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terça-feira, 5 de janeiro de 2021

De que maneira a covid-19 poderá mudar o mundo?

Posted: 04 Jan 2021 03:36 AM PST

 


«A covid-19 está a devastar o mundo. Está num processo de infetar muitos (talvez até a maioria) de nós, matando alguns, bloqueando as nossas relações sociais normais, interrompendo a maioria das viagens internacionais e destruindo as nossas economias e o comércio. Como será o mundo daqui a alguns anos, depois de ter passado esta crise aguda? 

Existe uma suposição generalizada de que em breve estarão aprovadas vacinas para nos proteger contra a covid-19. Infelizmente, essa perspetiva ainda é muito incerta. As doenças variam no seu potencial para serem prevenidas por vacinas. 

Algumas vacinas - contra a varíola e a febre-amarela, por exemplo - oferecem proteção por décadas ou por toda a vida; contra a gripe, contudo, só o fazem por menos de um ano. E ainda não existem vacinas contra a malária e a sida, apesar dos enormes esforços investidos no seu desenvolvimento. A gripe sofre mutações frequentemente, ou as suas várias estirpes mudam proporcionalmente, de modo que uma nova vacina tem de ser desenvolvida todos os anos. E enquanto as vacinas contra a poliomielite e a varíola protegem a todos, as vacinas contra a gripe e a cólera protegem apenas cerca de metade dos indivíduos que as recebem. Portanto, é impossível de se prever a eficácia das anunciadas vacinas contra a covid-19. 

Mas vamos supor que vacinas eficazes contra a covid-19 estejam disponíveis em breve. Como conseguirá isso mudar o mundo? Cientistas em muitos países - China, Estados Unidos, Rússia, Reino Unido e outros - estão numa corrida para as aprovar. Isso sugere o pior dos cenários, o melhor dos cenários e tudo o resto entre os dois. 

Já existem muitos sinais de um pior dos cenários incipiente. Mesmo que algum país que desenvolveu uma vacina, a teste e garanta a sua eficácia, 7,7 mil milhões de doses para 7,7 mil milhões de pessoas no planeta não poderão ser fabricadas e distribuídas em todo o mundo num piscar de olhos. Em primeiro lugar, os suprimentos serão escassos. Quem receberá as primeiras doses desejadas? As propostas de bom senso estipulam que as primeiras doses devem ser reservadas para o pessoal da saúde, porque todos os outros precisam das equipas médicas para administrar as doses aos restantes de nós e para cuidar dos doentes. Entre aqueles de nós que não são médicos, pode-se esperar que pessoas ricas e influentes encontrem maneiras de adquirir as doses antes das pessoas pobres e sem influência. 

Porém, essas considerações egoístas aplicam-se apenas à distribuição de doses dentro do país que primeiro desenvolver uma vacina eficaz. É provável que haja egoísmo internacional também: um país que desenvolve uma vacina, certamente colocará os seus próprios cidadãos em primeiro lugar. Essa priorização já aconteceu no que diz respeito às máscaras: há alguns meses, quando eram escassas e alguns carregamentos da China chegavam à Europa, ocorreram disputas e lutas de licitações, alguns países procuravam garantir o abastecimento para si. Pior ainda, o primeiro país que desenvolveu uma vacina poderá negar-se a cedê-la a rivais políticos ou económicos. 

Pensando bem, porém, políticas nacionais egoístas seriam suicidas. Mesmo no curto prazo, nenhum país pode alcançar a segurança duradoura contra a covid-19 para si mesmo eliminando a doença dentro das próprias fronteiras. No mundo globalizado de hoje, a covid-19 simplesmente voltaria para esse país vindo de outros que não tivessem eliminado o vírus. 
Isso já aconteceu na Nova Zelândia e no Vietname, onde medidas rigorosas interromperam a transmissão local, mas os viajantes que regressavam continuaram a importar novos casos de covid-19. Isso ilustra uma importante conclusão: nenhum país estará seguro contra a covid-19 até que todos estejam. É um problema global que exige uma solução global. 

Eu considero esse facto como uma boa notícia. Enfrentamos outros problemas globais que exigem soluções globais: especialmente as mudanças climáticas, o esgotamento de recursos em todo o mundo e as consequências desestabilizadoras da desigualdade entre os países no nosso mundo globalizado. Assim como nenhum país se consegue manter livre da covid-19 para sempre eliminando apenas o vírus dentro das suas fronteiras, nenhum país se pode proteger contra as mudanças climáticas reduzindo apenas a sua dependência em combustíveis fósseis e as suas próprias emissões de gases de efeito estufa. O dióxido de carbono atmosférico, assim como a covid-19, não respeitam fronteiras políticas. 

Mas as alterações climáticas, o esgotamento de recursos e a desigualdade representam ameaças muito mais sérias à nossa sobrevivência e qualidade de vida do que a atual pandemia. Mesmo na pior das hipóteses, se todos os humanos na Terra fossem expostos à covid-19 e 2% de nós morrêssemos como consequência dessa exposição, isso significa "apenas" 154 milhões de mortes. Isso deixa 7546 milhões de pessoas ainda vivas, muito mais do que o suficiente para garantir a sobrevivência humana. A covid-19 é uma ninharia, em comparação com os perigos que as alterações climáticas, o esgotamento de recursos e a desigualdade representam para todos nós. 

Então, por que razão não nos sentimos incentivados para agir contra as alterações climáticas e outras ameaças globais, quando estamos motivados pela ameaça comparativamente mais branda da covid-19? A resposta é óbvia: a covid-19 chama a nossa atenção, atacando ou matando as suas vítimas rápida e inequivocamente (no período de alguns dias ou semanas). Em contraste, a mudança climática destrói-nos lentamente e muito menos claramente por meio de consequências indiretas, como a redução da produção de alimentos, a fome, fenómenos climáticos extremos e a propagação de doenças tropicais em zonas temperadas. Consequentemente, temos sido lentos em reconhecer as alterações climáticas como uma ameaça global que requer uma resposta global. 

É por isso que a pandemia da covid-19 me dá esperança, mesmo enquanto lamento a perda de amigos queridos que ela dizimou. Pela primeira vez na história mundial, as pessoas em todo o mundo estão a ser forçadas a reconhecer que todos nós enfrentamos uma ameaça comum e que nenhum país pode superá-la por si mesmo. Se os povos do mundo se unirem, compulsivamente, para derrotar a covid-19, poderão aprender uma grande lição. Poderão sentir-se motivados a unir-se, obrigatoriamente, para combater as alterações climáticas, o esgotamento de recursos e a desigualdade. Nesse caso, a covid-19 terá trazido não só tragédia, mas também salvação, colocando finalmente os povos do mundo numa rota sustentável.» 

segunda-feira, 4 de janeiro de 2021

Um café e uma vacina


Posted: 03 Jan 2021 04:04 AM PST

 


«Foi há dias, pela manhã, no café. De repente, aquilo saiu-lhe, espontâneo, em voz audível, provocando a risota geral. “Adoro vacinas! Por mim, tomava uma todos os dias ao pequeno-almoço, depois do galão quentinho!” Falava-se, evidentemente, de um dos assuntos que tem povoado a generalidade das conversas nos últimos dias: as vacinas e o novo coronavírus. 

Eu também, passe a expressão, adoro vacinas. E, no entanto, a excitação repentina que tomou conta do espaço público, as expectativas desmesuradas que foram criadas e a forma como tudo tem sido comunicado e experienciado deixam algumas interrogações no ar. Curiosamente, a OMS (Organização Mundial da Saúde), que ao longo destes meses não tem sido sempre eficaz na comunicação, fez ao longo destes dias alertas a que, de forma significativa, não foi dado grande eco. 

Nada que não se soubesse e que não tenha sido reafirmado ao longo destes meses, mas que é preciso recordar em momentos como este, quando se cria a ilusão de que temos a situação sob controlo, ou que por mais danos que façamos, a ciência ou a tecnologia serão sempre prodigiosamente reparadoras. Por exemplo, Mark Ryan, líder do programa de emergências da OMS, frisou que, apesar do impacto da actual pandemia, esta “não será necessariamente a maior”, e que o mundo vai ter de aprender a coabitar com o vírus, que poderá tornar-se endémico, apesar de vacinas que, “mesmo sendo eficazes”, não são garantia de “eliminação” do problema. 

Ou seja, a vacina é uma excelente notícia, e deve ser celebrada, mas deve ser circunscrita ao que é: uma ferramenta que faz diminuir o perigo numa altura de emergência. Não deve ser vista como a varinha miraculosa que erradicará todos os dilemas que a pandemia convoca e que vão além das circunstâncias actuais. O foco tem de ser ainda a prevenção, aprender com os erros, olharmos para as causas multidimensionais que nos trouxeram até aqui e para o modelo insustentável de habitar o planeta, e apostando em simultâneo num bom sistema público de saúde e em comportamentos responsáveis, seja do ponto de vista colectivo como individual. E, já agora, em vez do actual endeusamento dos cientistas, como já aconteceu antes com médicos ou enfermeiros, ter a consciência de que aquilo que permite gerir de forma satisfatória uma pandemia é a conjugação de saberes. 

Não se trata de retirar o enorme mérito a quem tem vindo a trabalhar nas vacinas, mas de reconhecer que ainda estamos longe do fim do processo. Como já se percebeu, haverá muita gente a recusar-se a tomá-la. E não, não se vai lá chamando-lhes incultos ou ignorantes, da mesma forma que nos tempos do vírus VIH não bastou dizer às pessoas para usarem preservativos para as cadeias de contágio serem interrompidas, para isso acontecer por artes mágicas. Não basta, digamos assim, resolver os problemas tecnicamente, como recordava há algumas semanas José Vítor Malheiros, num texto no Facebook a que deu o título de: O factor humano. Porque é disso que também se trata. É preciso saber analisar comportamentos, atitudes, hábitos ou grupos socioculturais, envolvendo ciências sociais ou humanas, para que as hipóteses criadas não fiquem pelo papel e venham a constituir uma realidade. 

É preciso auscultar e perceber o que se receia ou porque é que é tão difícil estabelecer relações de confiança entre diferentes pessoas, instituições ou saberes. A estratégia até agora seguida no combate à pandemia, em Portugal e na maior parte dos países da Europa, nem sempre o tem conseguido fazer. Até certo ponto, tendo em atenção as inevitáveis incertezas e contradições encontradas pelo caminho, é compreensível. É também por isso que tem existido tolerância em relação a quem decide e está no poder. Mas a par de imposições, ou estados de emergência, tem de haver informação clara e completa, e acreditar na capacidade das populações para a receberem na sua complexidade e a debaterem. É assim que as relações de confiança se constroem. 

Posto isto, venha de lá essa vacina e um abatanado curto, se faz favor!» 

 

Populismo mediático

por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso, 31/12/2020)

Daniel Oliveira

Tino de Rans gasta um décimo de Ventura, que gasta um terço de João Ferreira mas o triplo de Ana Gomes, que gasta o dobro de Marcelo. É isto o início da campanha, numa sucessão de títulos de jornais. Despolitizar a política é, há anos, uma das principais ocupações da comunicação social. Neste caso, alimentando a ideia de que os candidatos podem gastar o mesmo por estarem em igualdade de circunstâncias. Marcelo está no lugar e na televisão todos os dias. Para ter igual exposição, João Ferreira teria de gastar muitíssimo mais. Já há cinco anos Marcelo criticou os seus oponentes pela despesa em outdoors. Exposto durante 15 anos, semanalmente e em horário nobre, fez-se Presidente em dois canais de televisão. Mas queria que os que se tinham de se dar a conhecer prescindissem desse esforço. Precisamos de um jornalismo que escrutine o poder. Não precisamos de substituir a democracia pela mediocracia. A campanha populista contra os gastos dos candidatos é uma campanha pelo monopólio mediático sobre a política. Uma campanha inútil em tempo de redes sociais. Mas perigosa, quando essas redes, concebidas de forma a favorecer a polarização, se arriscam a ficar com o exclusivo da mediação. Claro que podemos fazer perguntas difíceis: quem paga as dispendiosas campanhas do Chega, apesar da magra subvenção de um partido com um deputado? E podemos ter respostas difíceis: ao contrário de outros, o PCP não encontra os seus eleitores no Twitter.

Mas é bom lembrar que o populismo de que todos se queixam não nasceu nas redes sociais. O mais desbragado medrou nos tabloides. O mais sorrateiro, que trata com desprezo o poder que elegemos e com obediência os poderes não eleitos (do poder judicial que é fonte de notícias ao poder económico que é financiador de jornais), nasceu na imprensa de referência. E, apesar do moralismo, foi o jornalismo-espetáculo que favoreceu a arruada inútil, o soundbite comicieiro, a polémica vazia para encher ciclos noticiosos de 24 horas. Podem-se e devem-se fazer campanhas mais baratas. Mas elas têm de ser feitas fora da televisão e não podem ficar reféns das redes sociais. E isso custa dinheiro.


Chateia-me, pá!

A brincadeira corre na internet para mostrar como pensa um anti-vaxxer. Com ironia, alguém conta que sofreu uma intoxicação alimentar. Decidiu fazer uma pesquisa e descobriu que, todos os anos, elas matam 420 mil pessoas. Desde então, não alimenta os filhos. Sabe que a alimentação previne a fome, mas acha irresponsável ignorar os perigos associados à comida. E apela a que cada um faça as suas pesquisas. Só depois devem decidir se querem pôr crianças em risco, alimentando-as. Céticos em relação à ciência, os anti-vaxxers têm uma inesgotável fé em tudo o que encontram no Google. É a pandemia do conforto, típica de sociedades ricas e mais habitual em pessoas escolarizadas, com a arrogância do meio conhecimento. Como sempre, haverá reações adversas à vacina contra a covid-19. Mas aos que se tencionam pendurar na minha imunidade, esperando para ver se não há perigo, apetece-me propor que também fiquem para o fim se precisarem de cuidados intensivos. Não o faço, porque aceito a escolha de cada um. Apenas sublinho que quem, sem contraindicações, decida não se vacinar está a prolongar a pandemia e a limitar a minha liberdade por mais tempo do que o necessário. E isso é, como diria Pinheiro de Azevedo, uma coisa que me chateia. 

domingo, 3 de janeiro de 2021

Porque não mudar as empresas para onde o trabalho infantil é legal?

Posted: 02 Jan 2021 03:00 AM PST




 

«Sim, falta responder à pergunta que Christina Hoff Sommers faz no vídeo There is no gender wage gap e que inspirou esta mini-série de coffee breaks sobre desigualdade salarial: se os salários são a maior despesa das empresas e se as mulheres ganham menos, porque é que as empresas não contratam só mulheres? 

A pergunta é dita como prova de que não existe desigualdade salarial e é repetida no Ocidente como se fosse um slogan publicitário. 

Hoff Sommers sabe que a pergunta é absurda, puramente retórica e que parte de uma premissa irreal. O que está ela a propor? Que as empresas passem a rejeitar todos os candidatos homens e se regresse a um século XIX ao contrário, com os homens em casa e as mulheres no mercado de trabalho? Que as empresas contratem mulheres com menos mérito, menos talento, menos experiência só porque são mulheres e ponham de lado os homens só porque são homens? O mínimo que se pode dizer é que seria sexista, discriminatório e ilegal. Não faz sentido e Hoff Sommers sabe-o muito bem. 

Perguntar porque é que as empresas não contratam só mulheres, disse-me um amigo, “é como perguntar: ‘E se fizéssemos isso no Dia de São Nunca à Tarde ou quando as galinhas tiverem dentes?’”. São perguntas sem resposta. 

Caro leitor, se testar o modelo de Hoff Sommers verá que é evidente quão absurda é a proposta. Façamos a experiência: porque é que as empresas, cujo interesse é terem lucro, não se mudam todas para a China, onde os salários são mais baixos? Tem lógica, mas não faz sentido. Ah, já sei: a China é longe e a mudança exigiria dinheiro. Ok. Então porque é que as empresas, cujo interesse é terem lucro, não se mudam todas para os paraísos fiscais, onde se pagam menos impostos, e há tantas aqui tão perto? 

Outra hipótese, mais próxima ainda da lógica de Sommers: porque é que as empresas, cujo interesse é terem lucro, não se mudam todas para países onde as crianças trabalham e ganham dois dólares por dia? Vale um vídeo, não lhe parece? 

Por favor, imagine um vídeo com cinco minutos, produzido por uma equipa de bons designers, no qual cada uma das ideias seguintes surge escrita num slide ou é dita em voz off: só em África há 72 milhões de crianças que trabalham; em dezenas de países o trabalho infantil é legal e as empresas podem contratar crianças à vontade e não precisam de fazer nada às escondidas; as crianças recebem menos do que os adultos e quando morrem são substituídas por outras crianças; não é sequer preciso pagar segurança social; as crianças são trabalhadores flexíveis — trabalham na agricultura, na indústria e nos serviços — e muitas fazem trabalhos perigosos, sobretudo relacionados com máquinas e químicos; é mesmo prático e as empresas podem escolher à vontade. O que poupavam as empresas! Tantos e tantos euros. E há imensas crianças no mundo. Devem ser burras as empresas. Podiam ir todas para África, para a América Latina ou para a Ásia e poupar milhões, mas teimam em continuar nos EUA e na Europa. Só na Índia há dez milhões de crianças dos cinco aos 14 anos que trabalham. É um mundo de oportunidades. Se preferirem, as empresas podem ficar por aqui. Porque não vão todas as empresas portuguesas para a Bulgária ou para a Moldova? São dois exemplos, mas se procurar, verá que até na Europa a escolha é grande. 

Levemos a lógica de Sommers ao extremo (caro leitor, por favor continue a imaginar um vídeo com bom design): se os salários são a maior despesa das empresas, se as crianças ganham menos do que os adultos e se há 152 milhões de crianças que trabalham, porque é que as empresas não se mudam todas para os países onde o trabalho infantil é comum? Além do mais, 19 milhões delas têm entre 5 e 11 anos, são ainda mais baratas! 

Só há duas explicações possíveis para as empresas não irem para a África, Ásia, América Latina e Europa de Leste, onde poderiam poupar dinheiro contratando crianças: os empresários são tolos ou o trabalho infantil não existe, é um mito. 

Caro leitor: se foi picado pelo bicho Hoff Sommers, experimente aplicar o modelo. O mais provável é concluir que as empresas — felizmente — têm os pés na terra e não são geridas como se estivessem num filme de ficção científica. 

Sommers foi professora de filosofia em duas universidades americanas. Conhece os “juízes indeterminados” de Emmanuel Kant — é quando se nega uma possibilidade sem afirmar uma possibilidade real. Que fique claro: a pergunta do seu vídeo é absurda, irreal e errada do ponto de vista ético, legal e — lamento dizer — até retórico. 

Série “Coffee break” sobre desigualdade salarial: 
  • As mulheres histéricas
  • É difícil explicar que a Terra é redonda
  • O vídeo da professora Hoff Sommers é falso
  • A desigualdade salarial é um mito? 6 argumentos
  • O trabalho e o mito da bravura dos homens
  • Nunca viu desigualdade salarial? A TAP dispensou cinco grávidas

      Bárbara Reis 

Deois logo se vê

por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 31/12/2020)


O nosso mundo dividiu-se de um dia para o outro. Uma metade preta e uma metade branca. Os pessimistas e os otimistas. Comecemos pela metade branca, a do copo meio cheio. Um mundo administrado pelos otimistas seria um mundo em tons pastel e à velocidade da carroça, onde ninguém faz perguntas, e não é um mundo onde me apeteça viver porque estou na profissão de fazer perguntas. Os otimistas comoveram-se com o “ballet russo” das vacinas e certificam a esperança com o primeiro dia da vacinação ter “corrido bem”. Os camiões não viraram, os aviões não caíram, as pessoas estavam nos postos e prontas a receberem a imunização. Nada falhou. Por esta razão, alguns acreditaram que na primavera teremos imunidade de grupo e no verão toda a gente vacinada e pronta a ir de férias para o outro lado do sol posto, cavalgando aviões e ocupando hotéis. No outono, álacres e sorridentes, estaremos de volta ao mundo de ontem, contando a lenda da nossa virtude e falando do ano de 2020 no passado como quem narra uma façanha histórica. Passa a ser o aziago ano “o ano da pandemia”. E depois, a Humanidade venceu o vírus. The End.

Do meu lado pessimista, vejo um copo meio vazio. E 2021 como um ano com riscos maiores do que 2020. Poderá ser o ano do triunfo da impiedade e do egoísmo universal.

Comecemos pelas vacinas. Um feito da ciência, sem dúvida, e um feito da Big Pharma que parece ter-se redimido de todos os vícios e pecados, mas um feito ao qual não foram feitas perguntas. A necessidade da vacinação é tão grande que se pôs de lado o cuidado de perguntar sobre a vacina e sobre a manufatura da vacina. A brutal e bem-sucedida campanha de marketing realçou a absoluta fiabilidade e segurança da injeção, quod erat demonstrandum, sem responder a perguntas às quais não saberia responder. Os CEO e investidores ganharam milhões de dólares com os anúncios das vacinas, num claro fenómeno de inside trading, e ninguém questionou o comportamento predatório.

As pessoas vacinadas podem ou não ser portadoras do vírus e transmiti-lo a outras pessoas? Não sei, não percebi. Uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez. Caso a resposta seja afirmativa, podem transmitir, isso significa que a vacina protege apenas o próprio dos efeitos da doença, não impede a infeção e transmissão. Significa que as restrições que conhecemos continuam a ser necessárias, pelo menos até quase toda a população estar vacinada. A primeira e principal característica das vacinas é a escassez. E a escassez, mesmo num mercado controlado pelo Estado, tem leis universais, tão rigorosas como as da física. As vacinas não podem ser manufaturadas a tempo e horas para que na primeira metade do ano de 2021 a população possa estar protegida. E, sobretudo, a população ativa. A escassez de vacinas, e a luta desenfreada pelas vacinas disponíveis, irá condicionar todo o ano que vem.

Tudo o que sabemos, sabemos sobre as duas primeiras fases da vacinação, as mais fáceis, as que só podem correr bem. A primeira fase foi a do ballet russo, poucas vacinas para poucas pessoas, por comparação com o resto da população, e sobretudo para pessoas identificadas e imóveis. Não só porque as pessoas a vacinar são facilmente detetadas, também porque as pessoas a vacinar são as mais bem preparadas para a vacina, estiveram na linha de combate durante meses, num sofrimento e cansaço que nenhum de nós, os que não somos trabalhadores da saúde, pode imaginar. Ver esta gente ter finalmente a dose de esperança e proteção foi, é, uma alegria coletiva. Deveriam ser sempre os primeiros. E merecem a nossa gratidão e louvor.

Infelizmente, não são os únicos. Resta a população de Portugal. E da Europa. E do mundo. Mesmo que a segunda fase, onde estão os mais vulneráveis e os doentes com patologias graves, corresse muito bem e se concluísse em três meses, abril, maio e junho, o resto da população portuguesa só começaria a ser vacinada em julho. Ora o verão é problemático. Muita gente vai querer ir de férias vacinada, e muitos dos postos e vacinadores vão querer ir de férias mesmo que haja um imperativo nacional de continuar a vacinar. Em Portugal, as férias, como os feriados, são sagrados. A interrupção ou cancelamento gera revoltas e protestos.

Estamos a falar da percentagem maior a vacinar, e ainda não sabemos com que vacinas, incluindo as vacinas não aprovadas sobre as quais ninguém fez ou fará perguntas, e quantas vacinas irão estar disponíveis no mercado. Ou como vai a Europa distribuí-las. Esta fase, certamente a mais dura, morosa, complexa e de difícil resolução logística, foi arrumada pelas autoridades num grupo a que chamo Depois Logo Se Vê.

No grupo Depois Logo Se Vê estamos quase todos. Como, quando, com quê? Estamos a falar de milhões de pessoas, muitas não detetáveis. Estamos a falar de portugueses que não têm médico de família, porque usam os seguros, visto que o nosso sistema de Saúde é misto, embora, estranhamente, os trabalhadores dos hospitais privados não tenham sido contemplados como trabalhadores da Saúde. As vantagens do sistema misto são, desde logo, evitar a sobrecarga do SNS. Como é possível que os hospitais privados estejam no grupo Depois Logo se Vê? Estes doentes e os que os tratam são excedentários? Deixamos infetar um hospital privado porque não vacinámos os que nele trabalham? Não se percebe, é demasiado confuso. E como foi possível deixar os professores de fora dos grupos prioritários? A escassez é a resposta.

A segunda metade do ano de 2021 vai ser governada pela escassez e pela procura. Num mundo governado por estas leis, raramente as pessoas se portam bem. Os privilegiados vão querer sonegar e desviar vacinas para o grupo. As falsificações e crimes vão abundar. O mercado negro espreita o momento. E isto, acreditando que a Europa vai continuar a distribuir equitativamente as vacinas por todos os países, o que não se verificará se a escassez afetar o eleitorado dos países mais ricos. Li que a Bulgária só teria a população vacinada em 2024. E resta o problema da Hungria e da Polónia, que insistirão em furar as regras de coexistência e acabarão a comprar vacinas à Rússia ou à China, na competição geoestratégica, oriente contra ocidente, ditadura contra democracia, comunismo contra capitalismo, que a vacina instituiu. As leis de mercado vão colidir com os monopólios públicos da vacinação. Tem tudo para correr mal. O Reino Unido vai desregular tudo o que puder desregular e navegar sozinho, sem cuidar dos parceiros que não tem. A vacina deles será, primeiro, para eles. E toda a gente se recorda do episódio dos camiões com máscaras que seguiam para a Suíça, que as tinha comprado, que a Alemanha desviou e açambarcou.

Resta o problema maior. A economia. A manutenção destas restrições durante, pelo menos, mais nove ou dez meses vai destruir definitivamente pequenas e médias empresas, vai destruir mais empregos, vai destruir o que ainda não foi destruído. Mesmo com o dinheiro da Europa, e poucas perguntas foram feitas sobre o preço futuro deste dinheiro, a salvação não chegará a todos. Do mesmo modo, para a saúde mental e física dos portugueses que fazem andar a economia, a salvação não chegará a horas. Esperar parece ser a única, e fraca, consolação. “Isto” ainda não começou.