Posted: 04 Jan 2021 03:36 AM PST
Posted: 04 Jan 2021 03:36 AM PST
Posted: 03 Jan 2021 04:04 AM PST
«Foi há dias, pela manhã, no café. De repente, aquilo saiu-lhe, espontâneo, em voz audível, provocando a risota geral. “Adoro vacinas! Por mim, tomava uma todos os dias ao pequeno-almoço, depois do galão quentinho!” Falava-se, evidentemente, de um dos assuntos que tem povoado a generalidade das conversas nos últimos dias: as vacinas e o novo coronavírus. Eu também, passe a expressão, adoro vacinas. E, no entanto, a excitação repentina que tomou conta do espaço público, as expectativas desmesuradas que foram criadas e a forma como tudo tem sido comunicado e experienciado deixam algumas interrogações no ar. Curiosamente, a OMS (Organização Mundial da Saúde), que ao longo destes meses não tem sido sempre eficaz na comunicação, fez ao longo destes dias alertas a que, de forma significativa, não foi dado grande eco. Nada que não se soubesse e que não tenha sido reafirmado ao longo destes meses, mas que é preciso recordar em momentos como este, quando se cria a ilusão de que temos a situação sob controlo, ou que por mais danos que façamos, a ciência ou a tecnologia serão sempre prodigiosamente reparadoras. Por exemplo, Mark Ryan, líder do programa de emergências da OMS, frisou que, apesar do impacto da actual pandemia, esta “não será necessariamente a maior”, e que o mundo vai ter de aprender a coabitar com o vírus, que poderá tornar-se endémico, apesar de vacinas que, “mesmo sendo eficazes”, não são garantia de “eliminação” do problema. Ou seja, a vacina é uma excelente notícia, e deve ser celebrada, mas deve ser circunscrita ao que é: uma ferramenta que faz diminuir o perigo numa altura de emergência. Não deve ser vista como a varinha miraculosa que erradicará todos os dilemas que a pandemia convoca e que vão além das circunstâncias actuais. O foco tem de ser ainda a prevenção, aprender com os erros, olharmos para as causas multidimensionais que nos trouxeram até aqui e para o modelo insustentável de habitar o planeta, e apostando em simultâneo num bom sistema público de saúde e em comportamentos responsáveis, seja do ponto de vista colectivo como individual. E, já agora, em vez do actual endeusamento dos cientistas, como já aconteceu antes com médicos ou enfermeiros, ter a consciência de que aquilo que permite gerir de forma satisfatória uma pandemia é a conjugação de saberes. Não se trata de retirar o enorme mérito a quem tem vindo a trabalhar nas vacinas, mas de reconhecer que ainda estamos longe do fim do processo. Como já se percebeu, haverá muita gente a recusar-se a tomá-la. E não, não se vai lá chamando-lhes incultos ou ignorantes, da mesma forma que nos tempos do vírus VIH não bastou dizer às pessoas para usarem preservativos para as cadeias de contágio serem interrompidas, para isso acontecer por artes mágicas. Não basta, digamos assim, resolver os problemas tecnicamente, como recordava há algumas semanas José Vítor Malheiros, num texto no Facebook a que deu o título de: O factor humano. Porque é disso que também se trata. É preciso saber analisar comportamentos, atitudes, hábitos ou grupos socioculturais, envolvendo ciências sociais ou humanas, para que as hipóteses criadas não fiquem pelo papel e venham a constituir uma realidade. É preciso auscultar e perceber o que se receia ou porque é que é tão difícil estabelecer relações de confiança entre diferentes pessoas, instituições ou saberes. A estratégia até agora seguida no combate à pandemia, em Portugal e na maior parte dos países da Europa, nem sempre o tem conseguido fazer. Até certo ponto, tendo em atenção as inevitáveis incertezas e contradições encontradas pelo caminho, é compreensível. É também por isso que tem existido tolerância em relação a quem decide e está no poder. Mas a par de imposições, ou estados de emergência, tem de haver informação clara e completa, e acreditar na capacidade das populações para a receberem na sua complexidade e a debaterem. É assim que as relações de confiança se constroem. Posto isto, venha de lá essa vacina e um abatanado curto, se faz favor!» |
por estatuadesal |
(Daniel Oliveira, in Expresso, 31/12/2020)
Tino de Rans gasta um décimo de Ventura, que gasta um terço de João Ferreira mas o triplo de Ana Gomes, que gasta o dobro de Marcelo. É isto o início da campanha, numa sucessão de títulos de jornais. Despolitizar a política é, há anos, uma das principais ocupações da comunicação social. Neste caso, alimentando a ideia de que os candidatos podem gastar o mesmo por estarem em igualdade de circunstâncias. Marcelo está no lugar e na televisão todos os dias. Para ter igual exposição, João Ferreira teria de gastar muitíssimo mais. Já há cinco anos Marcelo criticou os seus oponentes pela despesa em outdoors. Exposto durante 15 anos, semanalmente e em horário nobre, fez-se Presidente em dois canais de televisão. Mas queria que os que se tinham de se dar a conhecer prescindissem desse esforço. Precisamos de um jornalismo que escrutine o poder. Não precisamos de substituir a democracia pela mediocracia. A campanha populista contra os gastos dos candidatos é uma campanha pelo monopólio mediático sobre a política. Uma campanha inútil em tempo de redes sociais. Mas perigosa, quando essas redes, concebidas de forma a favorecer a polarização, se arriscam a ficar com o exclusivo da mediação. Claro que podemos fazer perguntas difíceis: quem paga as dispendiosas campanhas do Chega, apesar da magra subvenção de um partido com um deputado? E podemos ter respostas difíceis: ao contrário de outros, o PCP não encontra os seus eleitores no Twitter.
Mas é bom lembrar que o populismo de que todos se queixam não nasceu nas redes sociais. O mais desbragado medrou nos tabloides. O mais sorrateiro, que trata com desprezo o poder que elegemos e com obediência os poderes não eleitos (do poder judicial que é fonte de notícias ao poder económico que é financiador de jornais), nasceu na imprensa de referência. E, apesar do moralismo, foi o jornalismo-espetáculo que favoreceu a arruada inútil, o soundbite comicieiro, a polémica vazia para encher ciclos noticiosos de 24 horas. Podem-se e devem-se fazer campanhas mais baratas. Mas elas têm de ser feitas fora da televisão e não podem ficar reféns das redes sociais. E isso custa dinheiro.
A brincadeira corre na internet para mostrar como pensa um anti-vaxxer. Com ironia, alguém conta que sofreu uma intoxicação alimentar. Decidiu fazer uma pesquisa e descobriu que, todos os anos, elas matam 420 mil pessoas. Desde então, não alimenta os filhos. Sabe que a alimentação previne a fome, mas acha irresponsável ignorar os perigos associados à comida. E apela a que cada um faça as suas pesquisas. Só depois devem decidir se querem pôr crianças em risco, alimentando-as. Céticos em relação à ciência, os anti-vaxxers têm uma inesgotável fé em tudo o que encontram no Google. É a pandemia do conforto, típica de sociedades ricas e mais habitual em pessoas escolarizadas, com a arrogância do meio conhecimento. Como sempre, haverá reações adversas à vacina contra a covid-19. Mas aos que se tencionam pendurar na minha imunidade, esperando para ver se não há perigo, apetece-me propor que também fiquem para o fim se precisarem de cuidados intensivos. Não o faço, porque aceito a escolha de cada um. Apenas sublinho que quem, sem contraindicações, decida não se vacinar está a prolongar a pandemia e a limitar a minha liberdade por mais tempo do que o necessário. E isso é, como diria Pinheiro de Azevedo, uma coisa que me chateia.
Posted: 02 Jan 2021 03:00 AM PST
por estatuadesal |
(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 31/12/2020)
O nosso mundo dividiu-se de um dia para o outro. Uma metade preta e uma metade branca. Os pessimistas e os otimistas. Comecemos pela metade branca, a do copo meio cheio. Um mundo administrado pelos otimistas seria um mundo em tons pastel e à velocidade da carroça, onde ninguém faz perguntas, e não é um mundo onde me apeteça viver porque estou na profissão de fazer perguntas. Os otimistas comoveram-se com o “ballet russo” das vacinas e certificam a esperança com o primeiro dia da vacinação ter “corrido bem”. Os camiões não viraram, os aviões não caíram, as pessoas estavam nos postos e prontas a receberem a imunização. Nada falhou. Por esta razão, alguns acreditaram que na primavera teremos imunidade de grupo e no verão toda a gente vacinada e pronta a ir de férias para o outro lado do sol posto, cavalgando aviões e ocupando hotéis. No outono, álacres e sorridentes, estaremos de volta ao mundo de ontem, contando a lenda da nossa virtude e falando do ano de 2020 no passado como quem narra uma façanha histórica. Passa a ser o aziago ano “o ano da pandemia”. E depois, a Humanidade venceu o vírus. The End.
Do meu lado pessimista, vejo um copo meio vazio. E 2021 como um ano com riscos maiores do que 2020. Poderá ser o ano do triunfo da impiedade e do egoísmo universal.
Comecemos pelas vacinas. Um feito da ciência, sem dúvida, e um feito da Big Pharma que parece ter-se redimido de todos os vícios e pecados, mas um feito ao qual não foram feitas perguntas. A necessidade da vacinação é tão grande que se pôs de lado o cuidado de perguntar sobre a vacina e sobre a manufatura da vacina. A brutal e bem-sucedida campanha de marketing realçou a absoluta fiabilidade e segurança da injeção, quod erat demonstrandum, sem responder a perguntas às quais não saberia responder. Os CEO e investidores ganharam milhões de dólares com os anúncios das vacinas, num claro fenómeno de inside trading, e ninguém questionou o comportamento predatório.
As pessoas vacinadas podem ou não ser portadoras do vírus e transmiti-lo a outras pessoas? Não sei, não percebi. Uns dizem que sim, outros que não, outros que talvez. Caso a resposta seja afirmativa, podem transmitir, isso significa que a vacina protege apenas o próprio dos efeitos da doença, não impede a infeção e transmissão. Significa que as restrições que conhecemos continuam a ser necessárias, pelo menos até quase toda a população estar vacinada. A primeira e principal característica das vacinas é a escassez. E a escassez, mesmo num mercado controlado pelo Estado, tem leis universais, tão rigorosas como as da física. As vacinas não podem ser manufaturadas a tempo e horas para que na primeira metade do ano de 2021 a população possa estar protegida. E, sobretudo, a população ativa. A escassez de vacinas, e a luta desenfreada pelas vacinas disponíveis, irá condicionar todo o ano que vem.
Tudo o que sabemos, sabemos sobre as duas primeiras fases da vacinação, as mais fáceis, as que só podem correr bem. A primeira fase foi a do ballet russo, poucas vacinas para poucas pessoas, por comparação com o resto da população, e sobretudo para pessoas identificadas e imóveis. Não só porque as pessoas a vacinar são facilmente detetadas, também porque as pessoas a vacinar são as mais bem preparadas para a vacina, estiveram na linha de combate durante meses, num sofrimento e cansaço que nenhum de nós, os que não somos trabalhadores da saúde, pode imaginar. Ver esta gente ter finalmente a dose de esperança e proteção foi, é, uma alegria coletiva. Deveriam ser sempre os primeiros. E merecem a nossa gratidão e louvor.
Infelizmente, não são os únicos. Resta a população de Portugal. E da Europa. E do mundo. Mesmo que a segunda fase, onde estão os mais vulneráveis e os doentes com patologias graves, corresse muito bem e se concluísse em três meses, abril, maio e junho, o resto da população portuguesa só começaria a ser vacinada em julho. Ora o verão é problemático. Muita gente vai querer ir de férias vacinada, e muitos dos postos e vacinadores vão querer ir de férias mesmo que haja um imperativo nacional de continuar a vacinar. Em Portugal, as férias, como os feriados, são sagrados. A interrupção ou cancelamento gera revoltas e protestos.
Estamos a falar da percentagem maior a vacinar, e ainda não sabemos com que vacinas, incluindo as vacinas não aprovadas sobre as quais ninguém fez ou fará perguntas, e quantas vacinas irão estar disponíveis no mercado. Ou como vai a Europa distribuí-las. Esta fase, certamente a mais dura, morosa, complexa e de difícil resolução logística, foi arrumada pelas autoridades num grupo a que chamo Depois Logo Se Vê.
No grupo Depois Logo Se Vê estamos quase todos. Como, quando, com quê? Estamos a falar de milhões de pessoas, muitas não detetáveis. Estamos a falar de portugueses que não têm médico de família, porque usam os seguros, visto que o nosso sistema de Saúde é misto, embora, estranhamente, os trabalhadores dos hospitais privados não tenham sido contemplados como trabalhadores da Saúde. As vantagens do sistema misto são, desde logo, evitar a sobrecarga do SNS. Como é possível que os hospitais privados estejam no grupo Depois Logo se Vê? Estes doentes e os que os tratam são excedentários? Deixamos infetar um hospital privado porque não vacinámos os que nele trabalham? Não se percebe, é demasiado confuso. E como foi possível deixar os professores de fora dos grupos prioritários? A escassez é a resposta.
A segunda metade do ano de 2021 vai ser governada pela escassez e pela procura. Num mundo governado por estas leis, raramente as pessoas se portam bem. Os privilegiados vão querer sonegar e desviar vacinas para o grupo. As falsificações e crimes vão abundar. O mercado negro espreita o momento. E isto, acreditando que a Europa vai continuar a distribuir equitativamente as vacinas por todos os países, o que não se verificará se a escassez afetar o eleitorado dos países mais ricos. Li que a Bulgária só teria a população vacinada em 2024. E resta o problema da Hungria e da Polónia, que insistirão em furar as regras de coexistência e acabarão a comprar vacinas à Rússia ou à China, na competição geoestratégica, oriente contra ocidente, ditadura contra democracia, comunismo contra capitalismo, que a vacina instituiu. As leis de mercado vão colidir com os monopólios públicos da vacinação. Tem tudo para correr mal. O Reino Unido vai desregular tudo o que puder desregular e navegar sozinho, sem cuidar dos parceiros que não tem. A vacina deles será, primeiro, para eles. E toda a gente se recorda do episódio dos camiões com máscaras que seguiam para a Suíça, que as tinha comprado, que a Alemanha desviou e açambarcou.
Resta o problema maior. A economia. A manutenção destas restrições durante, pelo menos, mais nove ou dez meses vai destruir definitivamente pequenas e médias empresas, vai destruir mais empregos, vai destruir o que ainda não foi destruído. Mesmo com o dinheiro da Europa, e poucas perguntas foram feitas sobre o preço futuro deste dinheiro, a salvação não chegará a todos. Do mesmo modo, para a saúde mental e física dos portugueses que fazem andar a economia, a salvação não chegará a horas. Esperar parece ser a única, e fraca, consolação. “Isto” ainda não começou.