidos à sua Esquerda e, depois, afunilam toda a discussão de políticas com eles em torno do Orçamento, e quando acantonam as suas propostas, nas áreas laborais e sociais, num beco onde dizem não haver razoabilidade e bom senso.

A proteção social tem mesmo de ser articulada com políticas quantitativas e qualitativas de emprego e de valorização salarial.»

Manuel Carvalho Da Silva

Quando as palavras não servem para nada

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 24/10/2020)

Pacheco Pereira


Há muito tempo que penso que as classificações assentes na dicotomia esquerda-direita não servem para grande coisa e, bem pelo contrário, têm um efeito contraproducente. Mas o seu peso na linguagem política é hoje tão forte que muitas vezes concedo ao seu uso, por economia de explicações, mas sempre contra vontade.

O próprio facto de o seu uso ter altos e baixos mostra até que ponto não se trata de classificações unívocas, mas de modas e ciclos semânticos que dependem do léxico corrente que, por sua vez, remetem para o modo como se desenvolve a conflitualidade política e o seu contexto. No pós-25 de Abril, mais do que a dicotomia esquerda-direita usavam-se classificações como “socialista”, “comunista”, social-democrata”, “fascista”, “democrata-cristão”, “progressista”, reaccionário”, “revolucionário” (“conservador” e “liberal” não eram muito comuns) quer como autoclassificações, quer como invectivas a adversários. Foi a reciclagem do CDS em PP e da extrema-esquerda em Bloco de Esquerda que levaram ao actual uso corrente da dicotomia esquerda-direita, ou seja, Paulo Portas e Francisco Louçã. Em ambos os casos, houve um elemento de ocultação nesse processo, em particular no caso do abandono do maoísmo e do trotsquismo por parte dos grupos fundadores do Bloco, a favor da mais cómoda e vaga e politicamente correcta designação de “esquerda”.

Mas hoje o uso de “esquerda-direita” é um dos aspectos do geral empobrecimento do debate político, da sua dependência crescente de palavras gastas e de um simplismo analítico. Esquerda-direita é mais uma nomeação, uma invectiva, um enunciado simplista do que uma análise e, por isso, é mais fruto da preguiça do que do rigor. Em tempos de radicalismo e tribalismo, estas palavras condicionam de tal maneira o debate que ficamos presos a elas, contribuindo assim para erros políticos.

Veja-se o modo como se classifica o actual Governo, e por arrastamento o PS. É possível passar horas a ouvir numa reunião do PSD os intervenientes a classificar o Governo como sendo de “extrema-esquerda”. Não se trata sequer de dizer que o Governo, pela sua política de alianças, colabora com a extrema-esquerda, ou concede à extrema-esquerda, mas que “é” de extrema-esquerda. É uma classificação errada e todas as políticas que derivam dessa classificação são-no igualmente. Veja-se, do outro lado, o que o PCP diz do mesmo Governo, classificando-o como sendo de direita ou concedendo à direita. É igualmente errado, mas num certo sentido é menos errado.

Veja-se, na discussão do projecto do Orçamento, o que leva a direita (cá estamos presos nas palavras) a dizer que é de esquerda o Governo. Há duas razões principais: uma, que diz que o Orçamento não dá o papel central na recuperação da economia às empresas; e a outra, porque distribui “benesses” pelos funcionários públicos e por certos grupos sociais que seriam a “clientela” do PCP e do BE. Deixando de lado o aspecto interpretativo do Orçamento, nem uma nem outra coisa são especialmente de esquerda, a não ser quando se ligam uma à outra; quando se diz que, por exemplo, o aumento do salário mínimo é uma opção em detrimento dos apoios às empresas, ou quando se diz que há uma contradição entre os apoios ao Estado (a que agora se chama “socialismo”, pobre palavra…) e às empresas. Ora alguns dos países cuja intervenção estatal é maciça são também aqueles em que o mesmo Estado disponibiliza recursos gigantescos às empresas e as duas coisas estão interligadas, como, por exemplo, a Turquia e os EUA. Não se estranhe incluir os EUA, cujo Estado gasta biliões para apoiar o sector privado por via dos gastos militares, ou agora na indústria farmacêutica. E alguém pensa que a “bazuca” europeia não vai disparar para o privado? E desde quando aumentar o salário mínimo, ou as prestações sociais, como fizeram Marcelo Caetano, Sá Carneiro, Soares, Guterres, Cavaco, Sócrates, é especialmente de esquerda? De facto, como classificação a dicotomia esquerda-direita serve-nos de pouco.

E ainda menos nos serve quando vamos ao PCP como classificador, embora o PCP tenha mais razão em dizer que o Governo é de direita do que o PSD, quando o classifica de extrema-esquerda. (O Bloco de Esquerda diz algo de semelhante mas de forma menos clara que o PCP.) Na verdade, as chamadas “linhas vermelhas” do Governo são todas na fronteira da economia capitalista; o resto é apenas uma questão de repartição de recursos, ou de estatismo, que não é de esquerda nem de direita. Refiro-me à recusa de incluir legislação sobre despedimentos que corresponda ao slogan do cartaz do Bloco “Quem tem lucros não pode despedir” e a tudo o que diz respeito ao Novo Banco, mesmo que de forma ambígua. Aí o Governo pára na propriedade e nos mecanismo da economia capitalista e ao colocar aqui as “linhas vermelhas” (que não coloca noutros sítios) mostra aquilo a que o PCP chama “posição de classe”, que justifica a classificação de direita.

Confuso, não é? É, confuso e inútil. Teria mais sentido analisar, medida a medida, o grau e veemência da recusa de negociação, onde há “abertura negocial” ou não, em vez de uma classificação geral que acaba por dizer mais sobre quem classifica do que sobre o que é classificado. Por exemplo, quando no PSD se diz que o Orçamento é de extrema-esquerda, está-se a deslocar quem classifica muito para a direita, e no caso contrário, no PCP, muito para a esquerda.

O resultado é que as classificações ajudam ao radicalismo no debate político e dão asneira. E dificultam o caso a caso, mais útil numa negociação, manietando as partes no medo de estar a comprometer princípios, quando estão apenas a comprometer classificações, de um modo geral erradas.

sábado, 24 de outubro de 2020

BE e PCP são um terço de uma maioria. Não chegam adornos no OE

Posted: 23 Oct 2020 03:44 AM PDT

«Daqui a uns meses, virá uma crise social séria e este Orçamento será uma fisga. Quando esta pandemia passar, a pressão sobre o SNS, com tanta consulta e cirurgia adiada, será brutal. A Escola Pública, se não quiser deixar os mais frágeis para trás, terá de fazer das tripas coração. Serão precisos meios. Apesar disto, o Governo propõe-se manter a despesa quase intacta e baixar o défice no único ano em que a UE, não por acaso, não o exige. A isto, o Governo responde com um investimento público “robusto". Mas o aumento de 20% é ilusão de ótica, porque parte de uma base ridícula.

Daqui a uns anos, o Fundo de Resolução terá de receber centenas de milhões do Estado para pagar o empréstimo dos bancos, com juros mais altos, para satisfazer um truque retórico que nos diz que o Estado não injeta dinheiro no Novo Banco. O empréstimo contraído conta para o défice e acabará por ser mesmo pago pelo Estado.

Perante tudo isto, quem viabilizar este Orçamento será justamente responsabilizado. E os primeiros a apontar o dedo ao BE e ao PCP seriam os que agora exigem que o façam.

Na comunicação social, a proposta do Governo é apresentada como a mais à esquerda de sempre. Bloquista, mesmo. Propor apoios sociais no meio de uma tragédia não é de esquerda. É o óbvio e suponho que consensual. Sobretudo quando, olhando para as letras pequenas do apoio extraordinário, percebemos que, para muitos trabalhadores (sobretudo os independentes com rendimentos médios) ele não passa de uma revisão em baixa do que têm. É aqui que o Governo mostra alguma abertura para negociar, porque é dinheiro europeu.

Nenhum partido, talvez com exceção do Chega e da Iniciativa Liberal, será contra os apoios sociais propostos pelo Governo. São o mínimo dos mínimos. Se é isso que faz a diferença neste OE, Rui Rio não se oporá. Se é o investimento público, o de Passos foi mais alto.

Quando, no inicio desta legislatura, Costa fundou uma versão unilateral da geringonça – sem papéis, objetivos ou linhas vermelhas –, quis fazer do resto da esquerda refém. Só que a geringonça nasceu para reverter as medidas da troika. Era esse o seu objetivo. E dele, sobra pouco. Mas até sobra alguma coisa. Pormenores relevantes da lei laboral e, bastante importante para o tempo que aí vem, o subsídio de férias, que nunca voltou à versão anterior à troika. E é exatamente nestes medidas que Costa se recusa a tocar. Ou seja, a suposta geringonça que Costa diz estar viva fica-se pela maioria que permitiria ao PS governar.

Para a habitual distribuição de lugares, como foi a farsa eleitoral para os presidentes das CCDR, com candidatos combinados entre PS e PSD, há bloco central. Para garantir maioria absoluta ao PS sem que ele tenha de ceder em nada de relevante, outros trouxas que se cheguem à frente. Se os eleitores do BE e do PCP quisessem o PS com maioria absoluta teriam votado no PS. Se o seu voto servir para aprovar o que o PS quer, mais uns troféus simbólicos, terão sido traídos.

A eficácia dos deputados do BE e do PCP, que representam quase metade da votação do PS (16%-36%), não se mede em derrotas ou vitórias na comunicação social. Mede-se em conquistas concretas para a vida das pessoas. Se viabilizarem este Orçamento, não poderão fazer oposição séria. Mesmo que António Costa faça o que fez com o último: não o cumprir. Todos lhes lembrarão que a coisa é deles. Incluindo os seus eleitores. Por isso, é bom que seja mesmo deles, na proporção que lhes cabe. Para quem não saiba fazer contas, essa proporção é quase um terço da maioria de esquerda. Não chegam os adornos que lá conseguiram pôr.»

Daniel Oliveira

sexta-feira, 23 de outubro de 2020

Aceitar viver moderadamente

Posted: 22 Oct 2020 03:56 AM PDT

«Não vale a pena dourar a pílula. Os números são claros e correspondem, aliás, ao que se tinha previsto que aconteceria neste inverno. Uma segunda vaga mais forte do que a primeira sem a possibilidade de confinamento, bala que só podíamos usar uma vez. Com o aumento exponencial e previsível dos infetados, é provável que o Serviço Nacional de Saúde entre em ruptura e mais do que certo que o sector privado tentará ficar com a parte barata – os doentes não-covid –, para compensar as perdas financeiras que teve durante a pandemia. Já se sabe que as crises para muitos são sempre oportunidades para alguns.

Valem pouco os gestos dramáticos, as medidas radicais, os abanões. Isso serve para acalmar os mais nervosos e proteger os responsáveis políticos do escrutínio público, transferindo para os cidadãos as responsabilidades do que corra mal. São precisas medidas permanentes, fáceis de entrar na rotina e sem mensagens contraditórias. Há as óbvias, como o uso de máscara. Mas a mais relevante é a redução drástica de contactos. Isto não passa por confinamentos, que teriam efeitos sociais, económicos e de saúde pública devastadores. Não passa pelo isolamento de grupos de risco, porque isso teria efeitos terríveis, como já percebemos pelo que aconteceu nos lares.

Este objetivo exige uma postura diferente da que tem sido exibida por António Costa. O desnorte, com o avanço e recuo na proposta da StayAway Covid, gera desconfiança nas autoridades. E a saída também não é instalar o pânico. Para isso já temos os dois bastonários-abutres que regressam de cada vez que sentem que podem tirar algum proveito político (e no caso da Ordem dos Médicos, também uma ajudinha ao sector privado) das dificuldades. O pânico pode provocar reações imediatas, mas leva a uma fadiga emocional que, ao fim de poucas semanas, tem efeitos contrários aos desejados. Não precisamos, quase meio ano depois deste massacre ter começado, de sustos. É precisa a ideia de um rumo partilhado. Isso passa por regras de convivência que entrem na rotina e pela redução de contactos supérfluos, sem excessos asfixiantes e impraticáveis por muito tempo.

O abismo para onde se estão a atirar vários governos europeus rebenta com os consensos indispensáveis para lidar com esta pandemia nos próximos meses. O que defendo vai contra o ar deste tempo, em que nada pode existir entre o “confina tudo” e o “isto é tudo uma grande aldrabice”. É preciso ganhar a esmagadora maioria das pessoas para comportamentos preventivos voluntários que não destruam as suas vidas, o seu estado mental e o que resta da economia. Reduzirmos drasticamente contactos sem deixarmos de viver. Escolher o que achamos fundamental. Vivermos um pouco menos sem deixarmos de viver. E, em vez de nos darem abanões ou de desatarmos aos gritos uns com outros, dividindo o país entre “histéricos” e “irresponsáveis”, aceitarmos viver moderadamente durante uns meses.»

Daniel Oliveira

quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Sobre a proposta de um não referendo à eutanásia

Posted: 21 Oct 2020 03:45 AM PDT

«No dia 23 de Outubro o Parlamento vai decidir pela não realização do referendo sobre a despenalização da morte antecipada em Portugal. Já todos adivinhamos que vai ser esse o sentido de voto da maioria, a mesma maioria que aprovou o que agora se pretende referendar. Porquê, então, esta questão agora?

Entendo que a resposta deve estar relacionada com a evocação de um último argumento contra a despenalização da morte medicamente antecipada. Propõe-se o referendo, este não é aprovado, e poderá sempre argumentar-se que a maioria dos portugueses seria contra este processo retirando legitimidade à aprovação de uma Lei neste sentido.

Discordo em absoluto desta ideia. Entendo que um referendo sobre um tema tão complexo não legitima, antes dicotomiza ainda mais a sociedade sobre o tema. Na generalidade, as pessoas tomam decisões a partir das suas crenças, desejos e preconceitos, o que normalmente não resulta bem em decisões difíceis com enormes repercussões sociais. Um referendo colocaria as pessoas ainda mais barricadas atrás das suas certezas, num dos lados e, por defensivas, sem capacidade de dialogar com o outro lado. O que creio precisarmos aprender num tema como este é a lidar com as dúvidas que um processo de antecipação da morte de alguém nos tem que colocar, nomeadamente como encontrar soluções que nos ajudem a diminuir as margens de erro das decisões a tomar.

A lógica da democracia representativa, que como sabemos é um sistema com defeitos e limitações, é eleger pessoas com sensibilidades diversas, para pensarem, ouvindo contributos técnicos, e fazerem escolhas responsáveis sobre assuntos complexos a partir dessa diversidade. E a antecipação da morte a pedido do próprio deve ser dos assuntos mais complexos e difíceis de considerar. Há vários anos que me debruço sobre este tema, procurando contribuir com conhecimento científico e fugindo da dimensão opinativa. Tenho medo daqueles que afirmam posições definitivas e “certas”. Essas opiniões apenas servem para polarizar a discussão e reduzir a mesma a uma dicotomização falaciosa de favor ou contra, altamente condicionadora da capacidade de compreender as diversas perspectivas de um problema como este.

Não, não estamos perante uma escolha simples entre respeitar a vontade da pessoa ou colocar em causa o respeito pela vida humana. Sim, estamos perante uma escolha que implicará compreender o papel do Estado e quais os custos para as pessoas e para a sociedade de, por um lado, prolongar a vida das pessoas e, muitas vezes, o seu sofrimento, ou, por outro, terminar a vida de alguém prematuramente, a seu pedido. Sim, estamos perante uma discussão que pretende ajudar a compreender até que ponto as decisões das pessoas podem estar assentes em medos irrealistas, em convicções mal construídas, ou até em pressões de terceiros. Sim, estamos perante a dificuldade de sabermos até que ponto o desejo de morrer, numa pessoa com doença terminal ou lesão definitiva, se altera ao longo do tempo, e em caso afirmativo, saber como, quando, porquê e qual deve ser o impacto daí resultante. Sim, estamos essencialmente perante um problema complexo de tomada de decisão que queremos que seja o mais representativa possível do melhor interesse do doente. Porque todos já tomamos decisões das quais nos arrependemos depois.

Por isso mesmo me é absolutamente incompreensível como tão pouco se tem estudado sobre o processo de tomada de decisão na eutanásia ou no suicídio assistido. Como também não consigo compreender como podem os psicólogos serem tão pouco parte de um processo como este, quando a maior complexidade não está relacionada com a definição do diagnóstico ou a técnica de antecipação da morte, mas sim com a decisão e as condições de decisão do doente, com o facto de estarmos seguros de que ao acedermos ao pedido do doente estaremos de facto a fazer aquilo que é melhor para ele.

Apelo a que não se tente diluir a responsabilidade de uma decisão destas num referendo. Não se procure politizar ou promover ideologias num tema tão difícil. Vamos procurar, sim, encontrar soluções que limitem e previnam ao máximo potenciais erros de avaliação e que valorizem a relação e a confiança entre profissionais de saúde e doentes. Vamos procurar compreender melhor porque é a evolução do desejo de morrer distinta num doente terminal face a uma pessoa com uma lesão definitiva. Vamos criar condições para que as pessoas possam reflectir, livremente e sem juízos de valor, sobre as suas decisões e receios com alguém capaz de a ouvir e de a compreender, sem com isso (a) julgar. Vamos, portanto, procurar soluções que humanizem os cuidados de saúde e promovam, de facto e deste modo, a dignidade da pessoa.»

Miguel Ricou