(Domingos Lopes, in Público, 29/12/2020)
Há homens e mulheres assim, que assumem a vida política como uma sublime vocação (palavras do Papa Francisco), e outros que imaginam a política como uma sala de espelhos côncavos e convexos que transmitem imagens distorcidas da realidade. Estes, mesmo do alto dos seus atributos, o que fazem é baralhar, é turvar as águas para pescar e trazer as redes cheias de votos e o cargo.
A propósito do homem que disse que os portugueses tinham sido enganados pela ministra da Saúde, o mesmo que chamou à pressa a um domingo à noite ao seu palácio o chefe da Polícia, lembrei-me de um filme da minha juventude, Um homem para a eternidade, realizado por Fred Zinnemann, com os atores Paul Scofield, Vanessa Redgrave, Robert Shaw e Orson Welles.
No filme dramático ressalta a integridade de Thomas More, o chanceler do reino, católico, que se assumiu contra o divórcio de Henrique VIII que queria esposar Ana Bolena, apesar de casado com Catarina de Aragão. O chanceler não abdicou dos seus princípios morais e não jurou reconhecer os filhos do rei com Ana Bolena como legítimos, como exigiu o rei a todos os funcionários públicos. Ordenou a sua prisão e foi decapitado.
Há homens e mulheres assim, que assumem a vida política como uma sublime vocação (palavras do Papa Francisco) e outros que imaginam a política como uma sala de espelhos côncavos e convexos que transmitem imagens distorcidas da realidade. Estes, mesmo do alto dos seus atributos, o que fazem é baralhar, é turvar as águas para pescar e trazer as redes cheias de votos e o cargo. São os pescadores de almas e de votos. Gogol imaginou o homem que comprava almas mortas, agora é tudo mais pós-modernismo, compram-se frases que assassinam, à boa maneira populista.
O homem que aparece em todo o lado é o mesmo que defende que não pode exprimir condolências à viúva de Ihor, o cidadão ucraniano assassinado por inspetores do SEF e que o tinham à sua guarda. Mas é o mesmo que chama o comandante Magina da PSP a Belém para discutir a restruturação do SEF sem dar cavaco ao ministro, como se este já fosse um cadáver político.
É o mesmo que na véspera das eleições autárquicas de 1990 declarou que se candidatava a presidente do município de Lisboa com o objetivo primordial de pôr um ponto final à carreira política de Álvaro Cunhal, pois o PCP concorria coligado com o PS.
O homem que aparece em todo o lado onde há televisões é o mesmo que não quer aparecer onde já apareceu impante de veleiro a caminho do Brasil.
O homem que leva as televisões atrás dele quando vai participar numa ação de distribuir refeições aos sem abrigo é o mesmo que aplaudia o programa da troika que causou grande número de sem abrigo. É o mesmo que quer que todos saibamos que vai à ginginha ao Barreiro, ele que gosta muito mais de votos que de ginjas. Sabe-lhe que nem ginjas aquela pesca.
O homem que disse numa entrevista à RTP1 que assumia os erros (na sua opinião) da ministra da Saúde é o mesmo que, passados dias, disse sobre o mesmíssimo assunto que a ministra enganou os portugueses, sem sequer se dar ao cuidado de dar conta das explicações da ministra, se é que as pediu.
O homem que vive a pensar nos dividendos que pode tirar seja de que facto ou acontecimento for não é um homem para as estações do ano. É o homem que pensa na estação em pode furar o bloqueio da Polícia Marítima para ir dar um mergulho e aparecer lampeiro nos telejornais, enquanto os compatriotas estavam confinados.
O seu dia a dia é o minuto a minuto à procura do que se passa, do que poderá ter o valor mais alto na cotação mediática dos acontecimentos.
Ele sabe conviver. Já conviveu com tudo. Com o regime fascista, elogiando os carniceiros. Com os gorilas na Faculdade de Direito de Lisboa sem um triste pio. E continuaria a conviver se os democratas e patriotas não tivessem derrubado a ditadura. Já esteve nos jornais. Passou a líder do PSD e perdeu sempre. Ganhou as televisões e graças à deserção do PS foi para Belém e por lá vai continuar. E conviveu com Costa. O tapete vermelho da Autoeuropa pode sair caro a quem não o tiver na devida conta.
O que é que isto tem a ver com Thomas More? Tudo e nada. De relance, a propósito de um tranquiberneiro surge a figura plena, luminosa, eterna, a do chanceler, a do homem que escreveu a Utopia. Ao menos agora que se aproxima um novo ano, vale sempre a pena sonhar. Atrás dos tempos, outros tempos virão.
O autor escreve segundo o novo acordo ortográfico