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sábado, 23 de janeiro de 2021

Como Ventura usou o imaginário nacionalista do Estado Novo e imitou Donald Trump

José Fernandes

A postura e o discurso do candidato presidencial e líder do Chega não são novos. “Também como o Estado Novo, Ventura centrou-se na Idade Média”, o que lhe “permite colocar-se ao lado de figuras maiores e incontestadas da história nacional”, diz ao Expresso uma historiadora. Daí as aparições de D. Afonso Henriques ou Nuno Álvares Pereira na campanha. Um sociólogo comenta: “São estratégias, mecanismos retóricos identificados com uma nova internacional radical”, que teve em Trump o seu exemplo mais bem-sucedido

22 JANEIRO 22:23

Hélder Gomes

Hélder Gomes

Jornalista

José Fernandes

José Fernandes

Fotojornalista

André Ventura visitou o túmulo de D. Afonso Henriques na Igreja de Santa Cruz, em Coimbra, e disse que o primeiro rei de Portugal, “o pai da nacionalidade”, representa a sua luta enquanto líder do Chega e candidato presidencial. Perante o maior protesto que teve de enfrentar na sua campanha, com cerca de uma centena de ativistas antifascistas, afirmou ter “o dever histórico de dizer que nenhuma minoria ruidosa” poderia impedi-lo de “salvar Portugal”. O tom salvífico de homem providencial, que se ancora em figuras do passado para alavancar uma refundação que defende ser necessária, foi uma constante nestas duas semanas de campanha. D. Afonso Henriques, o castelo de Guimarães e D. Nuno Álvares Pereira foram alguns dos símbolos que utilizou na sua propaganda.

“Tal como movimentos da direita autoritária conservadora do século XX, André Ventura procura legitimar-se através da História. Ao revisitar locais e figuras do passado, Ventura procura inscrever-se na História nacional, ou seja, apresenta-se na continuidade do que lhe antecedeu, como se fosse o seu natural seguimento”, comenta ao Expresso Elisa Lopes da Silva, historiadora do Estado Novo no Instituto de História Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa (UNL). “De resto, tal como outras direitas autoritárias mais recentes na sua relação com o passado guerreiro da nação: é um gesto comparável ao de Jean-Marie Le Pen em relação à figura da Joana d’Arc”, exemplifica.

Ventura junto a túmulo de D. Afonso Henriques, em Coimbra

Ventura junto a túmulo de D. Afonso Henriques, em Coimbra

 

José Fernandes

Para a investigadora, a ressonância com o Estado Novo é evidente. Ventura fala constantemente numa revolução falhada, em 46 anos de desgoverno, como se a transição para a democracia tivesse sido apenas pautada por falhanços. “Também como o Estado Novo, Ventura centrou-se na Idade Média, quando se dá a formação de Portugal. Tal permite colocar-se ao lado de figuras maiores e incontestadas da História nacional, acima das dissensões políticas”, compara. “Mais importante para o seu discurso, a invocação e uso da figura de D. Afonso Henriques e do castelo de Guimarães permitem-lhe encenar um discurso de ‘refundação’ do regime”, acrescenta. E isto nada mais é do que a repetição do “gesto histórico do Estado Novo”. “Assim, a proposta política de corte com o passado [da III República] é naturalizada”, sustenta.

Após “uma revolução que fracassou em Portugal”, o candidato clamou em campanha por “uma nova revolução, a revolução do voto, da democracia, de verdadeiramente dar a voz àqueles que são o cerne deste país e não à minoria que vive à conta da maioria que trabalha”. E foi reagindo aos protestos nas várias paragens que foi fazendo pelo país com um discurso ora defensivo, ora provocador. “Se acham que é fascismo querer que os corruptos não voltem ao poder, então, sim, nós somos fascistas”, disse a certa altura, descrevendo-se como “o político mais ameaçado e perseguido desde o 25 de Abril”.

“NACIONALISMO HISTÓRICO EXCLUSIVISTA” E “EXCLUSÃO DO OUTRO EM NOME DA NAÇÃO”

“O uso de figuras guerreiras medievais, como D. Afonso Henriques ou Nuno Álvares Pereira, foi comum a nacionalismos conservadores. O exemplo da fundação da nacionalidade de ‘espada em riste’ contribui para a sua retórica guerreira e violenta, legitimadora dos seus propósitos declarados de ‘reconquista de Portugal’”, avalia a historiadora da UNL. E isso permite ainda apresentar-se “como uma figura messiânica”. O próprio afirmou que ele e os seus apoiantes tinham diante deles “uma oportunidade que muitos dos nossos antepassados queriam ter tido, de derrotar este sistema corrupto e inadequado”. “E foi a nós que a Providência permitiu transformar este movimento numa oportunidade de transformar Portugal”, sublinhou.

Ventura tira ‘selfie’ junto à estátua de Nuno Álvares Pereira, no exterior do Mosteiro da Batalha

Ventura tira ‘selfie’ junto à estátua de Nuno Álvares Pereira, no exterior do Mosteiro da Batalha

 

José Fernandes

Ventura atribuiu ainda a sua convicção e a dos seus apoiantes à “força dos genes que temos”, ao “espírito de Portugal que nos percorre”. Do castelo de Guimarães disse “ecoar a voz” que lhes diz “não desistam”. “E perante este castelo eu me ajoelho em memória de Portugal”, dramatizou, sem verdadeiramente se ajoelhar. Se, por acaso, como aconteceu em Leiria, chovia, também isso era aproveitado para uma extrapolação messiânico-nacionalista: “A chuva que cai hoje do céu é sinal de que somos, estamos e continuaremos abençoados” e as eleições de domingo são as eleições “do bem contra o mal”. Só ele – e não qualquer outro dos candidatos a Belém – está “do lado certo da História”. “Eu sou a voz do património dos portugueses de bem e trago comigo todas as histórias de Portugal”, chegou mesmo a declarar.

Numa ação de campanha, o candidato do Chega depositou uma coroa de flores junto à escultura equestre de Nuno Álvares Pereira, no exterior do Mosteiro da Batalha. O nobre e general do século XIV, também conhecido como o Santo Condestável, foi crucial durante a crise de 1383-1385, defendendo a independência de Portugal face a Castela. Ventura descreveu-o não apenas como “um estratega militar”, mas também como “um ícone da matriz civilizacional portuguesa”. O candidato constrói, assim, “um nacionalismo histórico exclusivista”, elegendo “um inimigo externo (os espanhóis, na alusão à Batalha de Aljubarrota ou na ação de D. Afonso Henriques)”. E deste modo edifica “ideologicamente uma extrema-direita fundada no combate violento e na exclusão do Outro em nome da nação”, remata a historiadora ouvida pelo Expresso.

“A ALVORADA, O RENASCER QUE PORTUGAL PRECISA”, CLAMA VENTURA

Mas Ventura vai mais além, galgando as fronteiras da Península Ibérica e tentando proteger o espaço europeu do que descreveu como “a invasão crescente e progressiva de quem não respeita a nossa identidade, quer viver à conta dos nossos impostos e continuar a destruir a democracia europeia”. “A nossa luta na Europa também é uma luta pela nossa matriz civilizacional, que não podemos ignorar. Defendemos uma Europa de matriz cristã”, balizou. À sua volta não vê mais ninguém capaz de assumir este caderno de encargos: “Estamos no meio de uma luta épica em que enfrentamos sozinhos um sistema inteiro”.

Uma ronda rápida por apoiantes, militantes e presidentes de distritais reforça esse caráter pretensamente único e messiânico de que Ventura se diz investido. Ele “é o único que pode mudar Portugal, o único que defende a soberania nacional, a segurança, a população mais desfavorecida, o único que nos dá garantias de que vamos mudar”, assegurou ao Expresso um militante. Um militante entoou em Guimarães uma canção que comparava Ventura com “o Jesus da Galileia. E a presidente da distrital do Chega em Santarém, Manuela Estêvão, regozijou-se ao perceber que a sede ficaria “à frente do São Francisco”, “símbolo de humildade, fraternidade e dedicação a uma causa”.

Ventura advertiu que “caminhamos sorridentemente para uma ‘venezuelização’ do regime, para uma tomada de poder ditatorial pela extrema-esquerda, sem que ninguém se preocupe”. Ninguém, claro, tirando ele próprio, o autoproclamado “homem do leme” que, ainda assim, não esquece a estrutura que o apoia e acompanha. “Esse homem do leme será certamente a IV República que precisamos para este país”. No “berço da nossa nação”, disse que a sua candidatura representa “a alvorada, o renascer que Portugal precisa”. “Desta escuridão nascerá a luz de um novo país, capaz de se olhar ao espelho, de se ver com dignidade, de voltar a olhar para este castelo e dizer que se orgulha de ser português”, proclamou.

Comício de Ventura num coreto em Santarém

Comício de Ventura num coreto em Santarém

“UM FASCISTA DOS NOVOS TEMPOS”

Um país do ‘orgulhosamente sós’, do ‘Deus, Pátria e Família’? A historiadora Elisa Lopes da Silva não tem dúvidas de que Ventura repete “gestos históricos do Estado Novo”. Ele insiste na necessidade de “uma nova reconquista”, tomando o castelo de Guimarães como “o símbolo do caminho” que farão até domingo. Graça Nazaré, pensionista de 67 anos, foi uma das manifestantes do protesto que o recebeu em Vila Real e confessou-se “assustada”. “Não porque ele seja um fascista do tempo da outra senhora, mas porque é um fascista dos novos tempos”, distinguiu. “O autoritarismo toma formas diferentes conforme as épocas e ele pertence a esta época. O grito final é esta espécie de desbragar de ideias que nem sequer são muito novas: aproveitam algumas do passado e tomam algumas formas do presente”, avaliou a manifestante.

“Hoje a noite pode ser escura mas acordaremos numa nova manhã”, promete Ventura. Enquanto “a noite que o socialismo nos trouxe nos ensombra cada vez mais”, o exército do Chega aumenta “dia após dia, engrossando de comunistas a católicos, de todas as raças, etnias e religiões”, assegurou ainda, antes de anunciar serem “o Exército Popular Português”. “A noite do dia 24 tem de ser nossa, tem de ser deste exército popular que se levantou para salvar Portugal. O dia 24 de janeiro será o nosso 25 de novembro”, disse ainda.

Declarações carregadas de simbolismo de uma figura que assume querer romper com o sistema que se iniciou a 25 de Abril de 1974. Dos protestos vai-se defendendo assim: “Quando gritarem lá fora, de forma absurda, ‘fascismo nunca mais’, vamos dizer que ‘socialismo nunca mais’ porque foi esse que destruiu e está a destruir Portugal”.

Ventura ajoelha-se diante do túmulo de D. Afonso Henriques

Ventura ajoelha-se diante do túmulo de D. Afonso Henriques

 

José Fernandes

O líder do Chega está “no mesmo caminho” de tantos outros antes dele, “a tentar identificar um eleitorado e perceber como se pode constituir em alternativa por via da expressão eleitoral”, captando “grupos prováveis de apoio que podem dar-lhe votos”. Além da “hiperbolização da linguagem”, deixa-se fotografar na igreja ao lado da mulher, apresentando-se como “homem de família e em missão” para criar uma estética de figura “obstinada mas reverente e temente”. A “defesa de valores que devem ser mantidos e defendidos” e da “pureza nacional” permite-lhe alargar as bases do eleitorado e “entronca bem na cartilha que está a utilizar”, avalia Nuno Dias.

“UMA LEGITIMAÇÃO INTERNACIONAL DE DESRESPEITO DAS REGRAS DE CIVILIDADE”

Ao admitir que não será o Presidente de todos os portugueses, está a produzir “um dano institucional”, na medida em que “ataca a vocação universalista dos direitos constitucionais”. Ao mesmo tempo que abre “uma brecha para que a legitimidade das instituições seja questionada”. Tal como “Trump o faz, criando a dúvida”, acrescenta o sociólogo. “Não há uma necessidade de correspondência com a verdade, o que vem também dos primeiros movimentos fascistas. Mussolini tem uma agenda muito ligada à questão eleitoralista, é errático do ponto de vista ideológico, não há uma linha convergente, não é assumidamente nada no sentido em que pode facilmente adaptar-se a um descontentamento identificado que lhe permita captar a adesão popular”, recorda.

“Há uma legitimação internacional de desrespeito das regras de civilidade nos debates políticos e na linguagem de comício, habitualmente mais emotiva e agressiva. A forma como caracteriza os outros candidatos é muito brejeira, muito grosseira, da qual não se retrata, tal como Trump”, diz ainda o sociólogo ouvido pelo Expresso. Nuno Dias deixa um alerta: “Ventura ainda representa uma oposição ao sistema criada no interior do sistema, mas que facilmente constituirá espaço de produção de novos atores vindos de fora do sistema”. “A necessidade de criar bases de representação a nível nacional pode fazer entrar elementos mais ligados a sectores com menos presença e colonizar espaços marginais. Esse fantasma está presente desde a sua fundação: grupos extremistas, ligados a atividades criminosas, etc. Há aqui um conjunto de relações que podem ser menos escrutinadas e dar, de facto, abertura a uma subversão de uma infraestrutura institucional e constitucional”, adverte ainda.

Maria Pinheiro, assistente social

Maria Pinheiro, assistente social

 

José Fernandes

A assistente social Maria Pinheiro, de 27 anos, tirou-lhe o ‘retrato’, enquanto segurava um cartão onde se lê: “Um candidato de ‘bem’ que NÃO nos representa”. Ventura “vem falar de problemáticas complexas com soluções simplistas para encher o olho a simpatizantes e eventuais votantes”, disse ao Expresso. Daqui a dois dias se verá quantos foram convertidos. 

sexta-feira, 22 de janeiro de 2021

Teremos sempre o Brasil


por estatuadesal

(Clara Ferreira Alves, in Expresso, 22/01/2021)

Clara Ferreira Alves

Governa-se pela autoridade e o exemplo. Nem uma coisa nem outra abundam por um país onde orneia a indisciplina. A mensagem principal do Governo e do Presidente foi uma, eu sou igual a vocês e estamos todos no mesmo plano de autoridade e de hierarquia, ou melhor, se falamos de hierarquia vocês mandam em nós porque é isto a democracia e no tempo da informação real em perda de tempo útil e da opinião antidemocrática como expressão de civismo e de liberdade, eu baixo-me para vos elevar, cidadãos titulados do século XXI. Começa-se na cataplana em família no programa da manhã para caçar votos e nas operações de propaganda que acabam com o momentoso primeiro plano da primeira vacina com ministra em direto, este é o dia da esperança coletiva, e acaba-se a falar pela milésima vez ao país num apelo ao sobressalto cívico com o país a mudar de canal. Olha, lá está o morcão do Costa, a pedir que nos portemos bem.

Dá-me aí a trela que comprei no hipermercado, vou à rua fingir que passeio o cão que não tenho. Quem leva amanhã o carro? Vou dar uma volta e digo que é para levar os putos que não tenho ao colégio. É por estas bravatas da batota, a que achamos uma graça infinita e que tomamos por talento definido na linguagem portuguesa e lusofónica como chico-espertismo, que as coisas estão como estão. Todos temos culpas nisto. Esta medalha olímpica para infeção e morte.

E sabemos o que vem a seguir, o suspiro pela ordem e pela autoridade, a nostalgia da repressão. Desde o princípio, o Governo instalou sistemas paralelos, o dos cidadãos responsáveis e o das exceções. Houve tantas exceções, e tantos maus exemplos, não vamos agora de máscara comemorar o 25 de Abril, o Grande Prémio de Portimão tem de realizar-se, e o de moto, a final da Champions é um prémio aos trabalhadores da saúde, os ingleses infetados são todos bem-vindos apesar de nós não sermos bem-vindos por lá e se for preciso arranja-se um corredor só para eles no aeroporto, o 1º de Maio é sagrado, a Festa do “Avante!” e o dia 13 em Fátima também, o vírus está controlado no milagre português, temos de ir gastar dinheiro e podemos tirar a máscara, a vacina vem aí com a “bazuca” ao colo e vamos regressar à normalidade. Assim, torna-se difícil explicar que o confinamento, o duro, o brutal, o que nos retira todos os direitos e liberdades, o que nos arruína física e moralmente, economicamente, vai ser a única solução. Isso e a repressão, com multas pesadas, a única sanção que os chicos-espertos abominam.

Parece que a GNR e a PSP, que combatem entre si para ver quem escolta as vacinas, se fizeram escassas nos últimos dias. Milhares de carros a circular na cidade e fora dela ao fim de semana, grupos de pessoas nos parques e paredões com a máscara no queixo onde ela não faz falta, e um raro polícia para os dispersar e multar. Multar grosso, incluindo os da trela solta sem animal lá dentro. Se eu andar a 65 quilómetros onde há radares de 50 quilómetros levo logo com a multa em cima, mas se andar por aí a desafiar a autoridade e a desrespeitar os trabalhadores da saúde, sou uma pessoa com mérito e faço um filminho para o Facebook. Se eu reunir 160 amigos para um jantar sem distância e sem máscara num restaurante que devia estar fechado por lei sou um mau cidadão, mas se for o candidato presidencial Ventura, a bandalheira é um exercício dos meus direitos cívicos. E ninguém lhe deita a luva da autoridade.

Junte-se a isto a tradicional desorganização nacional e a demagogia, o tal terror que os políticos têm da plebe romana, e assiste-se às filas para votar antecipadamente, horas ao sol, melhor que ficar em casa, onde os ministros também esperam porque estamos todos no mesmo plano. Um país onde a propaganda das vacinas corre tão bem que o Governo e o Presidente insistiram em não ser vacinados, “para dar o exemplo”. Qual? Se adoecerem, vão consumir mais recursos médicos e hospitalares do que os normais, e vão retirar a outros doentes a hipótese de sobreviverem. Que parte de “os hospitais não aguentam mais” não perceberam? Ninguém acha estranho que seja a DGS, a DGS em perda de autoridade diária, a definir quem é operado e quem morre na oncologia? Quem tem direito a cirurgia e quem não tem? Isto não arrepia? Imagina-se o sofrimento psicológico dos condenados ao não tratamento? E querem que me preocupe com as vacinas de ministros e de um Presidente que deveriam ter sido vacinados em sossego e discrição, e silêncio, por uma vez, deem-nos uma folga de silêncio, em vez de nos incomodarem com o exibicionismo vacinatório? Vacinem-se, temos maiores preocupações.

E já que falamos em vacinas, essa esperança inaugurada num país onde morrem quase 200 pessoas por dia, sabiam da variante brasileira? A de Manaus? A de Manaus é muito perigosa. Tanto como a da África do Sul, mais do que a do Reino Unido. Não se sabe a eficácia das vacinas contra a variante. Segundo o epidemiologista Adam Kucharski, da London School of Hygiene and Tropical Medicina, Manaus devia ter atingido a imunidade de grupo. A maioria da população foi infetada em 2020, mais de 70%. Mas as mortes continuam a crescer, e a infeção está descontrolada. As hospitalizações aumentaram de novo em 2021. E detetou-se a terceira variante, 501Y.V3, similar à sul-africana. Mais de metade das infeções e reinfeções são com esta variante e suas mutações. Sobre ela sabe-se pouco, a Amazónia não é um modelo de investigação no combate à pandemia. Esta variante, que a falta de transparência portuguesa fez de conta que não existia, soubemos dela porque, mais uma vez, os ingleses nos bateram com a porta na cara. A BA deixou de voar para Portugal, tal a preocupação. O ministro do costume protestou e foi ignorado como de costume. E pergunta-se, os voos de e para o Brasil acautelaram isto? Não.

Os voos estão cheios, e cheios vão estar, porque a moda dos portugueses chicos-espertos com dinheiro é ir passar o inverno ao Brasil e fugir desta “seca de país”. Os hotéis das praias do Nordeste estão cheios. O Rio tornou-se “barato”. São Paulo está ótimo, tudo aberto, há festas. No Brasil, o vírus é coisa de pobres. Se tentar marcar um voo da TAP para o Rio ou São Paulo, e daí para Manaus na Azul do Neeleman, a vida continua, o algoritmo avisa que há já poucos lugares disponíveis em janeiro e fevereiro. E temos o Carnaval. A variante e as mutações vão circular em Portugal, decerto circulam já, mas temos de manter a TAP a voar para levar e trazer os meninos e meninas que não aguentam “a cena do confinamento”. Conheço gente que foi e veio ao Brasil várias vezes, passar umas semaninhas em teletrabalho. É o shuttle da 501Y.V3.

Temos muito tempo pela frente para nos infetarmos todos. O Presidente disse, e ninguém reparou, que a vacinação vai levar ano e meio. Ano e meio. Dez milhões de almas. A Índia vai vacinar 300 milhões até agosto. Os britânicos estão a vacinar milhões. Israel também. A Alemanha desviou 30 milhões da vacina da Pfizer para a população, em vez de esperar pela lentidão burocrática da Europa, que comprou mais Sanofi por pressão política da França. A Sanofi está atrasada e não se sabe se será aprovada em 2021. Daí a corrida à Pfizer, que agora tem de satisfazer outras encomendas e avisou dos atrasos. Mas, como diria o Rick de “Casablanca”, teremos sempre o Brasil. 

Red lips challenge

 

por estatuadesal

(Eugénia Galvão Teles, in Expresso, 22/01/2021)

Mal começou o confinamento, tivemos direito a um red lips challenge nas redes sociais. O porquê desta súbita paixão pelo batom? A resposta ao novo número de circo de André Ventura que, sozinho no palco, decidiu animar a plateia debitando uma litania de caricaturas dos seus adversários políticos. Quando chegou a vez de Marisa Matias, lamentou em tom jocoso a fraca imagem da pobre coitada por, com aqueles lábios muito vermelhos, mais parecer uma coisa de brincar.

Dada a literacia digital do Bloco de Esquerda e o mimetismo típico destes fenómenos, estavam criadas as condições ideais para uma enchente de bocas vermelhas, com profusão de hashtags e declarações de solidariedade. Politicamente, é fácil desvalorizar o momento como uma mera espuma dos dias, de duração inferior a 24 horas e sem qualquer influência sobre o sentido de voto.

Mesmo assim, algum ponto sensível o insulto conseguiu tocar. Foram avistadas mulheres para quem a associação a uma candidata proveniente da esquerda está perto da heresia darem-se ao trabalho de desencantar um batom e encarniçar a boca. A questão deixou de ser política e tornou-se pessoal. Para muitas, lembrou-lhes o dia em que ouviram algo de parecido por causa de uma cara com excesso de pintura, uma saia demasiado curta ou um decote mais pronunciado. O mesmo julgamento que está só um passo atrás do “estava a pedi-las” no contexto da violência sexual. O comentário mostra também o quão difícil é encontrar a imagem certa num terreno tradicionalmente masculino como a política. A exigência de uma opção entre ser feminina ou ter poder não só persiste como continua a envenenar a relação das mulheres com a sua própria imagem.

Depois de um ano a entrevistar dezenas de raparigas entre os 11 e os 16 anos na Europa e nos Estados Unidos, a revista “The Economist” publicou em dezembro um artigo de fundo onde tenta fazer o ponto da situação sobre a adolescência no feminino. A boa notícia é estarmos provavelmente perante um momento privilegiado para se ser uma futura mulher no mundo ocidental. Nunca as adolescentes foram tão livres nas suas escolhas e identidades; nunca tiveram interesses tão diversos e tantas aspirações. É o retrato de uma geração confiante no seu potencial e disposta a mudar o mundo.

Neste quadro otimista, aparece uma exceção: a relação com a aparência física. Quando o tema passa a ser o seu corpo, a grande maioria das entrevistadas declara-se insegura, sofre com a pressão social e já se sentiu julgada enquanto objeto sexual. Mas nenhuma pretende um sistema onde seja obrigada a escolher entre a forma e a substância. O que desejam é a liberdade de se exprimir através do seu corpo sem estarem sujeitas aos chavões “sê bonita e cala-te” ou “o que tu queres sei eu”.

No gesto de pintar os lábios em solidariedade com Marisa Matias, é possível ver a exigência da mesma liberdade. Para quem anda sempre a apontar o dedo à vitimização das feministas, devia ser uma boa notícia. Não houve queixas de virgens ofendidas, mas um desafio coletivo. No meu corpo decido eu e ninguém pode retirar daí uma conclusão quanto ao que sou ou quero fazer. Quem não gosta, temos pena.

Puro simbolismo? Talvez. Mas é bom sinal se revela a forma como as mulheres do futuro estão determinadas a reagir perante julgamentos deste calibre.

O germe do fascismo

Posted: 21 Jan 2021 04:02 AM PST

 


«Em nenhuma democracia civilizada os políticos procuram o protagonismo à custa da humilhação dos seus adversários, da ofensa e da provocação gratuita, das agressões verbais. Mas André Ventura tem trazido lama para a vida política portuguesa, tem dividido a sociedade e legitimado o racismo, a xenofobia e os ataques à democracia, tem atacado a imprensa e os seus apoiantes têm ameaçado e coagido os seus opositores nas redes sociais. 

A sua campanha para as presidenciais tem sido um teatro grosseiro de ofensas, intolerância e de falta de respeito. Uma anomalia de caráter que tem vindo a normalizar-se, a exemplo do que aconteceu com Donald Trump, que acabou da forma que todos sabem com a invasão do Capitólio. Se foi possível na democracia dos Estados Unidos, poderá também acontecer em qualquer outra parte do mundo. 

Salvaguardadas as devidas proporções, o nível de egocentrismo e de culto da personalidade é idêntico ao de outros líderes políticos que no passado fizeram história pelas piores razões, fruto de um tempo e de uma ideologia, muitas vezes com consequências trágicas do ponto de vista humano e para a democracia. Nesta vaga de populismos nacionalistas, basta pensar nos resultados infelizes da governação de Trump, Bolsonaro ou Matteo Salvini, em que a desumanidade se torna normalidade. 

Tal como aconteceu com as profundas crises pandémica e financeira após a I Guerra Mundial, com a gripe espanhola em 1918-20, e com a crise financeira decorrente do crash da Bolsa de Nova Iorque, em 1929, que foram o viveiro para o aparecimento de figuras sinistras e autoritárias, também agora o mundo está a ser atingido por uma violenta pandemia, dez anos depois de uma grave crise económica e financeira, que veio na sequência da guerra global ao terrorismo após os ataques às Torres Gémeas em Nova Iorque. E essas figuras sinistras também têm aparecido agora, explorando sem escrúpulos o contexto de crise e insegurança para tentarem a conquista do poder. 

Os populistas são parasitas da democracia que aproveitam os momentos de dificuldades para semear a desordem, a confusão e a desinformação, em absoluto desprezo pelo esforço coletivo para superar as crises. Os seus alvos estão bem definidos: a imigração e as minorias, a rejeição do multiculturalismo, o sistema e a corrupção das elites, como se não houvesse instituições para a combater. E depois é tudo apenas uma questão de retórica, psicologia e bom uso das redes sociais. É a tempestade perfeita para atacar a democracia e os seus valores, ao arrepio de todos os esforços que os governos possam fazer para aprofundar a justiça social, a solidariedade e a igualdade de oportunidades para todos. 

Não admira que a extrema-direita tenha chegado mais tarde a Portugal, porque nunca o país teve problemas com a imigração, com o multiculturalismo ou com a religião. Pelo contrário, sempre fomos vistos como exemplares nestes domínios. Por isso, a única onda que a extrema-direita portuguesa podia cavalgar era a da estigmatização da etnia cigana, que foi o que o Chega fez, a par da hipervalorização das forças de segurança, a partir de onde se desenvolveu toda a retórica populista e securitária, mesmo que Portugal seja o terceiro país mais seguro do mundo. 

Ventura não critica nem condena os abusos das forças de segurança nem as vítimas de racismo. Pelo contrário, protege sempre as forças de segurança, mesmo quando existe flagrante violação dos direitos fundamentais, o que constitui um precedente perigoso para admissão de todo o tipo de arbitrariedades. 

Aquilo que a extrema-direita faz em Portugal é uma desconstrução dos valores humanistas e universalistas e um esvaziamento da história, fazendo tábua rasa da nossa convivência histórica com outros povos e da pedagogia da aceitação. E isto representa um retrocesso civilizacional. 

A civilização não é apenas evolução técnica. É, acima de tudo, o progresso das mentalidades e a compreensão de que nada distingue os seres humanos se a todos forem dadas as mesmas oportunidades, independentemente da sua condição. E o mesmo se aplica à vida política. O que sustenta as sociedades democráticas é o respeito por todas as opções políticas e ideológicas, é a tolerância e a convivência na diversidade, sem estigmatizações. Não aceitar estes valores é o princípio onde germina a semente de todas as “limpezas” de que Ventura fala, é onde mora o germe do fascismo.» 

Vírus Ventura

 

Vírus Ventura

por estatuadesal

(Ricardo Salazar, in Público, 21/01/2021)

O candidato presidencial André Ventura não tem idoneidade para o cargo. Ao passear com a frase “Presidente dos Portugueses de Bem” ou a garantir que não vai ser Presidente de todos os Portugueses, André Ventura não possui o mínimo para poder concorrer ou sequer poder-se admitir que ocupe o cargo, caso fosse eleito. Porque não respeita a Constituição da República Portuguesa e porque a sua mensagem cria clivagens e divisões na Nação e no Povo português.

O seu discurso, sem ideias mas pleno de frases de efeito, é destinado a fomentar o ódio. O ódio à diferença, ao outro e a quem não pensa igual. É um discurso pleno de inverdades e de contradições, seja quando garante que vai ocupar o seu cargo de Deputado com exclusividade, seja quando afirma que se demite se ficar atrás de Ana Gomes nestas eleições. O Candidato Ventura não tem limites. Usa pessoas como troféus, quando exibe duas alegadas pessoas de etnia cigana num gesto triste nunca antes visto na política portuguesa. Quando o Deputado André Ventura, em publicação dirigida para os seus seguidores propõe que a Deputada Joacine Katar seja “devolvida para o seu país de origem”, as suas palavras ecoam no homicídio de Bruno Candé, onde o seu confesso homicida proferiu “Preto do caralho, vai para a tua terra”. O que fez André Ventura, com a sua falta de sentido: manifestações a afirmar que não há racismo, porque palavras para a família da vítima não colhem votos entre os racistas que negam o racismo.

André Ventura mostra-se capaz de fazer um pleno de faltas. Para além de faltas à Assembleia da República, tem falta de educação quando insulta adversários políticos, chamando “bêbado” a Jerónimo de Sousa, “contrabandista” a Ana Gomes e “fantasma” ao Presidente da República em funções. E diminui todas as mulheres quando faz da luta política um ataque à forma física e imagem de Marisa Matias, sendo reflexo de um pequenino e mesquinho sexismo, onde antes já habitava um racismo, xenofobia e cobardia simplória de se tornar pavão perante os fracos e cheio de desculpas perante os que nele mandam.

André Ventura tem falta de sentido de Estado. Não tem postura e idoneidade para ser deputado, pois é insultuoso, segregacionista e incendiário. Não tem uma palavra boa, construtiva ou de união. Ventura vive no conflito, existe pela fama e fortuna dos que trocam o amor a um País por 30 moedas, como Farage. Sem divisão, o André do comentário desportivo não é nada. Sem muito barulho e luta na lama, Ventura é apenas mais uma cara de extrema-direita para vender aspiradores, um ‘Brexit’, um muro ou ridicularizar Rui Rio, que lhe perdeu respeito e agora ganhou medo ao vender os Açores numa bandeja de prata. E quando um grupo de media e um clube de futebol lhe dão palco, o céu é o limite, pois tudo serve para criar polémicas e para ganhar notoriedade, desde que o caos dê clicks e as caixas de comentários se encham de uma tensão que não irá agora sossegar sem explodir. E é esse arar de tempestades que revela a falta de sentido de responsabilidade do Deputado, que tem uma missão divina, para seu cargo.

Numa altura de uma Pandemia que traz nas suas asas a morte e a crise, André Ventura é a prova provada de um erro na nossa Democracia e será a nossa Democracia a salvar Portugal de André Ventura e do que ele representa: o retrocesso.

O Chega é um partido de ideais de extrema-direita que não gosta que o desmascarem. Sente-se ofendido quando é intitulado de “racista” porque há sempre uma desculpa para a culpa da vítima. Sente-se incomodado quando lhe chamam “fascista” porque pensa que o desejo de mudar a Constituição é uma luta contra a corrupção que nem sequer lhe passa na cabeça que seja um golpe de estado à velha maneira dos messias de outrora.

O Chega, pese embora seja formalmente legalizado está, com a sua postura e apoios, a caminhar a passos largos para ser extinto, devendo nós estar vigilantes para que tal aconteça, em respeito pelos Portugueses e pela Democracia. E a arma para afastar fascistas é o voto e dizer que André Ventura e quem comanda os fios das marionetas não passarão.

Tal como os seus modelos, André Ventura tem falta de vergonha e tem falta de noção. Usa todos os truques que Donald Trump usa, é capaz de demonizar jornalistas e de usar as redes sociais como a “nova verdade”, usando as suas intervenções na Assembleia da República como cenário, cortadas e coladas como exemplo do macho branco que diz as verdades, quando na verdade nada diz. É o mais fraco candidato de sempre e simultaneamente o mais perigoso. Porque tal como Trump, não respeita a Lei fundamental do País que nós temos no coração, Portugal, semeando divisões que levam à revolta popular, que transformam pessoas boas em fanáticos, que fazem as birras e a não aceitação de resultados em invasões como a do Capitólio, ou a algo pior que está para vir.

André Ventura é um vírus. As suas palavras são uma doença e a pandemia está a crescer com o aumento dos apoiantes do Chega.  É a Covid-21, que infecta corações e mentes e que terá de ser curada votando. Para que a personagem que encarna possa servir como exemplo futuro, às gerações que criamos e que cuidamos, daquilo que escolhemos para Portugal, como uma terra de amor ao outro, de sentimento de comunidade, de luta pela nossa Democracia e de respeito por nós próprios.

Advogado