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sábado, 2 de janeiro de 2021

Fados de rara beleza


por estatuadesal

(António Costa, in Diário de Notícias, 02/01/2021)


Tive a felicidade de a nossa última conversa ter sido uma conversa feliz. Na véspera de Natal, ele estava animado e confortou-me na solidão do meu confinamento profilático. Depois de meses de problemas de saúde senti-o aliviado. Só teria à mesa da consoada o Gil, mas no dia seguinte viriam à vez a Cila, o Becas, as netas e os netos. Em janeiro tinha novo disco na calha e finalmente podíamos voltar ao Poleiro para jantar com a Fernanda e a Maria Judite, pôr a conversa em dia, muito atrasada por sucessivos adiamentos que achaques diversos ou imprevistos de agenda foram impondo. Que bom, finalmente iríamos matar a saudade partilhada da conversa adiada. A morte foi outra e a saudade viverá para sempre. Mas gosto de nos termos despedido felizes.

Nos últimos 12 anos tive a felicidade de conhecer, trabalhar e privar com o Carlos do Carmo. Honrou-me, aceitando ser meu mandatário às candidaturas à CML em 2009 e 2013. E foi um mandatário sempre presente e exigente. Guardava os folhetos de campanha e regularmente vinha pedir contas, tomando nota do que estava cumprido, do estado de execução do que estava em marcha, assinalando o que faltava cumprir. Quando deixei a câmara pude sempre continuar a contar com o seu apoio, talvez nem sempre político, mas sempre pessoal e com muita ternura. Liberto das responsabilidades de mandatário, não se sentia obrigado à exigência, mas livre para expressar a amizade incondicional.

Conhecêramo-nos na preparação da candidatura do fado a Património Imaterial da Humanidade pela UNESCO, eu presidente da Câmara Municipal de Lisboa, ele coembaixador da candidatura com a Mariza. Para o Carlos do Carmo a candidatura era muito mais do que o reconhecimento internacional da canção de Lisboa. Era um elemento central de uma estratégia para assegurar a perenidade do fado, tema que o obcecava. O Museu do Fado, a nova história da autoria do Rui Vieira Nery, as lições que deixava ao seu público - "Alto! O fado não se acompanha com palminhas" - encadeavam-se na ideia muita clara de que o fado precisava de ter bases muito sólidas para poder suportar a indispensável inovação e o rejuvenescimento de intérpretes e públicos sem deixar de ser o que é, fado.

Como costumava recordar, teve a oportunidade de conhecer e aprender com todos os que fizeram a história do fado no século XX e sentia-se investido na responsabilidade de assegurar a transmissão desse saber, bem sabendo que a atualidade do fado foi sempre encontrada nesse delicado equilíbrio entre a intemporalidade do clássico e o arrojo da inovação, que nunca hesitou em ousar. À viola e à guitarra, juntou o contrabaixo, a orquestra sinfónica ou o piano, com o grande António Vitorino de Almeida, e mais recentemente com o Bernardo Sassetti ou a Maria João Pires. E sobretudo o ânimo com que acarinhou as novas gerações de fadistas a quem rendeu homenagem, como que passando o testemunho, no notável disco de duetos que editou em 2013. E os novos poetas e poetisas que incessantemente procurava e queria trazer para o fado, enriquecendo o reportório fadista. Este era um tema que o apoquentava, triste em ouvir alguém da nova geração perpetuar um velho fado marialva, desgostoso quando os via a resvalar para a canção ligeira. Fado é fado e só tem futuro se for fado novo que renove públicos a cada geração.

Foi assim comigo. Devo ao Carlos do Carmo o meu encontro com o fado e muito antes de o ter conhecido pessoalmente. Como por certo aconteceu com muitos jovens da minha geração, o fado era um lamúrio triste que só se ouvia no rádio em casa dos avós. Lá por casa, o fado era mesmo música execrada, proibida, símbolo do regime. A música chegou primeiro, no extraordinário instrumental Fado Bailado no sopro do Rão Kyao, que me despertou a curiosidade. Mas foi com o álbum Um Homem na Cidade, ou fados como Lisboa Menina e Moça ou Estrela da Tarde, que me encontrei com o fado-canção e fui redescobrindo as Canoas do TejoBairro AltoPor Morrer Uma AndorinhaDuas Gotas de Orvalho...

Devemos a Carlos do Carmo, Ary dos Santos, Paulo de Carvalho, Fernando Tordo, entre outros, a libertação do fado da simbologia do Estado Novo, abrindo as portas para a sua renovação no Portugal democrático e europeu que Abril abriu. Carlos do Carmo foi o rosto e a voz do fado novo, que nos trouxe até aqui... E mais além.

Claro, foi também um notável intérprete, como o demonstrou sempre que saiu do fado para cantar Jacques Brel ou Frank Sinatra, os seus grandes ídolos. Intérpretes há e haverá muitos. Mas quem tenha resgatado o fado à ditadura, o tenha renovado na democracia, trabalhado militantemente para a sua consagração internacional, a consolidação de um corpus histórico, ousado incessantemente inovar, acarinhado denodadamente novas gerações, semeado futuro para o fado... Aí ninguém iguala o Carlos do Carmo.

A tudo se dedicou com coração. Agora o coração parou. E só do coração ele podia morrer, porque viveu sempre do coração. Deixa-nos tristeza e saudade, mas sobretudo o que perdurará muito para além do sentimento de hoje e de quem hoje o sente..."fados de rara beleza".

Primeiro-ministro de Portugal 

Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital

 


por estatuadesal

(António Costa, in Expresso, 31/12/2020)

A 1 de janeiro inicia-se a presidência portuguesa da União Europeia.

A pandemia da covid-19 é o maior desafio às sociedades europeias desde a Segunda Guerra Mundial. Tornou-se também um momento definidor para o projeto europeu. Resultou claro desde o início da crise que só com uma resposta comum europeia poderíamos ultrapassar, em primeiro lugar, a emergência sanitária, e, depois, as suas dramáticas consequências económicas e sociais.

O desafio era gigantesco, mas a Europa soube estar à altura e responder “presente” aos apelos à ação, desde logo no plano sanitário.


Com efeito, pela primeira vez na história da União Europeia assistimos a uma coordenação estreita e informada em matéria sanitária, sob a liderança da Comissão Europeia, que culminou com a aquisição conjunta das vacinas que permitirão imunizar todos os cidadãos europeus e uma participação europeia ativa no esforço internacional de garantir o acesso à vacina pelos cidadãos dos países em desenvolvimento, em especial de África, através da plataforma Covax.

Também a nível económico e social a resposta não tardou: o Banco Central Europeu, a Comissão Europeia, o Eurogrupo e o Banco Europeu de Investimento tomaram medidas para responder à emergência.

Se o lema da Presidência alemã foi “Juntos para a recuperação da Europa”, o lema da Presidência portuguesa marca a passagem à etapa seguinte

Mas ficou também claro desde o início que esta era uma crise sem precedentes, provocada por um choque externo simétrico, e que exigiria por isso uma resposta também ela sem precedentes, que não se poderia limitar a mobilizar instrumentos existentes. Era necessário ir mais longe, apoiar de forma conjunta e robusta a recuperação das economias de todos os Estados-membros, sob pena de se esboroarem o mercado interno e o projeto europeu no seu conjunto.

A Comissão Europeia apresentou um pacote ambicioso no total de €1,8 biliões, repartido entre um Quadro Financeiro Plurianual para sete anos de €1,074 biliões e um Fundo de Recuperação no valor de €750 mil milhões, financiado através de uma emissão comum de dívida garantida pelo aumento do teto dos recursos próprios do orçamento da União. Esta proposta inovadora foi aprovada, em julho, no primeiro Conselho Europeu da presidência alemã e, após intensas negociações com o Parlamento Europeu, teve aprovação final no último Conselho Europeu desta presidência, em 10 de dezembro.

Nunca antes a União Europeia se revelou tão necessária. Nunca, como agora, esteve tão próxima dos cidadãos, respondendo aos seus maiores receios e às suas legítimas expectativas.

Com o acordo alcançado pela presidência alemã sobre o Quadro Financeiro Plurianual e o Programa “Próxima Geração UE”, dispomos do quadro jurídico e dos meios financeiros para uma resposta europeia conjunta e robusta que vai permitir a todos os Estados-membros assegurar a recuperação das suas economias. Com o início simultâneo da vacinação em todos os Estados-membros, conseguiremos, aos poucos, retomar a normalidade das nossas vidas.

A Alemanha fecha assim com chave de ouro a sua presidência e passa o testemunho à presidência portuguesa.

A etapa que se segue não será menos exigente. Agora é tempo de ação, de colocar no terreno os novos instrumentos de que nos dotámos: o plano de vacinação à escala europeia e os planos nacionais de recuperação e resiliência.

São três as principais prioridades da presidência. A primeira é a recuperação económica e social, que terá como motores as transições climática e digital, fatores de crescimento e de criação de mais e melhor emprego. A segunda é o desenvolvimento do pilar social da UE, criando uma base sólida de confiança de que esta dupla transição será uma oportunidade para todos e que ninguém ficará para trás. Em terceiro lugar, temos de reforçar a autonomia estratégica de uma União Europeia aberta ao mundo.

Agora é tempo de ação, de colocar no terreno os novos instrumentos de que nos dotámos: o plano de vacinação à escala europeia e os Planos Nacionais de Recuperação

Três marcos darão expressão a estas três prioridades: a aprovação dos planos nacionais de recuperação, em conjunto com a lei do clima e o pacote para os serviços digitais; a realização da cimeira social, juntando parceiros sociais, sociedade civil e instituições num compromisso comum em torno do pilar social; a cimeira UE-Índia.

Se o lema da presidência alemã foi “Juntos para a recuperação da Europa”, o lema da presidência portuguesa marca a passagem à etapa seguinte, qualificando e concretizando essa recuperação: “Tempo de agir: por uma recuperação justa, verde e digital”.

É alcançando resultados que reforçamos a confiança dos cidadãos no projeto europeu, demonstrando que só um mercado interno dinâmico reforça as nossas PME e cria mais e melhores empregos, garantindo com um sólido pilar social que investimos nas qualificações, na inovação, na proteção social, que nos permitem liderar as transições climática e digital sem deixar ninguém para trás, reforçando a nossa autonomia estratégica sem medo de nos abrirmos ao mundo em que queremos ser atores globais.

É por isso tempo de agir, em conjunto, como comunidade de valores e de prosperidade partilhada.

sexta-feira, 1 de janeiro de 2021

31.12.1968 / 01.01.1969 – Uma vigília contra a Guerra Colonial

Posted: 31 Dec 2020 03:26 AM PST

 

(Cabeçalho da convocatória para a Vigília)


Em 31 de Dezembro de 1968, cerca de cento e cinquenta católicos entraram na igreja de S. Domingos, em Lisboa, e nela permaneceram toda a noite, naquela que terá sido a primeira afirmação colectiva de católicos contra a Guerra Colonial, numa actividade formalmente «disciplinada». Com efeito, o papa Paulo VI decretara, em 8 de Dezembro, que o primeiro dia de cada ano civil passasse a ser comemorado pela Igreja como Dia Mundial pela Paz e, alguns dias depois, os bispos portugueses tinham seguido o apelo do papa em nota pastoral colectiva. 

Assim sendo, nada melhor do que tirar partido de uma oportunidade única: depois da missa presidida pelo cardeal Cerejeira, quatro delegados do numeroso grupo de participantes comunicaram-lhe que ficariam na igreja, explicando-lhe, resumidamente, o que pretendiam com a vigília: 

«1º – Tomar consciência de que a comunidade cristã portuguesa não pode celebrar um “dia da paz” desconhecendo, camuflando ou silenciando a guerra em que estamos envolvidos nos territórios de África. 
2º – Exprimir a nossa angústia e preocupação de cristãos frente a um tabu que se criou na sociedade portuguesa, que inibe as pessoas de se pronunciarem livremente sobre a guerra nos territórios de África.
3º – Assumir publicamente, como cristãos, um compromisso de procura efectiva da Paz frente à guerra de África.» 

Entregaram-lhe também um longo comunicado que tinha sido distribuído aos participantes, no qual, entre muitos outros aspectos, era sublinhado o facto de a nota pastoral dos bispos portugueses, acima referida, tomar expressamente partido pelas posições do governo que estavam na origem da própria guerra, ao falar de «povos ultramarinos que integram a Nação Portuguesa». 

Apesar de algumas objecções, o cardeal não se opôs a que permanecessem na igreja, ressalvando «a necessidade de uma atitude de aceitação da pluralidade de posições». Pluralidade não houve nenhuma: até às 5:30, foram discutidos todos os temas previstos e conhecidos vários testemunhos, orais ou escritos, sobre situações de guerra na Guiné, Angola e Moçambique. 

Hoje tudo isto parece trivial, mas estava então bem longe de o ser. Aliás, seguiu-se uma guerra de comunicados entre Cerejeira e os participantes na vigília, que seria fastidioso analisar aqui. Mas vale a pena referir que, com data de 8 de Janeiro, uma nota do Patriarcado denunciou «o carácter tendencioso da reunião», terminando com um parágrafo suficientemente esclarecedor para dispensar comentários: 

«Manifestações como esta que acabam por causar grave prejuízo à causa da Igreja e da verdadeira Paz, pelo clima de confusão, indisciplina e revolta que alimentam, são condenáveis; e é de lamentar que apareçam comprometidos com elas alguns membros do clero que, por vocação e missão deveriam ser, não os contestadores da palavra dos seus Bispos, mas os seus leais transmissores». 

A PIDE esteve presente (há disso notícia em processo na Torre do Tombo), mas não houve qualquer intervenção policial. Alguns jornais (Capital e Diário Popular) noticiaram o evento, mas sem se referirem ao tema da Guerra Colonial – terão provavelmente tentado sem que a censura deixasse passar… A imprensa estrangeira, nomeadamente algumas revistas e jornais franceses, deram grande relevo ao acontecimento. E foi forte a repercussão nos meios católicos. 

Para quem esteve presente em S. Domingos, como foi o meu caso, essa noite ficará para sempre ligada à Cantata da Paz, hoje tão conhecida, mas que poucos identificam com a sua origem. Com versos propositadamente escritos para essa noite por Sophia de Mello Breyner, e com música de Francisco Fernandes, foi então estreada por Francisco Fanhais. (Quantas vezes a terá cantado depois disso, nem ele certamente o saberá…) 



P.S. – Quatro anos mais tarde realizou-se uma outra vigília pela paz na Capela do Rato, com consequências bem mais gravosas porque envolveu uma greve de fome, prisões e despedimentos da função pública.
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quinta-feira, 31 de dezembro de 2020

O fastio


por estatuadesal

(Miguel Sousa Tavares, in Expresso, 31/12/2020)

Miguel Sousa Tavares

1 Raras vezes assisti a um exercício colectivo de tamanha hipocrisia como este a propósito da matança da Torre Bela. Ressalvo que muitas das enormidades e dos disparates que vi ditos e escritos não o foram por má-fé ou injusta indignação, mas tão-só por uma absoluta ignorância da matéria em causa e das leis aplicáveis. O que não é o caso, obviamente do ministro do Ambiente, tão lesto a cavalgar agora as ondas populares de fúria das redes sociais, logo classificando aquilo como “um crime ambiental”, como é inerte e silencioso perante os verdadeiros crimes ambientais, estruturais e irremediáveis, que marcarão o país por décadas, mas cujos poderosos autores e interesses ele não se atreve a enfrentar. A matança da Torre Bela não tem nada que ver com caça nem com ambiente, foi um simples acto de barbárie e exibicionismo — muito comum entre os espanhóis, que não são verdadeiros caçadores, mas matadores — e que simultaneamente serviu um fim específico: limpar o terreno de todos os animais silvestres de grande porte para nele poder instalar a central fotovoltaica para lá projectada. Todos os coutos de caça maior onde existem veados ou gamos têm de proceder regularmente, e por razões naturais, ao respectivo desbaste, o qual é fixado em função da sua existência. É um espectáculo feio, que eu já testemunhei mas em que sempre recusei participar, mas que, todavia, é como é: ou se proíbe a caça a estas espécies sem ser por aproximação, em terreno aberto de montanha, ou, se se consente, por razões económicas, não se pode proibir o desbaste. E a dimensão deste, ao contrário do que vi dito, não depende de lei nem de fiscalização, mas de quem gere o couto e que se presume que não tem interesse em extinguir ou pôr em causa a “raiz” do mesmo. O que aconteceu na Torre Bela é que o interesse era o oposto, era exactamente o de limpar o couto de todos os animais, de uma só vez. E, para tal, recorreram aos serviços de uma empresa especializada e a “caçadores” orgulhosos de levarem a cabo a tarefa. Foi tão simples quanto isso.

O cúmulo da hipocrisia foi ver juntar-se ao coro das indignações a própria Herdade da Torre Bela, esclarecendo em comunicado que tinha apresentado uma queixa junto do Ministério Público (depois de o Ministério do Ambiente já o ter feito), “contra os promotores da caçada e porque os donos da Herdade não se revêem no que lá foi feito”. Em primeiro lugar, cabe perguntar: quem são os donos da Herdade da Torre Bela? Sim, quem são esses donos que até hoje ninguém, nem o presidente da Câmara da Azambuja (outro indignado) nem o ministro, nos querem dizer quem são? Será possível que não saibam quem é o verdadeiro proprietário de uma das maiores tapadas da Europa, outrora propriedade do duque de Lafões e depois símbolo da reforma agrária? E os senhores gestores da Herdade querem fazer-nos crer que contrataram uma empresa já suficientemente conhecida por promover matanças semelhantes sem estabelecer previamente um limite de animais a abater e sem ter ninguém no terreno a acompanhar o que se passava e poder dizer “basta”, quando visse o que estava a acontecer?

A Torre Bela serviu às mil maravilhas para reacender a fúria dos inimigos da caça — como se aquilo tivesse alguma coisa a ver com caça, que eles sabem que não tem, mas que lhes dá jeito confundir. Até parece ter sido encomendado para isso. Quando oiço o tonitruante ministro Matos Fernandes a dizer que vai perseguir criminalmente os organizadores e “caçadores” da Torre Bela e rever a lei da caça, já antevejo o desfecho do assunto: nada vai acontecer aos espanhóis e as consequências que houver vão sobrar para os banais caçadores portugueses, que não tiveram nada que ver com aquilo.


2 A persistência lusitana em não abrir mão de certas e sagradas regras burocráticas sempre ancoradas em visões congeladas das leis, chega a ser cómica. Assim a decisão do Tribunal Constitucional (TC) de não chumbar liminarmente a candidatura presidencial de um tal Baptista, militar colocado num quartel da NATO na Holanda, e que, em vez das 7500 assinaturas válidas de apoio à sua candidatura, apresentou apenas 11 — “de um camarada militar, um amigo e a família”. Porque, ao que parece, o TC entende que a competência para excluir candidatos, afinal será do MAI, ou que é preciso um acórdão para esclarecer a “questão”. Mais cómico ainda, embora sem graça nenhuma, foi a guerra de competências entre a PSP e a GNR de Évora sobre quem deveria escoltar a carrinha das vacinas covid em direcção ao sul. Como a PSP entendeu que a cidade é da sua competência, resolveu que lhe cabia a si fazer a escolta e não à GNR, e deu-se ao assomo de reter a carrinha (com uma vacina que tem prazos de congelação apertados) durante meia hora, até que alguém do horrível poder central resolvesse este conflito de poderes descentralizados. Fez-me lembrar o episódio de um Tintim, em que os Dupond e Dupont dão ordem de prisão um ao outro e montam numa bicicleta, cada um com a mão no ombro do outro, para assegurar a sua captura. O mais cómico disto é pensar que quando passar esta fase inicial do folclore e fogo-de-artifício, se algum dia, como nos garantem, se chegar às 75 mil ou 150 mil inoculações por dia, é óbvio que acabarão as aparatosas escoltas para saloio ver. Assim como rapidamente acabou o segredo do “armazém secreto no centro do país” onde se armazenam as vacinas da Pfizer. Porque não conseguimos ser mais práticos e menos grandiloquentes? Mais eficazes e menos institucionais?


3 E, por falar em vacinas, há quem já esteja preocupado por ainda não haver, segundo as sondagens, um número suficiente de portugueses dispostos a vacinar-se em quantidade que garanta a imunidade de grupo de toda a população. É, de facto, um problema inesperado se a estupidez de uns quantos puser em causa a saúde de todos. É, aliás, um subcapítulo de uma mais vasta e preocupante estupidez universal que liga o negacionismo sobre a covid-19 a teorias da conspiração sobre o “roubo” da reeleição de Trump, a grande seita pedófila democrática, o chip que Bill Gates terá instalado em cada vacina e destinado a controlar cada cidadão do planeta, e outras histórias que, de tão imbecis, não acreditaríamos que alguém pudesse acreditar nelas, não fosse esta a era da imbecilidade absoluta das redes sociais. Sendo que o princípio da voluntariedade da vacinação permanece intocável, certos países ponderam, contudo, adoptar consequências para quem se recusar a tomá-la, com fundamento na violação de um dever cívico de solidariedade social e de defesa comum da saúde pública. Uma dessas consequências — que me parece no mínimo exigível — é a de que quem se recusar a ser vacinado e venha a ter de ser tratado depois à doença pague os seus tratamentos por inteiro.

Em boa verdade, porém, esta é uma conversa que me parece completamente prematura no caso português. Mantendo o pessimismo de que aqui dei conta na semana passada, acho que estamos muito longe do momento em que as autoridades terão de andar atrás dos portugueses para eles se vacinarem. O contrário é que é bem mais provável: se não abrirem mão do que não pode ser nada mais do que preconceitos ideológicos ou incapacidade organizativa e não estenderem a vacinação à farmácias, sectores privado e social, o que veremos antes é os portugueses a andarem atrás das autoridades a mendigarem uma vacina.


4 Amanhã, Portugal inicia a sua quarta presidência semestral da União Europeia e pode-se dizer que António Costa é um homem de sorte: há um mês, a tarefa de Portugal era um pesadelo à vista, hoje é uma planície de onde foram removidos todos os pedregulhos. Graças a Angela Merkel, a Ursula von der Leyen, a Michel Barnier e a Christine Lagarde, a ‘bazuca’ vai estar desimpedida e activa, o crédito disponível e barato, as vacinas contra a covid em plena distribuição coordenada por Bruxelas e o ‘Brexit’ resolvido. Não é apenas uma oportunidade incrível para Portugal (mais uma!), é também uma oportunidade única para a Europa, para uma nova agenda virada para o futuro e para a procura de soluções para os problemas de amanhã. Temos todas as condições para fazer uma presidência que brilhe, mas também todas as responsabilidades para não falhar. Nesta hora em que a Europa emerge de tantos e tão terríveis desafios mais forte e mais unida do que nunca, gostaria de saber quem é que ainda se atreve a dizer que estaríamos melhor fora da Europa?


5 A lei que rege as candidaturas presidenciais é absolutamente clara no sentido de permitir a suspensão do mandato parlamentar do deputado André Ventura, enquanto durar a campanha eleitoral. E a lei sobrepõe-se ao estatuto dos deputados. Ao recusar a pretensão de André Ventura, ao arrepio do parecer jurídico do deputado encarregado de se pronunciar sobre o assunto, a coligação PS/PCP/BE não faz mais do que cobrir-se de vergonha e ajudar à vitimização de Ventura. Ainda não perceberam que atitudes destas relativamente ao deputado do Chega, tais como as de Ana Gomes e Marisa Matias, só servem para lhe dar força crescente.

Miguel Sousa Tavares escreve de acordo com a antiga ortografia 

As mulheres do ano

Posted: 30 Dec 2020 03:34 AM PST


 

«Há eventos, na história mais recuada e nos tempos recentes, que percebemos bem terem sido causados, ou piorados, pela má qualidade dos políticos e dos governantes. Exemplifico. A Revolução Francesa não está desligada da mediocridade de Luís XVI. Qualquer um esperaria de governantes como Trump e Bolsonaro que potenciassem uma carnificina, em calhando uma crise pandémica como a da covid. Porque psicologicamente e politicamente são produtos que não têm o bem comum da generalidade da população como princípio norteador. 

O “Brexit” foi outro caso claro de políticos desastrosos sucedendo-se como dízima infinita. O irresponsável Cameron, com a brincadeira do referendo. May, mostrando força que não tinha. Boris Johnson, impreparado e espalhafatoso. Corbyn, sempre ambíguo e politicamente radical. Desagradava tanto aos britânicos que estes, até os que detestam o cisma com a União Europeia, preferiram votar nos conservadores do “Brexit”. 

Porém, neste ano de pandemia, tivemos a sorte de algumas lideranças providenciais. Daquelas que agiram para minorar ou extinguir a crise. Que velaram pelo bem comum em vez de pelo narcisismo estrepitoso próprio dos líderes proto-autoritários. Dentro delas, curiosamente, as melhores foram mulheres. Para mim, as personalidades políticas de 2020 foram quatro e estão todas no feminino. 

Ursula von der Leyen é a mais emblemática. Porventura a maior responsável europeia pela vacina para a covid. Não tendo a União Europeia uma política de saúde comum, para além dos mínimos de regulamentação, a Comissão Europeia tomou para si o financiamento da pesquisa das empresas privadas, arriscou (porque poderia financiar e os resultados serem sofríveis ou insuficientes), coordenou etapas entre o regulador comunitário e as farmacêuticas, encomendou doses para toda a UE, e, por fim, está a distribui-las por todos os países simultaneamente. 

Penso que em Portugal todos temos noção de que, não fora toda a estratégia, planeamento e logística da Comissão Europeia, não receberíamos vacinas contra a covid ao mesmo tempo que a Alemanha. Nem teríamos stocks atempados para recuperarmos normalidade de vida no verão. Lembremos há pouco tempo o desaire com as vacinas da gripe, esse da gestão do muito português Ministério da Saúde, que colocou pessoas que normalmente se vacinam sem dificuldades não conseguindo vacinas este ano. 

A presidente da Comissão não deixou os Estados membros entregues a si próprios numa área que não é da competência da UE. Depois da calamitosa resposta inicial da UE à Itália – ficou sozinha a tratar do surto explosivo de covid, com ajuda casuística dos países vizinhos em alguns internamentos –, onde até houve ralhetes e ameaças do BCE por causa das contas públicas italianas à conta da covid, Ursula von der Leyen percebeu que a resposta teria de ser europeia. Porque o coronavírus tem a particularidade irritante de não se incomodar com fronteiras. 

Não foi só na vacinação que Ursula von der Leyen entregou resultados. A bazuca europeia para a recuperação económica pós-covid tem a sua impressão digital. Conseguir convencer os mais renitentes à emissão de dívida europeia para a bazuca foi épico. O discurso do Estado da União por Von der Leyen este ano no Parlamento Europeu – memorável. Falando em inglês e francês, Ursula não tem a vivacidade que lhe é visível nas partes em que discursa em alemão, é mais pausada e contida, mas as oscilações de forma não a impediram de ser ambiciosa para a UE, tanto na economia como nos direitos humanos, passando até pela cultura. 

Felizmente temos uma Ursula von der Leyen à frente da CE neste ano alucinado. Até o dossier “Brexit” a expediente Ursula conseguiu encerrar. E é curioso – e comovente – que o ano da consumação do “Brexit” seja também o ano em que a colaboração europeia fez tanto sentido e foi tão imprescindível. 

Outra líder incontornável: Angela Merkel. Sempre reincidente nestes rankings de boas características. A sua firmeza a decretar confinamentos, a escolha de bons cientistas para a aconselharem e a ausência de hesitação a aplicar as recomendações foram de índole a dar segurança ao mais incréus. Os seus discursos políticos onde explicava, de modo calmo e contundente, o que sucederia se a taxa de transmissão da doença aumentasse, quantos mortos se esperariam diariamente se o Natal alemão fosse mais relaxado, e outros pormenores técnicos tornados acessíveis e evidentes por Merkel, foram de antologia. Deveriam ser usados em licenciaturas e mestrados como paradigmas de boa comunicação política. 

Uma terceira é Jacinda Ardern, da Nova Zelândia. Teve como política suprimir o contágio de covid. O país fechou, para dentro e para fora (ajudou ser um arquipélago), e temporariamente teve os custos económicos da paragem. Como resultado, no total tiveram pouco mais de dois mil casos de covid e, segundo o site Worldometers, 25 mortos (para cinco milhões de habitantes). Já reabriram as fronteiras com a Austrália e regressaram à vida (quase) normal mesmo sem vacinas que lhes trouxessem a almejada imunidade de grupo. 

E a quarta: Tsai Ing-wen. A Presidente de Taiwan, líder do DPP, o partido progressista e independentista da ilha. Teve melhores resultados que Ardern: menos de mil casos em Taiwan, e sete mortes. Tanto mais assinalável pela alta densidade populacional: a ilha é menos de metade de Portugal e tem mais do dobro da população. A estratégia de Tsai Ing-wen foi implementada mal se souberam dos casos em Wuhan nos primeiros dias do ano. Logo em janeiro, estava a OMS ainda a olhar para o umbigo e para a propaganda chinesa, fechou o país ao exterior (só entravam residentes e nacionais, com quarentena), convidou os turistas chineses (há lá muitos) e japoneses a regressarem a casa sem demoras, encerrou as escolas e universidades por umas tantas semanas, as máscaras tornaram-se obrigatórias e eram distribuídas à população. 

Taiwan nunca teve confinamento geral, mas a pronta ação inicial e a limitação de movimentos contiveram o contágio de covid nos primórdios da doença. Podemos comparar com os países europeus, Portugal por exemplo, incentivando a vinda de turistas todo o verão, a ver se tornavam inevitável uma segunda vaga. Taiwan está na meia dúzia (mal contada) de países que vai crescer economicamente em 2020. 

2020 foi um ano terrível. Porém, é reconfortante que nesta crise gigante as lideranças políticas femininas tenham sido as mais admiráveis.»