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terça-feira, 19 de janeiro de 2021

Crónica de um voo para a prisão

De  Galina Polonskaya

Crónica de um voo para a prisão
Direitos de autor  Mstyslav Chernov/Copyright 2021 The Associated Press. All rights reserved
TAMANHO DO TEXTOAaAa

Alexei Navalny e a esposa Yulia foram os últimos passageiros a entrar no avião que fazia o voo Berlim-Moscovo e foram recebidos em apoteose.

"Sou um cidadão russo que exerce o seu direito de regressar ao país. A minha fila é a do número da sorte: o 13", disse à chegada ao avião.

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Durante a viagem, não falou com os jornalistas. Não se lembra, certamente, da viagem de ida, seis meses antes. Estava em coma, depois de envenenado a bordo de outro avião. Foram os médicos alemães que lhe salvaram a vida.

"Os apoiantes de Navalny pedem para fazer selfies com ele e agradecem-lhe o trabalho. Antes, estava a ver desenhos animados com Yulia e parecia bastante bem-disposto", relata a correspondente da euronews Galina Polonskaya, enviada especial a bordo do avião que transportou o opositor.

A passageira à frente do casal ofereceu um ursinho de chocolate a Alexei Navalny, que ainda brincou, perguntando se "estava envenenado". A autora do gesto diz que "as investigações de Navalny e tudo o que ele faz é ótimo para o povo e para o desenvolvimento do país".

A cerca de 20 minutos para a aterragem prevista, o comandante anunciou que não pode aterrar por razões técnicas e Alexei Navalny pediu desculpas a todos pelo sucedido. O avião foi desviado do aeroporto moscovita de Vnukovo, onde estavam reunidos a imprensa e os apoiantes, para o de Sheremetevo, também em Moscovo.

Ao chegar, mostrou-se feliz por estar de regresso e sem medo do que lhe possa acontecer: "Não tenho medo. Vou passar pelo controlo de passaportes com uma disposição perfeitamente normal, vou sair e vou para casa, porque sei que tenho razão. Todos os casos jurídicos contra mim foram fabricados. Não é só a verdade que está do meu lado, os tribunais também. Vão prender-me por um caso no qual um tribunal europeu decidiu a meu favor", disse à chegada.

Vão prender-me por um caso no qual um tribunal europeu decidiu a meu favor.
Alexei Navalny 
Líder da oposição russa

Poucos minutos depois desta declaração, Alexei Navalny foi detido no controlo de passaportes, sem que fosse dada uma explicação. O advogado foi impedido de o acompanhar e Yulia ficou em Sheremetevo, apoiada por uma multidão que gritava palavras de apoio e que estava presente, apesar de o aeroporto inicialmente previsto para a aterragem ser outro.

A maioria dos apoiantes interrogados pela euronews disse que a detenção é uma má notícia, mas não é uma surpresa.

Ventura, tens razão

 

por estatuadesal

(Por Valupi, in Blog Aspirina B, 16/01/2021)

«Se é fascismo querer que os corruptos não voltem ao poder, então somos fascistas.»

Fulano que Rui Rio, Manuela Ferreira Leite, Cavaco Silva e Passos Coelho aceitam como aliado do PSD

Ventura já desfilou de braço no ar, já prometeu prender quem defenda o 25 de Abril e acaba de fazer da luta contra a corrupção uma bandeira do fascismo. «Though this be madness, yet there is method in’t» pois ele apenas leva às últimas consequências o que a direita partidária e presidencial começou a fazer desde 2004, e de forma estratégica e sistemática desde 2009: judicializar a política e politizar a Justiça – usar todos os instrumentos subterrâneos e criminosos para tentar causar danos no PS e obter ganhos eleitorais. A lógica desse caminho, ao violentar o Estado de direito democrático, é evidentemente a de explorar uma nostalgia e um aparato ditatoriais atraentes para uma juliana de indivíduos politicamente alienados.

Nunca saberemos como é que a esquerda iria reagir numa posição simétrica, estando na oposição com impérios de comunicação ao seu dispor, com uma ubíqua indústria da calúnia como arma de arremesso, e com um alvo icónico da direita na linha de fogo por ter cometido inegáveis erros morais e cívicos na sua esfera pessoal (no mínimo dos mínimos). Provavelmente, o discurso contra a corrupção continuaria presente no espaço público, teria era outro sentido e outros protagonistas, pois a política é animalesca nessa fúria de querer destruir os adversários recorrendo às figuras da culpa e da condenação. Porém, olhando para a forma como o PCP e o BE nunca quiseram ao longo da sua história fazer da corrupção um terreno de combate, é também provável que o PS jamais caísse na decadência de trocar o respeito pela Constituição – portanto, pelos valores liberais e da social-democracia tomada em espectro largo – pelo emporcalhamento e atrofio das responsabilidades institucionais e de representação soberana. A Ciência Política tem vasta literatura sobre as diferenças antropológicas e cognitivas na origem dessa diferença de atitude na concepção da moral entre a esquerda e a direita.

Quem usa a corrupção na procura de ganhos políticos nunca a trata com factos, dados, fontes de informação, estudos, objectividade. Pelo contrário, vão buscar as técnicas do sensacionalismo, do boato, da caricatura, da distorção, do apelo ao medo, da exploração da crendice ignara. Modo Octávio Machado, todos sabem do que eles estão a falar, e eles falam de Sócrates, falam do PS, falam do Diabo. Quem ouve, quem lê, também não pretende qualquer objectividade; pretende é foguetório calunioso, circo, autos-de-fé, linchamentos. Se o preço a pagar por esse espectáculo for o aplauso a quem se assuma como inimigo da democracia, dos direitos humanos e da liberdade – ou simplesmente a quem faça campanhas pela prisão de políticos por razões políticas ou com provas indirectas e penas exemplares – há um vasto público disponível para essa compra de impulso. As falhas cognitivas que alimentam as alucinações conspirativas e o ódio irracional são a ideologia neuronal desta turbamulta.

Ventura tem um modo de “fazer política” que foi aprendido no PSD de Passos Coelho, esse mítico líder que conseguiu afundar Portugal para ir com o seu sócio Relvas fazer negócios da China durante uma legislatura. Ventura tem também um acordo com a elite cavaquista e passista que lhe dará o que procura se a direita obtiver maioria no Parlamento. Todos os votos que recolher, nas presidenciais e nas legislativas, serão votos neste projecto. Um projecto que consiste em destruir a Constituição de Abril e em boicotar a racionalidade civilizacional.

Sim, pá, isso é uma boa beca parecido com o fascismo.

Pobreza e desigualdade

Posted: 18 Jan 2021 03:50 AM PST

 


«Nas festas foi um tempo de se falar dos pobres. Epidemia, mais pobres, mais desigualdade. Vão aumentar. Ora, se há pobres é porque há desigualdade. Nenhum país é só de pobres ou só de ricos. É o “sistema”, dizem. Se há pobres há insegurança alimentar, más condições de habitação. Estas situações são causa de vida sem saúde e de mais anos com doença. E se há pobres e desigualdades é porque há muito ricos, para chamar as coisas pelos nomes. Estes não encontram formas de repartir, no mínimo aumentando os salários. É o “sistema” da concorrência, dizem. Pois então é contra este “sistema” que temos que lutar. Porque a pobreza e a desigualdade não podem ser eternas. 

Em todos os países estudados há desigualdade, mas é diferente de uns para outros. Com uma constante: quanto mais desigualdade, mais pobreza. Mesmo nos países menos desiguais, os escandinavos, social-democracia real, os 10% mais ricos detêm 25% do rendimento do trabalho e do capital, enquanto 50%, os mais pobres, detêm 30%. Desigual, mas menos mal, se tivermos em conta que a saúde, a educação e outros bens públicos são universais e gratuitos. Mas se formos para o farol do capitalismo, os Estados Unidos da América (EUA), a nação de Reagan e de Trump, sempre grande, polícia do mundo, autoritária, a vender armas e a fazer guerras, os 10% mais ricos detêm 60% do rendimento do capital e do trabalho e 50%, que são os mais pobres, detêm 15%. Estreitando a divisão em percentis, nos EUA, um país com 260 milhões de adultos, 1% detém o principal da riqueza e os outros têm 99%, slogan do movimento Occupy Wall Sreet. Mas 1% são 2,6 milhões de pessoas! É muita gente com muito poder – financeiro, político, cultural, comunicacional, militar. E chamam a isto o apogeu da democracia! 

É a esta gente que o Reino Unido e o resto da Europa, nós próprios, temos buscado inspiração. Das suas agências ou afins ouvimos notícias, as suas redes de comunicação mandam em nós, vemos os seus filmes, a agência de medicamentos inspira as directivas europeias. A cultura da desigualdade tem sido aquela que nos domina. A Europa é menos desigual, mas tem sido o suficiente para ter pobreza bem visível. Os países menos desiguais têm menos pobreza, mais distribuição de rendimento. Mas globalmente, na Europa, 60% do património nacional pertence a 10% da população e 50%, que são os mais pobres, detêm 5 a 10%. Em Portugal melhorou, mas em 2017 estava com um nível de 17,3% da população na pobreza, mesmo depois das transferências sociais serem feitas (INE, 2017). Uma grande parte desta população (10%) são pessoas que trabalham. Se formos ver os Açores, são 32% os que estão abaixo do limiar da pobreza. Serão mais agora que lhes vão tirar as transferências sociais, decisão da nova coligação parlamentar. 

Estes números crescerão muito em 2020, em todos os países, com os novos pobres da pandemia. As desigualdades também. Nos países onde já foram estudadas, os ricos estão mais ricos. O Institute of Policy Studies dos EUA publicou: as fortunas combinadas dos 647 mais ricos do país cresceram quase um milhão de milhões (1 bilião) entre Março e Novembro de 2020. Em Portugal estamos a falar de um limiar de pobreza calculado em 501€. Mas quem recebe o salário mínimo não está rico com certeza. Quanto aos mais velhos, há 1.457.205 pensionistas a receberem uma pensão abaixo do salário mínimo. A pensão mínima da Segurança Social é de 275,28€ e a da Caixa Geral de Aposentações é de 257,28€. O aumento de 10€ para as pensões abaixo de 658,20€ aprovado pelo Orçamento Geral do Estado de 2021 talvez desse para comprar alguns iogurtes e fruta, poucos, durante um mês, mas serão talvez para acrescentar aos pagamentos da água, da electricidade e do telefone. 

Não é de estranhar que 10% da população tivesse em 2015 insegurança alimentar, dificuldade de acesso a alimentos seguros e nutritivos, que permitam uma vida saudável, e que cerca de 50% não comam vegetais e fruta suficientes (Carla Lopes e col., Inquérito Nacional de Alimentação e Actividade Física). Quanto à habitação, em Portugal há 4,1% de pessoas com privação severa das condições de habitação (Eurostat, Observatório das Desigualdades, 2017). Os critérios para considerar “severa” são muito apertados e não se sabe até que ponto estão incluídos os bairros ilegais. Com estas condições de rendimento, de alimentação e de habitação, os pobres têm mais doenças, mais obesidade, mais diabetes, mais doenças cardiovasculares, mais pneumonias, maior mortalidade. 

Claro que o aspecto exterior das famílias foi mudando. Uma casa de família pobre e sem comida na mesa, mas com sofá, televisão e as pessoas vestidas e calçadas, pareceria rica, aos olhos de observadores do Barreiro onde nasci e vivi. Os bens e o consumo evoluem, mas a pobreza e a desigualdade também. A crise vai agravar tudo. Na anterior crise financeira, 2008 a 2015, as consequências foram graves: o SNS gastou menos 540 milhões de euros em medicamentos e 15,1% dos utentes diziam não os ter adquirido por falta de dinheiro, cerca de 9% não foram à urgência por dificuldades económicas, 5% por falta de dinheiro para os transportes; fizeram-se menos cinco milhões de consultas nos Centros de Saúde entre 2008 e 2015, as camas hospitalares decresceram entre 2010 e 2014 (Observatório Português dos Sistemas de Saúde, Relatório da Primavera 2015). Quanto ao que se passava nos lares, o presidente da União das Misericórdias Portuguesas, Manuel Lemos, era uma voz a pregar no deserto. Durante a crise aumentaram as doenças mentais, as anemias por falta de ferro, as doenças respiratórias. Não foram estudadas as carências nutricionais no sangue, mas deviam ter sido. Perante este quadro dramático levantou-se o movimento “Que se lixe a Troika”, mas não houve tumultos, revoltas desordenadas, pedras, barricadas… Mansamente caminhámos através das cidades, em multidão. Mas não houve mudança, pelo menos imediata. Quanto às vozes que agora se levantam diariamente, nessa altura estiveram caladas. 

E se há desigualdade é porque há ricos. As 25 famílias mais ricas de Portugal detinham em 2018 19 mil milhões de euros, o que equivalia a 10% do PIB. São elas, concentradas para abreviar, a Corticeira Amorim, a Jerónimo Martins e sociedades ligadas, o Grupo José de Mello, a Sonae, o Grupo Simoldes, a Alves Ribeiro Construção, a Visabeira, a Portucel, o Grupo Pestana, o Violas SGPS, a RAR, a Mota Engil, Mário Ferreira, a Farfecht, a Salvador Caetano, a Nutrinveste, a Lusiaves, a Out Systems, a Ascendum. Sabe-se que algumas destas sociedades põem o seu dinheiro em projectos não rentáveis, com benefício público. Calcula-se também que algumas terão gestos de solidariedade importantes. Também não se trata de “diabolizar” os ricos, de forma primária. Trata-se de, mais uma vez, pensar no “sistema”. 

Os possuidores de tanto património, para além de o colocarem em offshores, portanto numa nuvem sem impostos, que lhes deve dar uma sensação de poder, não têm onde gastar tanto dinheiro. Acumulam. A acumulação agrava a desigualdade. Rousseau dizia que a igualdade é uma aspiração inata da alma ou do coração dos humanos. Será? O ímpeto da igualdade fez parte dos movimentos cristãos iniciais, mas bloqueou quando se tornou religião do Estado e quando o proselitismo se transformou em massacres. Passou a religião e liturgia dos ricos e foi necessário que passassem séculos para novos profetas tentarem recuperá-la como religião dos pobres. O ímpeto da igualdade foi também motor das revoluções que triunfaram numa parte do mundo e foram a esperança dos deserdados e humilhados. Mais uma vez, como catecismo do Estado, a esperança foi morta e massacrada, sem respeito pelos seres humanos. 

E nós? Será que o ímpeto inato da igualdade morreu em nós? Não bastam esmolas nem remendos. A cada um a responsabilidade de lutar pela igualdade. Porque há desigualdade, há pobreza, há crise e há um mundo natural a ser destruído em nome do lucro.» 

Um vergonhoso ataque à liberdade de imprensa e o monstro que ela alimentou

 


por estatuadesal

(Daniel Oliveira, in Expresso Diário, 18/01/2021)

Daniel Oliveira

Num mesmo processo, uma procuradora investiga uma fuga de informação onde ela poderia ser uma das suspeitas e dois jornalistas são vigiados pela PSP, sem a autorização de um juiz, por estarem a cumprir o seu dever deontológico. Pôr em causa a proteção das fontes é pôr em causa o artigo 38º da Constituição. Quem, em troca de cachas, andou a transformar magistrados em heróis justiceiros, aos quais nenhum limite deve ser imposto, teve a oportunidade de conhecer o monstro que ajudou a criar.

Sempre fui e continuarei a ser crítico dos julgamentos mediáticos, que substituem a sentença em tribunal pela sentença nos jornais. E continuarei a criticar a confusão entre investigação e receção de peças processuais, sem qualquer cruzamento de fontes. Recuso-me a chamar a isso jornalismo de investigação. E sou, como saberão, muitíssimo crítico da forma como se faz este tipo de jornalismo no “Correio da Manhã”.

Mas não é isto que está em causa na inacreditável investigação a jornalistas, com recolha de imagens dos seus movimentos por parte da PSP e acesso às suas contas bancárias. O que está em causa, para além do ataque à liberdade de imprensa, protegida constitucionalmente, é o Ministério Público usar os seus poderes para benefício próprio e, mais grave ainda, em descarado conflito de interesses. Vamos por partes, tendo como guião a completa notícia do “Observador” que depois foi completada pela da própria “Sábado”.

Em março de 2018, Henrique Machado, que era editor do “Correio da Manhã” (hoje está na TVI), e Carlos Rodrigues Lima, subdiretor da “Sábado”, foram os primeiros a anunciar a detenção pela PJ de Paulo Gonçalves, o braço direito de Luís Filipe Vieira, no âmbito do caso e-toupeira. Perante esta fuga de informação, relativamente banal quando comparada com o que diariamente chega aos jornais e televisões de investigações em curso, o Ministério Público decidiu abrir uma investigação.

A primeira perplexidade é em relação a quem dirige a investigação: Andrea Marques, uma das magistradas que participou nas diligências no caso e-toupeira. Ou seja, uma das possíveis suspeitas de passar informação. Que teve, para dirigir o caso, de ser automaticamente excluída dessa suspeição. E foi ela que pediu esclarecimentos ao seu colega de investigação, Valter Alves. Quando lhe solicitou a lista dos intervenientes no inquérito, recebeu quatro nomes do Ministério Público. Entre eles, estava o de quem lhe dava a informação e o dela própria. Tudo em casa, portanto. De resto, eram pessoas do TIC, da PJ e do Instituto de Gestão Financeira e Equipamentos da Justiça. Excluída a sua própria casa, restavam a PJ e os tribunais. Não bastava o Ministério Público investigar-se a si mesmo, dispensando-se automaticamente dessa investigação, escolhia uma magistrada que poderia ser suspeita para tratar do caso.

DCIAP, Direção Nacional da PJ e à Unidade Nacional de Combate à Corrupção foram alvos de diligências da procuradora Andrea Marques. Foram apreendidas caixas de e-mails, discos rígidos e telemóveis de vários elementos da PJ, incluindo do topo de hierarquia, no que tresanda à utilização de meios de investigação para uma guerra corporativa. A investigação acabou por chegar a um coordenador da PJ. O diretor da PJ, Luís Neves, acabou por dar conta de que alguma da informação apreendida podia estar classificada e protegida pelo segredo de Estado.

Temos esperado pacientemente por todos os inquéritos internos sobre a permanente fuga ao segredo de justiça no Ministério Público. Nunca se chega a nada, nunca alguém é realmente responsabilizado. Agora foi. Porque a fuga terá vindo de outro lado e isso o Ministério Público não tolera. E usa os instrumentos que a lei lhe dá para pôr na ordem todos os que, fora da sua corporação, tenham o comportamento que internamente é tolerado (ou mesmo promovido).

Por fim, o mais grave. Para provar a fuga de informação, os dois jornalistas foram vigiados pela PSP, com recolha de imagens suas ao longo de cerca de dois meses – um procedimento que não teve validação de um juiz – e levantado o sigilo bancário de um deles, apesar de não existir qualquer suspeita de corrupção. O DIAP diz que não era necessária autorização de um juiz, a Ordem dos Advogados e os juristas desta área defendem que sim. A desproporção de meios para a natureza do ilícito é evidente. Ordem dos Advogados, Sindicato dos Jornalistas e Entidade Reguladora para a Comunicação Social mostraram o seu repúdio por esta violação do direito de proteção das fontes.

A liberdade de imprensa tem proteção constitucional. E a proteção de fontes é garantida pela Lei de Imprensa e pelo Código Deontológico dos jornalistas. E pôr em causa a proteção das fontes é pôr em causa o artigo 38º da Constituição da República.A quebra deste sigilo não pode acontecer por vigilância policial, sem qualquer intervenção de um juiz. Isso não impede os que têm de defender o segredo de justiça de agir, investigando aqueles a quem esse segredo é confiado. É um atentado à liberdade de imprensa Ministério Público pôr polícias a vigiar jornalistas que fazem o seu trabalho, quando estes cumprem as regras que a lei e o código deontológico lhes impõem. E foi isso que aconteceu.

Como diz João Garcia, o problema está na lei, que impõe aos jornalistas o que a sua profissão e o seu condigo deontológico só podem recusar. Investigar um jornalista para conhecer as suas fontes é o mesmo que investigar um padre, um médico ou um advogado para desvendar um segredo profissional e chegar ao autor de um crime. Sabemos o que vem depois: escutas a jornalistas e, sem qualquer capacidade para proteger fontes, fim da liberdade de imprensa. João Garcia remata com o que defendo há anos: “A verdadeira hipocrisia é haver segredo de Justiça para tudo quanto interessa à sociedade.”

No mesmo processo, uma procuradora investiga uma fuga de informação de que ela poderia ser uma das suspeitas e dois jornalistas são vigiados pela PSP por estarem a cumprir o seu dever deontológico, que a lei protege. Tudo isto é inaceitável. Mas tenho de deixar uma farpa: quem, em troca de cachas, andou a transformar magistrados em heróis justiceiros, aos quais nenhum limite deve ser imposto, teve a oportunidade de conhecer o monstro que ajudou a criar. Estou, aliás, curioso para ler como alguns jornalistas que têm defendido poderes quase ilimitados para o Ministério Público explicarem porque é que os devemos (e devemos) limitar em casos como estes. Como conseguem explicar que, quando chega à liberdade de imprensa, há valores acima da eficácia da investigação.

Se dúvidas houvesse sobre a cumplicidade de alguma comunicação social com aqueles de que inevitavelmente acabaria por ser vítima basta olhar para a capa da “Sábado”, onde esta vergonhosa perseguição é denunciada. Nela, está a atual Procuradora Geral da República. Pode dizer-se que o processo continuou o seu estranho andamento quando Lucília Gago já era PGR. Mas ele iniciou-se com Joana Marques Vidal, como o próprio artigo da revista reconhece. Na capa, lê-se: “Pela primeira vez em democracia, o Ministério Público, liderado por Lucília Gago, mandou seguir e fotografar jornalistas e vasculhou as suas contas bancárias.” Se a segunda parte parece ser verdadeira, a primeira é objetivamente falsa. O Ministério Público que “mandou seguir e fotografar jornalistas” em abril de 2018 (data que a próprio “Sábado” nos dá) era liderado por Joana Marques Vidal. Lucília Gago só tomou posse em outubro.

Que as vítimas desta perseguição queiram, na capa da sua revista, esconder as responsabilidades da anterior procuradora apenas nos recorda até que ponto a comunicação social se deixou envolver nas guerras corporativas da justiça. Faz parte delas, aliás. E isso também ajuda a explicar o monstro. Quem não é escrutinado com independência deixa de conhecer os seus limites.

#VermelhoemBelém

Posted: 17 Jan 2021 03:58 AM PST



 

«Os símbolos não são coisa pouca para a humanidade: é a capacidade de criá-los, de representar o real através deles, que nos distingue dos outros animais. Num símbolo condensa-se, em determinados momentos, toda uma história, neles se sintetiza um processo, um conflito, com eles se mobiliza uma causa. São usados como arma para ofender, para oprimir, para marcar, para estigmatizar. São reivindicados como expressões de luta, de libertação, de resistência. São disputados nos seus significados. 

Não é de agora que o batom vermelho está nessa liça. No século XVIII, havia ainda quem considerasse que pintar a cara era “obra do diabo” e sinal de “feitiçaria” e, no parlamento britânico, um deputado chegou mesmo a propor uma lei contra as mulheres que usavam batom. O medo masculino de uma feminilidade não tutelada fez com que, nas narrativas conservadoras desses tempos, os lábios coloridos de vermelho fossem codificados (e publicamente censurados) como a manifestação de uma moral duvidosa ou de uma heresia face aos bons costumes. Na realidade, o que assustava os machos da época (e porventura os de hoje) era que ele pudesse ser um sinal de independência e de autonomia das mulheres sobre o seu corpo. 

Não será por isso muito surpreendente que, na passagem do século XIX para o século XX, as sufragistas tenham adotado o batom vermelho como símbolo de rebelião. Elas, que se atreviam a lutar por essa ideia escandalosa de que as mulheres – e não só os homens – deveriam ter o direito ao voto, carregavam também nos lábios o batom vermelho que chocava os homens do poder e desafiavam o monopólio masculino da política. Depois disso, em outras épocas, o mesmo símbolo se fez arma de resistência. Contra o ódio público que Hitler lhe tinha, usar batom vermelho (cuja produção nos países Aliados, ao contrário de outros produtos, não foi interrompida durante a II Guerra Mundial) era também uma afirmação contra o fascismo. 

E aqui chegados, em 2021, de novo o vermelho assusta e perturba os que têm medo das mulheres sem medo. Das que desafiam, pelas causas que defendem, o sistema patriarcal e a sua estrutura de desigualdade. Das que ocupam os lugares da política ao arrepio da lógica dominante da competição, das que não se adaptam nem conformam à substituição do debate por uma espécie de concurso de varonia ou de campeonato de boçalidade, das que são avaliadas (de uma forma que os homens não são) a partir de julgamentos sobre a sua aparência ou frivolidade que dizem sempre muito mais dos avaliadores do que das avaliadas. 

Marisa Matias sabe bem o que é lidar com a cultura do autoritarismo marialva – e fazer-lhe frente. Ela é a criança de Alcouce que, contra todas as probabilidades sociológicas e por conta de um Estado Social de que se orgulha e pelo qual luta, chegou onde muitos gostariam que, ainda hoje, pessoas da sua origem e condição não chegassem. Marisa, a “campeã do clima” no Parlamento Europeu, a deputada reconhecida pelo seu trabalho em defesa da saúde pública ou contra os paraísos fiscais, a pessoa que, há mais de dez anos, se tem empenhado em dar visibilidade ao trabalho invisível das cuidadoras informais, está habituada a lutar contra a indiferença e a enfrentar podres poderes, em Portugal e noutros países. 

A onda de solidariedade com Marisa Matias que se tem levantado desde ontem é, pois, mais do que merecida. Através dela vemos o que temos de melhor em nós próprios. Os lábios pintados, de mulheres e homens solidários de tantas opiniões, são muito mais que lábios pintados. São uma afirmação democrática e uma arma contra o ódio. Que dessa vaga faça parte, entre tantas, Ana Gomes, mulher cuja fibra de combate e a integridade de princípios são indiscutíveis, só admira quem não conheça ambas. Nenhuma delas hesitaria em mostrar que é na cooperação e na solidariedade que se faz a diferença contra todos os autoritarismos. Nessa atitude, há uma lição maior nesta campanha, com um alcance que vai além de aritméticas eleitorais. 

Para mim, a Marisa é também esta lição. É essa força maior que faz diferença na política, agora e depois. Contra a boçalidade, o orgulho no que somos. Contra o extremismo, a radicalidade dos direitos humanos. Contra o marialvismo, a capacidade de atear a força da solidariedade feminista. Contra as desigualdades, o bem comum, a justiça social e a justiça climática. É isso tudo que representam os lábios vermelhos de Marisa. E eu quero #VermelhoemBelém.