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segunda-feira, 2 de novembro de 2020

Essa coisa estranha da responsabilidade individual

por estatuadesal

(Pacheco Pereira, in Público, 31/10/2020)

Pacheco Pereira

A ideia de que existe uma coisa chamada “responsabilidade individual” não é muito popular. Por muitas razões, educação, formas actuais de sociabilidade, atrasos económicos e sociais, culturas de desresponsabilização, paternalismo estatal, falhanço familiar, desagregação dos saberes e das profissões, pobreza, crise das mediações, o empobrecimento do discurso público e das narrativas cívicas e políticas, a ignorância agressiva das redes sociais, o ascenso de egoísmo gerado pelas ideias de “sucesso”, protagonismo, e pelo “yuppismo”, tudo leva a que a ideia de responsabilidade esteja em recuo. Não é a única a recuar, vai a par com a crise do valor da privacidade, com uma simples noção de honestidade, com aquilo a que se costumava chamar “princípios”.

Tenho consciência de que todas estas questões de moral e ética não são simples, são até bastante complicadas. Mas fico-me com o sentido corrente das palavras, que correspondem ao entendimento comum — ou seja, toda a gente entende do que estou a falar. As polémicas recentes sobre a “educação cívica”, toda a discussão sobre a corrupção para além da legalidade, são apenas um exemplo de debates imperfeitos, mas que tocam questões de responsabilidade individual.

O que significa esta responsabilidade individual? Mais uma vez sem complicações, e no contexto da pandemia, é comportarmo-nos de modo a proteger-nos a nós próprios e aos outros, mesmo que isso signifique algum desconforto. Como se faz essa protecção? Alegar ignorância não é razoável, porque toda a gente sabe o que é, a começar pelo uso de máscaras, distanciação social, lavagem das mãos e ajudar-nos uns aos outros na medida das possibilidades, dirigida a todos os que têm dificuldades e necessidades a que não podem responder. Alegar pretextos ideológicos e políticos é quase sempre uma justificação para a preguiça e para o desleixo, tanto mais que quem os alega não recusa os tratamentos e os custos gerados pelo seu comportamento. Já para não falar do sofrimento que causam aos outros. Já ouvi vários jovens dizer que não têm de cumprir regras para uma doença que só afecta os “velhos”. Ou argumentos absurdos sobre a “liberdade” de não usar máscara por quem tem um capacete de mota debaixo do braço. Na verdade, é tudo bastante simples, precisa é de vontade e sentido de dever e da recusa de pretextos para a preguiça e o egoísmo.

Uma coisa é a responsabilidade colectiva, do governo, dos partidos, das corporações da saúde e outra é a das pessoas. Por muito que se possam tomar medidas — e o Governo é o principal responsável por essas medidas —, o controlo da pandemia só vai ser possível com duas coisas — responsabilidade individual e vacinas. Vacinas é uma questão de tempo, um ano talvez, até começarem a ter um papel. Mas a responsabilidade é para agora, não tem tempo para ser adiada.

O caos da resposta governamental, por exemplo, com as excepções aos ajuntamentos, acentua a desresponsabilização. O único ajuntamento que deu polémica foi o da Festa do Avante!, mas não foi a covid que esteve nas preocupações dos que se indignaram em alta voz, foi ser o PCP o alvo. Aliás, as comparações entre o que o Governo estava a permitir em eventos laicos de carácter político eram sempre contrastadas com as proibições que afectavam eventos religiosos, missas, Fátima, agora o Dia de Finados. Não é uma comparação inocente.

Depois, foi o laxismo em eventos desportivos de que o melhor exemplo, pela sua dimensão, foi a Fórmula 1 em Portimão, que serviu logo a seguir de justificação para os ajuntamentos para ver as ondas gigantes na Nazaré. O raciocínio justificativo é este: “Então se se pode juntar milhares num autódromo, porque não para ver a fúria do mar?” Ou seja: faço que me apetece.

Acresce que, como toda a gente sabe que não será penalizada pelo seu comportamento individual, se alguém tiver sido infectado numa festa estudantil ou a ver as ondas, e que em particular não verá barrada a sua entrada num hospital e o acesso aos tratamentos, muitas vezes caríssimos, pagos por todos nós, o sentimento de impunidade aumenta.

Se Portugal tivesse uma cultura de responsabilidade, seria possível decidir excepções caso a caso, como seria racional, em função dos interesses em causa, do valor e do retorno do que se permite. Mas, cá, isso apenas serve para justificar a asneira, quer de quem decide, quer de quem encontra aí uma justificação para o seu egoísmo. Por isso sobram apenas dois métodos: ou proíbe-se tudo sem excepções ou permite-se tudo. Nenhuma das opções vai acontecer, pelo que vai continuar o caos.

Valorizar o papel da responsabilidade individual significa desresponsabilizar o Governo? Nem pensar. Trata-se apenas de falar de duas coisas que deveriam ser complementares e que não se substituem uma à outra. Pode-se vociferar contra o Governo todo o dia, e a maioria das vezes com muita razão, mas nenhum governo pode controlar uma pandemia com estas características de facilidade de contágio e proximidade sem que os cidadãos assumam sua parte de comportamento responsável.

E a verdade é que muitos não o estão a fazer; por isso, precisam que se lhes fale grosso e feio. Fazer isso é também uma questão de responsabilidade individual.

Um estranho desentendimento

por estatuadesal

(Boaventura Sousa Santos, in Público, 31/10/2020)

Para quem recentemente publicou um livro intitulado Esquerdas do Mundo, Uni-vos! (Almedina, 2018), as últimas semanas foram particularmente desalentadoras. Mas também foram muito reveladoras.

Tive o privilégio de acompanhar de perto as negociações entre o BE e o PS. Uma análise superficial do discurso dos porta-vozes fez-me crer que provavelmente desde o início nenhum dos dois partidos quisera o acordo. No entanto, à medida que se aproximava a conclusão do processo e analisava a documentação disponível, comecei a suspeitar que a resistência ao acordo vinha sobretudo dos órgãos dirigentes do BE. Pela seguinte razão. O órgão que tomou a decisão é a mesa nacional constituída por quase 80 pessoas, as quais votaram unanimemente contra a viabilização do OE, quando as sondagens indicavam que quase 70% dos eleitores do Bloco defendiam a viabilização do OE. É possível imaginar um divórcio maior entre os dirigentes de um partido e o seu eleitorado? Não é ainda mais estranho que isso ocorra no partido que defende a democracia participativa? Não houve naquele conclave uma só voz e voto que chamasse a atenção para a gravidade deste divórcio, sobretudo no período dramático de crise sanitária que o país atravessa? Uma tal unanimidade, sobretudo nas actuais circunstâncias, não pode deixar de suscitar perplexidade.

As condições de hoje são diferentes das de 2011 e a posição do BE não significa necessariamente uma crise política, embora enfraqueça a posição do partido governante. Mas não deixa de ser frustrante que, mais uma vez, o BE se una à direita para derrotar um governo de esquerda. Sobretudo, um governo de esquerda que, ao longo dos últimos quatro anos, foi melhor que o anterior governo do PS, em boa medida devido à colaboração do BE. Saliente-se que em 2011 o comportamento do PCP-PEV foi o mesmo do BE, o que não aconteceu desta vez. Tudo leva a crer que o PCP analisou melhor as consequências políticas do voto de 2011. Se a situação de 2011 era diferente da de hoje, isso não quer dizer que seja menor a responsabilidade política do voto do BE.

Em 2011, a crise era interna ao capitalismo (a crise financeira) e ao sistema político europeu. O BE, como partido anticapitalista, podia facilmente lavar as mãos. Ao contrário, a crise de hoje é externa, decorre da pandemia e está a atingir de modo descontrolado todos os países. Sabemos que as políticas neoliberais das últimas décadas visaram incapacitar os Estados de proteger eficazmente a vida dos cidadãos. A saúde pública, um investimento público crucial para a garantir o maior número de anos de vida saudável aos cidadãos, foi transformada em custo ou gasto público e por isso alvo das políticas de austeridade e de privatização. Pode afirmar-se que o SNS estava mais bem preparado há dez ou vinte anos para proteger a saúde dos cidadãos do que agora. Mesmo assim, e considerando tudo isto, não restam dúvidas de que, dada a dimensão da pandemia actual, nenhum governo poderia estar adequadamente preparado para enfrentar o grau de emergência de saúde pública que ela representa. Este é o facto político mais decisivo da conjuntura e só por cegueira política poderia não ser levado em conta. Tragicamente, foi isto o que sucedeu.

Por coincidência, o desentendimento entre os dois maiores partidos de esquerda consumou-se no mesmo dia em que, na vizinha Espanha, o governo de coligação entre o PSOE e Unidas Podemos apresentava uma proposta conjunta e com uma lógica orçamental semelhante à portuguesa, ainda que mais corajosa. Nas entrelinhas pode ler-se como se acomodaram as diferenças para travar o passo à direita e não irritar demasiado os países do Norte da Europa. O que faltou em Portugal para que o mesmo ocorresse?

Posto isto, diga-se em abono da verdade que as exigências do BE são justas e visam proteger mais eficazmente a saúde dos portugueses e garantir-lhes uma mais robusta protecção do emprego e do rendimento dos portugueses que mais precisam dela. Tal como o PS se orgulha de ter contado entre os seus dirigentes um visionário consequente do SNS, o saudoso António Arnaut, o BE orgulha-se do mesmo, na pessoa do saudoso João Semedo, não menos visionário e consequente. Não pode pôr-se em causa que ambos os partidos defendem o SNS, mas o BE entende, e bem, que para defender a prazo o SNS são necessárias mudanças estruturais que têm a ver não só com remunerações e número de profissionais, mas também com carreiras e dedicação exclusiva. Por incrível que pareça aos portugueses depois de tanta azeda discussão, o PS pensa do mesmo modo, como aliás está no seu programa, só que entendeu, e bem, que, neste momento, as mudanças estruturais iriam causar um ruído político incompatível com a necessidade de concentrar a governação no enfrentamento da pandemia. Ambos os partidos sabem que Ordem dos Médicos está hoje na mão de forças políticas conservadoras vinculadas aos interesses da saúde privada e tem sido nesta crise a oposição mais insidiosa ao Governo. Para estes médicos (felizmente não para todos), a prioridade é a economia da saúde, não a saúde pública. Sendo tudo isto evidente, não seria fácil um entendimento se houvesse, de parte a parte, vontade de negociar?

O BE tem igualmente razão nas questões laborais, sobretudo na reversão da precarização do trabalho que ocorreu com o governo de PSD-CDS. Também aqui o PS não está longe do BE, já que ele próprio se manifestou nesse sentido no passado. Mas também aqui a resistência do PS teve uma justificação que deve ser entendida, mesmo quando não se considere convincente. As alterações podiam levar os países do Norte da Europa, ditos frugais, a dificultar a aprovação do Plano Nacional de Recuperação e Resiliência (PRR) para 2021/2026, como aliás esses países tiveram o cuidado de avisar. Aqui o PS tinha obrigação de ler melhor a conjuntura e ver que há uma UE pós-“Brexit” relativamente distinta da anterior, ainda que nem sempre por boas razões. Havia condições para arriscar mais, libertar-se da tutela e não ser refém das eleições de Março próximo na Holanda. Mas sendo verdade que quem ganhou as eleições foi o PS e não BE, teria sido possível encontrar uma acomodação, por exemplo calendarizando as mudanças para uma data determinada.A falta de visão política pode ter posto em causa o que mais se pretendia defender, a estabilidade que tornasse possível uma luta eficaz e consensual contra a pandemia e travasse tanto o avanço da direita como as facções mais dogmáticas dos dois partidos, que sempre estiveram contra entendimentos interpartidários

Finalmente, o BE tem igualmente razão na questão do Novo Banco. O “negócio” com o fundo abutre que se apoderou de um banco importante não só é um roubo que para ser “legal” tem que ser total (extorquir até ao último centavo), como é um ataque à auto-estima de um país europeu posto na condição de república das bananas. Aqui, sim, havia uma incompatibilidade, e a única maneira de a superar seria pôr o Novo Banco fora do OE. Não era impossível mas, de novo, pressuponha vontade recíproca de pactuar, além de um pouco de sabedoria popular: vão-se os anéis, fiquem os dedos, sendo os dedos, neste caso, a estabilidade política em tempos de emergência sanitária extrema.

Perdeu-se uma oportunidade política que dificilmente se repetirá com estes dirigentes. A falta de visão política pode ter posto em causa o que mais se pretendia defender, a estabilidade que tornasse possível uma luta eficaz e consensual contra a pandemia e travasse tanto o avanço da direita como as facções mais dogmáticas dos dois partidos, que sempre estiveram contra entendimentos interpartidários.

Acima de tudo, o desentendimento concedeu em dez anos uma segunda oportunidade de ouro à direita (e agora também à extrema-direita) para, sem grande esforço nem mérito, voltar ao poder e produzir retrocesso.

Director Emérito do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra

sábado, 31 de outubro de 2020

Em busca do rumo perdido...

Posted: 30 Oct 2020 04:59 AM PDT

«Não parece que após 24 anos ininterruptos de governo socialista nos Açores possa causar surpresa o resultado das eleições regionais de 25 de outubro. Mais preocupante é que a Esquerda, no seu conjunto, tenha agora ficado em minoria, assim proporcionando os arranjos partidários requeridos para a viabilização da "geringonça" regional da Direita.

Para além dos condicionalismos locais e da erosão provocada pelo continuado exercício do poder, as preferências expressas nas urnas pelos açorianos são claro indício de um mal-estar mais geral que atravessa o Oceano Atlântico e chega ao continente, para desembocar na Assembleia da República. Ainda em sede de debate na generalidade, o Bloco de Esquerda anunciou a decisão inesperada de votar contra o Orçamento do Estado de 2021. Em abono da verdade, há que reconhecer que o fim do acordo entre os partidos da Esquerda foi decretado pelos socialistas ainda em plena campanha eleitoral para as legislativas de 2019, apesar do êxito incontestável de quatro anos de governação que puseram termo às políticas de austeridade e demonstraram cabalmente que havia afinal uma alternativa para a obsessão do equilíbrio orçamental e para a receita de fome e miséria prescrita pela troika de má memória.

De facto, não é fácil entender por que motivo os acordos políticos que foram deliberadamente abandonados nos finais de 2019 se haveriam de tornar, de novo, úteis e indispensáveis apenas um ano mais tarde... Nem a extraordinária pandemia que desgraçadamente se abateu sobre nós oferece um argumento consistente, capaz de justificar tão caprichosas inflexões. Esquerda e Direita são designações convencionais que transportam um sentido e uma história próprias. Onde a diferença se transforma numa alternativa que aponta o rumo da ação política e demarca os espaços propícios à procura de compromissos, à criação da confiança, ao esclarecimento das obrigações assumidas entre as partes e à construção de acordos duradouros. Em 2015 não faltou audácia para desbravar novos caminhos e encetar um percurso que, apesar da sua complexidade e das óbvias dificuldades que encontrou, ganhou coerência e conquistou o mais amplo reconhecimento no interior do país, na própria Europa que nos tinha imposto essa odiosa austeridade e até no plano internacional. Com a esperança a despontar no horizonte numa Europa que tarda a perceber que a mudança é condição da sua sobrevivência, pareceria insensato lançar agora pela borda fora todo um capital de prestígio que foi bem merecido e duramente alcançado!»

«Não parece que após 24 anos ininterruptos de governo socialista nos Açores possa causar surpresa o resultado das eleições regionais de 25 de outubro. Mais preocupante é que a Esquerda, no seu conjunto, tenha agora ficado em minoria, assim proporcionando os arranjos partidários requeridos para a viabilização da "geringonça" regional da Direita.

Para além dos condicionalismos locais e da erosão provocada pelo continuado exercício do poder, as preferências expressas nas urnas pelos açorianos são claro indício de um mal-estar mais geral que atravessa o Oceano Atlântico e chega ao continente, para desembocar na Assembleia da República. Ainda em sede de debate na generalidade, o Bloco de Esquerda anunciou a decisão inesperada de votar contra o Orçamento do Estado de 2021. Em abono da verdade, há que reconhecer que o fim do acordo entre os partidos da Esquerda foi decretado pelos socialistas ainda em plena campanha eleitoral para as legislativas de 2019, apesar do êxito incontestável de quatro anos de governação que puseram termo às políticas de austeridade e demonstraram cabalmente que havia afinal uma alternativa para a obsessão do equilíbrio orçamental e para a receita de fome e miséria prescrita pela troika de má memória.

De facto, não é fácil entender por que motivo os acordos políticos que foram deliberadamente abandonados nos finais de 2019 se haveriam de tornar, de novo, úteis e indispensáveis apenas um ano mais tarde... Nem a extraordinária pandemia que desgraçadamente se abateu sobre nós oferece um argumento consistente, capaz de justificar tão caprichosas inflexões. Esquerda e Direita são designações convencionais que transportam um sentido e uma história próprias. Onde a diferença se transforma numa alternativa que aponta o rumo da ação política e demarca os espaços propícios à procura de compromissos, à criação da confiança, ao esclarecimento das obrigações assumidas entre as partes e à construção de acordos duradouros. Em 2015 não faltou audácia para desbravar novos caminhos e encetar um percurso que, apesar da sua complexidade e das óbvias dificuldades que encontrou, ganhou coerência e conquistou o mais amplo reconhecimento no interior do país, na própria Europa que nos tinha imposto essa odiosa austeridade e até no plano internacional. Com a esperança a despontar no horizonte numa Europa que tarda a perceber que a mudança é condição da sua sobrevivência, pareceria insensato lançar agora pela borda fora todo um capital de prestígio que foi bem merecido e duramente alcançado!»

«Não parece que após 24 anos ininterruptos de governo socialista nos Açores possa causar surpresa o resultado das eleições regionais de 25 de outubro. Mais preocupante é que a Esquerda, no seu conjunto, tenha agora ficado em minoria, assim proporcionando os arranjos partidários requeridos para a viabilização da "geringonça" regional da Direita.

Para além dos condicionalismos locais e da erosão provocada pelo continuado exercício do poder, as preferências expressas nas urnas pelos açorianos são claro indício de um mal-estar mais geral que atravessa o Oceano Atlântico e chega ao continente, para desembocar na Assembleia da República. Ainda em sede de debate na generalidade, o Bloco de Esquerda anunciou a decisão inesperada de votar contra o Orçamento do Estado de 2021. Em abono da verdade, há que reconhecer que o fim do acordo entre os partidos da Esquerda foi decretado pelos socialistas ainda em plena campanha eleitoral para as legislativas de 2019, apesar do êxito incontestável de quatro anos de governação que puseram termo às políticas de austeridade e demonstraram cabalmente que havia afinal uma alternativa para a obsessão do equilíbrio orçamental e para a receita de fome e miséria prescrita pela troika de má memória.

De facto, não é fácil entender por que motivo os acordos políticos que foram deliberadamente abandonados nos finais de 2019 se haveriam de tornar, de novo, úteis e indispensáveis apenas um ano mais tarde... Nem a extraordinária pandemia que desgraçadamente se abateu sobre nós oferece um argumento consistente, capaz de justificar tão caprichosas inflexões. Esquerda e Direita são designações convencionais que transportam um sentido e uma história próprias. Onde a diferença se transforma numa alternativa que aponta o rumo da ação política e demarca os espaços propícios à procura de compromissos, à criação da confiança, ao esclarecimento das obrigações assumidas entre as partes e à construção de acordos duradouros. Em 2015 não faltou audácia para desbravar novos caminhos e encetar um percurso que, apesar da sua complexidade e das óbvias dificuldades que encontrou, ganhou coerência e conquistou o mais amplo reconhecimento no interior do país, na própria Europa que nos tinha imposto essa odiosa austeridade e até no plano internacional. Com a esperança a despontar no horizonte numa Europa que tarda a perceber que a mudança é condição da sua sobrevivência, pareceria insensato lançar agora pela borda fora todo um capital de prestígio que foi bem merecido e duramente alcançado!»

Pedro Bacelar de Vasconcelos

sexta-feira, 30 de outubro de 2020

Não posso ir ao cemitério, mas posso ir ao cinema: perceba porquê

por estatuadesal

(Eugénia Galvão Teles, in Público, 29/10/2020)

Uma das grandes críticas que se tem ouvido em relação às medidas do governo em matéria de gestão da pandemia é sua falta de coerência. Porquê permitir casamentos de 50 pessoas e limitar os restaurantes a mesas de cinco pessoas?

Veja-se o exemplo da Resolução do Conselho de Ministros nº89-A/2020, que proíbe a deslocação dos cidadãos para fora do concelho da sua residência habitual entre 30 de outubro e 3 de novembro. A razão de ser desta proibição é simples: evitar que a circulação de cidadãos para fora do concelho da sua residência habitual, típica do feriado de Todos os Santos e do Dia dos Finados, contribua como foco de transmissão da doença.

Até aqui, estamos todos mais ou menos convencidos. O problema está nas excepções – o problema está sempre nas excepções. Lendo excepções, conclui-se que se pode ir ao cinema ou ao teatro desde que se apresente o respetivo bilhete. Portanto, eu posso ir a Cascais ver o “Capitão Dentes de Sabre e o Diamante Mágico”, mas a minha mãe não pode ir a São Romão, Seia, onde o meu pai está enterrado. Está tudo doido.

Neste caso, talvez não esteja. Se alguém se der ao trabalho de ler e interpretar a dita Resolução, percebe que um dos objectivos da lei, talvez o principal, é evitar a circulação entre as grandes áreas metropolitanas e as terras mais pequenas.

Assim, se tivermos de trabalhar num concelho vizinho ou na mesma área metropolitana, só precisamos prestar uma declaração sob compromisso de honra - “eu juro que vou trabalhar, senhor guarda” -, não é necessária uma declaração da entidade empregadora. Da mesma foram que só posso ir ao cinema a Cascais se viver na Grande Lisboa.

Da minha experiência na A1 pela altura do dia 1 de novembro, juraria que é o dia com mais deslocações do ano. Nunca mais tentei ir em direcção ao Norte por volta desse dia. Na última tentativa, fiquei convencida da existência de um risco sério de ficar eu própria viúva, perante o estado apoplético do esposo preso no trânsito há mais de seis horas. Alguém que me parece saber mais disto do que eu, já me afiançou que, pelo menos há uns anos, era o dia com mais tráfego rodoviário em Portugal.

O mistério para mim é ninguém ter dito, alto e bom som: o que nós não queremos mesmo é gente a sair de Lisboa e do Porto e rumar à sua terra de origem. Para toda a gente perceber a razão de ser, não só da lei, como das suas excepções. Admito que me tenha escapado algum comunicado em que tal é claro como água.

Levo tão a peito a falta de explicações muito claras neste domínio por, neste momento, ser fundamental que todas as medidas tomadas sejam coerentes e a sua justificação cristalina para todos os portugueses. Convém não esquecer que andamos nos limites da inconstitucionalidade e estamos a falar da restrição de direitos, liberdades e garantias fundamentais.

Dar-se ao trabalho de esclarecer muito bem os objectivos de uma lei pode ainda ajudar a diminuir os casos de aplicação “burocratico-acéfala” da lei, que roçam muitas vezes o abuso de poder. Este tipo de leis é um terreno particularmente fértil para situações deste género.

O poder não se dar ao trabalho de explicar as razões por que limita a liberdade de circulação do comum dos mortais pode ainda ser visto como um sinal de arrogância. Infelizmente, o legislador - assim como os tribunais - parecem ter alguma dificuldade em aceitar que é normal prestarem contas das suas decisões à população.

Como se o direito fosse uma coisa de especialistas e não houvesse grande necessidade de ser percebido pelas cabecinhas ocas que votam, sendo suficiente o seu acatamento. Não, amigos, é só dizer de forma simples e clara e nós conseguimos perceber. E a maioria acata, mais ou menos boa vontade. Basta fornecer um mínimo de racionalidade e coerência para não desatar tudo a espernear ao som de “estão a gozar connosco”.

Já agora, talvez ter a coragem política de assumir frontalmente algo que está subjacente a todas estas regras: até a situação acalmar, vão ser usados todos os pretextos possíveis e imagináveis para evitar ao máximo que a população se desloque ou conviva, salvo para trabalhar ou para gastar dinheiro em actividades onde o resto da população trabalha. A maior parte das pessoas já é crescida o suficiente para encaixar esta verdade.

Como ir matando o SNS

Posted: 29 Oct 2020 04:41 AM PDT

«O SNS vive um dos piores momentos da sua história. Há uma catástrofe escondida por baixo da Covid. É um aumento da mortalidade por outras doenças. Cirurgias e consultas adiadas. Centros de Saúde abaixo de meio gás. Profissionais esgotados. Não trago para o debate se exagerámos na concentração de meios do SNS na covid. É uma conta difícil de fazer e quem a fez correu sempre riscos. Sei que não reforçámos o SNS para o resto. E o futuro é negro: para além da continuação do combate à pandemia, precisamos de preparar o SNS para responder a tudo o que perdemos nestes meses. Num SNS que está à beira da rotura e da exaustão. E isto exige dinheiro.

A resposta a esta incapacidade do SNS se preparar para recuperar surgiu ligeira, pela voz dos representantes do sector privado: aqui estamos nós para receber dinheiro por isso. Os privados precisam, para compensar as enormes perdas que terão tido nestes meses (os doentes também fugiram dos hospitais privados), dos doentes do SNS. Convido-vos a ler Jorge Torgal, uma das vozes mais sensatas nestes dias: “Quando os antigos bastonários fazem uma carta em que dizem que temos de pôr a medicina privada a trabalhar, é um discurso ideológico. Como sabemos, os privados nem para as necessidades maiores daqueles que têm meios conseguiram responder e a certa altura enviam para os hospitais públicos.”

Não é o discurso dos ex-bastonários, que mereceu resposta de um grupo de médicos, a ajuda do Presidente ou as centenas de artigos de opinião que darão aos privados o que, sozinhos, têm sido incapazes de captar. Será a asfixia do SNS. E é também ao olhar para o que se propõe no Orçamento do Estado, nesta área, que um voto favorável da esquerda a este Orçamento se revela um contrassenso.

No que toca à covid, o nosso problema não é a falta de camas ou de ventiladores. A isso é possível dar uma resposta de emergência relativamente rápida. É a falta de médicos. E o SNS continua a perdê-los. Os concursos que se vão abrindo não conseguem preencher as vagas. Porque, como disse Francisco Louçã no seu espaço de opinião na SIC Notícias, os médicos do Estado perderam, na última década, 17% do seu poder de compra e os restantes profissionais de saúde cerca de 12%. A degradação das condições de trabalho, que também resulta da falta de recursos mas não apenas de perdas salariais, leva cada vez mais médicos a procurarem o privado. Se transferirem doentes (e recursos para os pagar) do SNS para os privados, limitam-se a oferecer-lhes músculo para eles levarem os médicos que restam. Ainda mais se, ao mesmo tempo, asfixiarem o SNS.

O Governo tem dito, com razão, que aumentará cerca de 1.200 milhões o orçamento para Saúde. O que não dizia é que isso não se traduzia num aumento de transferências para o SNS – a Saúde tem muitas despesas para além disso. Pelo contrário, se olharmos para o OE de 2020 (já atualizado pelo suplementar), temos uma redução de cerca de 140 milhões nessas transferências. Se olharmos para o executado de 2020, as transferências para o SNS estagnam. Isto partindo do princípio improvável de que desta vez tudo o que está orçamentado será executado.

Estes números resultam das contas feitas pelo BE, porque as transferências para o SNS não estão documentadas nos mapas disponíveis do Orçamento Suplementar. Têm, sobre as do primeiro-ministro, a vantagem de não irem mudando todos os dias, com diferentes critérios e habilidades. E são os que mais terão a ver com a realidade que se sentirá no SNS. O melhor esclarecimento que li sobre o assunto está aqui. Ou neste, em que se mostra como o primeiro-ministro usou os números com uma liberdade pouco recomendável para quem está a debater um Orçamento.

Pelo menos olhando para o Orçamento do Estado, que é o que agora está em debate, o SNS não terá boas notícias num momento em que mais precisa delas. Sabemos para onde irá, com a fala de recursos para a atividade quotidiana, o dinheiro destinado à Saúde. Para quem esteja em condições de, no lugar do SNS, dar a resposta que a sua degradação não permite. A carta do ex-bastonários explica. É que aplausos à janela não pagam o SNS.»

Daniel Oliveira