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sábado, 30 de janeiro de 2021

Precisamos de tempo para salvar todo o ecossistema de saúde

Posted: 28 Jan 2021 03:24 AM PST



 

«“Nunca pensei que chegasse a este ponto”, oiço de forma recorrente. Recebo mensagens, telefonemas ou em rápidas conversas nos corredores, profissionais de saúde, de todas as classes e de vários locais do país, relatam uma situação semelhante: a enorme pressão a que os hospitais estão sujeitos. Nem nos piores momentos, tivemos um fluxo constante de doentes com elevados níveis de necessidades e requerem vários recursos diferenciados, desde humanos a materiais. 

Os recursos materiais são esticados e improvisados ao máximo. Enfermarias transformadas em cuidados intermédios, blocos operatórios transformados em cuidados intensivos, qualquer espaço livre na urgência é aproveitado para um novo internamento. Reciclam-se camas que estavam para aproveitamento de peças, otimiza-se a rede de distribuição de oxigénio que não foi construída para esta enorme procura súbita e são retirados do armazém monitores antigos. Tudo é aproveitado ao máximo, mais houvesse, mais seria utilizado. 

Mas tem um limite, até conseguimos, com boa vontade e imaginação, arranjar mais um espacinho para o novo doente com covid-19 que nos chega, mas inevitavelmente, a dada altura os recursos humanos estão esticados ao máximo e no limite da sua capacidade de resposta. A trabalhar com rácios apenas possíveis porque os nossos profissionais de saúde são bastante bons. Mas não somos máquinas, trabalhar dias a fio sempre a um elevado ritmo, sem ter gozado férias em 2020 e não podendo gozar agora, a perder folgas e com vários seguimentos de turno, terá certamente impacto na saúde mental de todos nós. Temo seriamente pela nossa capacidade de processar todo este esforço. 

Os cuidados intensivos chegam rapidamente à marca dos 750 internados, apenas por uma doença. A quem insiste em comparações descabidas com a gripe, tem de saber que 2014 foi o ano que a influenza causou mais pressão em cuidados intensivos, chegando a 98 doentes internados durante um período de 2 semanas. Desde o final de novembro, que a Covid-19 provocou uma ocupação de cuidados intensivos superior a 500, atingindo nas últimas duas semanas, estes novos e preocupantes máximos históricos. Colocando em perspetiva, esta utilização de recursos transposta para janeiro 2020 e estaríamos com uma ocupação de 107%. 

Nas urgências experienciamos uma situação dramática. Se nas unidades, o ambiente, apesar de pesado e trabalhoso, é controlado, nas urgências a porta da rua está aberta. Não se controla, minimamente, o fluxo de doentes que nos chega e somos obrigados a ter sempre algum tipo de resposta para oferecer. Isto provoca situações limite, em que num espaço físico planeado para 15 doentes com ventilação não invasiva, existam agora facilmente 40. Pela falta de vagas em cuidados intensivos ou intermédios, os doentes são forçados a permanecer mais tempo que o desejável nas urgências, em difíceis situações clínicas e logísticas, em que profissionais são forçados a desdobrarem-se para prestar os cuidados possíveis a todos. 

Na comunidade a situação não é melhor. O volume das atividades relacionadas com a testagem, rastreamento e isolamento de novos casos é uma montanha que não para de crescer. O trabalho não tem fim à vista, o que torna desesperante o dia-a-dia dos profissionais que trabalham neste contexto. Sem esquecer que todas as restantes atividades dos cuidados de saúde primários ficam invariavelmente atrasadas. A base da nossa pirâmide da saúde está suspensa e presa pela covid-19. 

Faço este relato não com o objetivo de assustar as pessoas. Aliás, quero deixar claro que os profissionais de saúde não têm desistido, têm tido um esforço inegável, desde a criatividade em arranjar soluções a força física para aguentar mais turnos, que se não tivéssemos esta força de trabalho, a situação estaria bem pior. Faço este relato na esperança de que todos façam o possível por reduzir ao máximo as oportunidades de transmissão do vírus. A utilização correta das máscaras de proteção, a higiene correta das mãos, redução da presença em espaços fechados e pouco ventilados, assim como, o distanciamento social adiando jantares e convívios nas próximas semanas. 

Precisamos de tempo para salvar todo o ecossistema de saúde e para as vacinas começarem a exercer a sua influência. Todos temos um papel essencial a cumprir. Uns trabalham nos serviços de saúde, outros recolhem o lixo, outros fazem o pão e outros fazem teletrabalho. Todos são heróis. Todos são necessários. Sejam agentes ativos de saúde pública.» 

Mário André Macedo - Enfermeiro 

O nosso pior erro político

 

por estatuadesal

(Wolfang Munchau, 23/01/2021)

Com a sua desastrosa política de aquisição de vacinas, a UE cometeu o erro final: deu às pessoas uma razão racional para se oporem à integração europeia.


Parece que fui um pouco precipitado quando previ que a austeridade ficaria como o pior erro político da UE durante a minha vida. Em certo sentido, esta previsão sobre a época da crise da zona euro revelar-se-á provavelmente correcta. A austeridade desencadeou divergências económicas que serão difíceis de inverter.

Mas a política de vacinas da UE deve tornar-se num candidato forte a esse título. A 22 de Janeiro, a UE tinha vacinado apenas 1,89% da sua população, enquanto que o Reino Unido tinha vacinado 9,32%. Além disso, a taxa diária de aumento é mais rápida no Reino Unido. As vacinações britânicas não só começaram mais cedo, como a diferença ainda está a aumentar.

Não se pode culpar os erros logísticos. O que aconteceu é que a UE não conseguiu assegurar vacinas suficientes. Isso, por sua vez, atrasou a passagem. Os números anunciados pela Comissão não são  entregas. Já em Novembro, o chefe do Moderna avisou que a UE estava a arrastar as negociações. A AstraZeneca, que está a distribuir a vacina de Oxford, disse que as entregas à UE vão demorar mais tempo do que o anteriormente previsto. A Pfizer, que distribui a vacina alemã BioNTech, está agora a avisar a UE de estrangulamentos no fornecimento devido a problemas com um local de produção na Bélgica.

O que aconteceu aqui é que a UE fez um acordo comercial Brexit com a indústria farmacêutica: tentou assegurar uma vantagem percetível de preço a curto prazo à custa de tudo o resto. Em vez de dar prioridade à rapidez e segurança dos fornecimentos a qualquer preço, a UE deu prioridade ao preço. A UE pagou 24% menos pela vacina Pfizer do que os EUA, por exemplo. Para a vacina Oxford/AstraZeneca, a diferença de preço é de 45%. O Reino Unido pagou quase de certeza muito mais. Não é de admirar que os fabricantes estejam a dar prioridade às encomendas por ordem de chegada, sendo as dos primeiros a chegar, as primeiras a serem servidas,  e dos países que pagam o preço total. A diferença de preço é macroeconomicamente irrelevante. Mas se a escassez de vacinas levar a bloqueios mais longos, o efeito indireto dessa política de vistas curtas será enorme.

A certa altura, o custo deste erro político será também mensurável em termos de vidas humanas. Isto não é possível agora porque não conhecemos a futura propagação do vírus. Sabemos que a variante  do Reino Unido chegou ao continente, mas ainda não libertou toda a sua força pandémica. No cenário mais benigno, o actual confinamento pode evitar o pior. No pior cenário, o atraso da vacinação será uma calamidade que poderia custar dezenas de milhares de vidas.

Então porque é que os governos da UE transferiram a responsabilidade pela aquisição de vacinas para a UE em primeiro lugar? Angela Merkel raciocinou que a coesão da UE teria sido prejudicada se a Alemanha tivesse adquirido fornecimentos privilegiados da vacina BioNTech. O que ela não considerou é que a UE está mal equipada para esta tarefa. Até hoje, o ADN da UE é o de um cartel de produtores. A sua prioridade não é garantir o abastecimento, mas reduzir os custos e alcançar algum equilíbrio entre os interesses franceses e alemães. A triangulação é o que Bruxelas faz para viver. Fazer tudo o que for preciso [1], não faz parte da sua cultura.

Numa perspectiva mais ampla, a catástrofe da vacina é o culminar de uma tendência que começou com o Tratado de Maastricht. Até então, a UE fez apenas algumas coisas bem: a união aduaneira, a zona de viagens Schengen, e, em menor medida, o mercado único. As competências da UE têm vindo a alargar-se progressivamente desde então, mas os resultados são na sua maioria decepcionantes. No início dos anos 2000, a UE estava obcecada com a Agenda de Lisboa para as reformas estruturais, que trouxe poucos benefícios concretos. O mesmo sucedeu com o programa de investimentos Juncker  uma década depois. A catástrofe da vacinação difere apenas num aspeto: será culpada pela perda de vidas humanas.

Haverá, sem dúvida, pedidos de demissão. Mas para mim, a questão mais importante são as conclusões que os cidadãos da UE tirarão desta situação. Para começar, a UE acaba de apresentar um argumento retrospectivo a favor do Brexit. O Reino Unido não teria procedido às vacinas tão rapidamente se se tivesse submetido à mesma política. A última coisa que a UE pode querer fazer é dar às pessoas uma razão racional, não ideológica, para o eurocepticismo.

Acaba de o fazer.

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[1] Nota do Tradutor. Trata-se de uma alusão à frase de Mario Draghi sobre fazer tudo o que fosse possível para salvar o euro.

Depois de limpas as cinzas, está tudo na mesma?

 

por estatuadesal

(Francisco Louçã, in Expresso Diário, 26/01/2021

Marcelo ganhou com cinquenta pontos percentuais de vantagem sobre a segunda classificada, como se esperava. E teve mais votos de esquerda e do centro-esquerda do que as três candidaturas da esquerda. Assim, a ideia de uma segunda volta sempre foi uma fantasia patética. Nenhuma surpresa. Depois, Ana Gomes passou Ventura. Nenhuma surpresa, a não ser a escassez da vantagem, o facto é que ela não polarizou votos do PS e se limitou a um apelo de voto útil aos eleitorados tradicionais do PCP e Bloco. Depois, Ventura subiu e muito, levando consigo os tais votos “zangados”, arrasando o CDS e comboiando uma parte do PSD. Nenhuma surpresa, pois não?

A esquerda foi nisto derrotada, também aqui há pouca surpresa. Ana Gomes mostrou-o num discurso ressentido na noite de domingo, culpando o seu partido e todos os outros por não a terem apoiado, mesmo que ela própria tenha ensaiado, na reta final da campanha e contra o conselho dos seus apoiantes, reduzir-se a uma candidata de facção para promover uma escolha sucessória no próximo congresso do PS. O seu resultado, cerca de metade do de Sampaio da Nóvoa e muito inferior ao de Manuel Alegre, demonstrou como teria sido preciso alguém que representasse aquele espaço e o projetasse numa alternativa. As duas outras candidaturas da esquerda, que mostraram combatividade e preparação, sofreram com a polarização para Ana Gomes (e para Marcelo, é melhor não fingir que não aconteceu) e perderam. Marisa, apesar da brilhante última semana de campanha, ficou a menos de metade da sua votação anterior. Que o tenha reconhecido com humildade só lhe fica bem. E João Ferreira, que além do mais se deixou apresentar como candidato a secretário-geral do PCP, ficou colado à pior votação de sempre do seu partido, a de Edgar Silva, mesmo no Alentejo, como desde domingo se tem esforçado por provar.

Em todo o caso, faleceu a narrativa de que seria beneficiada a candidatura que representasse uma colagem ao governo, e bem que procurou mostrá-la, e que seria punida a que representasse uma crítica à incapacidade orçamental de defender o SNS e de promover respostas sociais à pandemia. Como é bom de ver, era uma lenda. Mas isso é o menor dos problemas para as esquerdas, que têm três desafios maiores.

O primeiro é a vitória de Costa. Ganhou com Marcelo, ganhou com a baixa votação de Ana Gomes (o que condiciona Pedro Nuno Santos a uma atitude defensiva no congresso), ganhou com a derrota das esquerdas e espera assim impor a restrição orçamental dos próximos anos ao PCP, e, sobretudo, ganhou com Ventura. Ventura vai ser o principal argumento de Costa para disputar o centro ao PSD e para procurar fazer transfigurar um governo cansado numa maioria absoluta. Vai ser uma festa. O único problema deste desenho é que é uma irresponsabilidade. Se o PS se entusiasmar com a ideia de que o governo pode continuar a prometer e a não cumprir, como fez nas contratações médicas ou nos apoios aos trabalhadores a recibo verde, aos desempregados, às trabalhadoras domésticas, aos gestores da restauração e a pequenos empresários, para se dedicar alegremente a um jogo político para atrapalhar Rui Rio, vai favorecer uma tempestade social. É preciso olhar para onde estão as soluções e nenhuma delas está numa aritmética de anúncios publicitários. Continuo por isso a pensar, perante tão insignes estrategas, erro meu certamente, que no fim e no princípio só importam as pessoas.

O segundo problema é Ventura. Os autarcas e alguns deputados do CDS vão, mais dia menos dia, arribar ao Chega, e o PSD vai acomodar-se à ideia de que essa aliança é matéria de sobrevivência. Já houve suficientes intelectuais de direita a clamar por isso para que se possa imaginar que é um fogo fátuo. A extrema-direita veio para ficar e a direita vai nesse caminho. E há duas respostas para isso: ou a sobranceria de centro, em nome de ilustres e bem vestidos princípios institucionais, ou a solução democrática que importa para a gente, a que cuida da vida de quem passa dificuldades. Há a solução de por a cartola e levantar o queixo ou há a de arregaçar as mangas e desenvolver a democracia na saúde e na economia.

O terceiro, o mais difícil, é discutir governo, ou como responder à pandemia. As duas sondagens publicadas desde domingo são algo contraditórias: a do grupo DN/JN/TSF, cujos dados são de há dez dias (é um curioso mistério porque não foi publicada entretanto), dá o PS a subir e o Bloco e o PCP a descerem, todos ligeiramente; a da RTP, com uma amostra grande no domingo eleitoral, dá o PS a descer, o Bloco a subir e o PCP a aguentar-se. Mas o que ambas confirmam é que a direita junta está abaixo do PS e que este partido está tão ou mais longe da maioria absoluta do que sempre esteve. Então, tudo na mesma?

Nem pense nisso. Começa agora a fase crítica da pandemia, mais um ano de emergência sanitária e que revelará a dimensão do furacão económico. O reajustamento exige tudo o que tem faltado: competência no planeamento e na definição de prioridades, recursos adequados, transformações estruturais nos serviços de referência para a o dia a dia da população. E essas transformações são o que está em causa na governação. A sensação de urgência e a resposta consistente de partidos que provem que sabem do que falam, que não se deixam iludir pelo imediatismo, que avançam propostas realizáveis e irrecusáveis no essencial da vida das vítimas da pandemia, isso é que vai contar quando se fizerem as contas.

Quando passar uma ambulância, não olhem para o lado

Posted: 27 Jan 2021 03:39 AM PST

 


«Em casa, após mais uma urgência de 24 horas, é tempo para um café bem forte e, finalmente, para a leitura do PÚBLICO de ontem e o retomar do contacto com o que se passou fora do hospital. 

As notícias do agravamento dos números da pandemia em Portugal e a subida rápida do país ao topo da lista dos países com piores indicadores traz-me à memória uma das situações vividas ontem. Pelas quatro horas da tarde eu estava numa ambulância, transportando para o hospital uma doente em estado crítico, ligada a um ventilador. No interior da ambulância, por momentos desviei a atenção dos monitores, dos tubos e da doente e espreitei pela janela: estávamos na VCI, a via que circunda a cidade do Porto, e foi com espanto que constatei verificar-se um trânsito muito intenso. O fluxo de veículos era contínuo, nas três faixas de cada sentido, em tudo semelhante a um dia normal. Isto, em pleno confinamento, numa sexta-feira de tarde, com as escolas fechadas, com o país sob medidas muito semelhantes às de Março/Abril, o que observei nada tinha que ver com o que se observava então e o contraste chocou-me. No hospital desde o início da manhã, pensávamos que o fecho das escolas iria finalmente resultar em manter as pessoas em casa. Quem seriam e o que fariam todos os cidadãos que às quatro da tarde circulavam em tão grande número? Não estavam a sair dos empregos, não estavam a recolher os filhos nas escolas, alguns estariam em trabalho, mas todos? 

Enquanto tentava entender o que poderia justificar tanto trânsito e quem ocuparia aqueles veículos, não pude deixar de efectuar o exercício inverso de procurar imaginar que reacção provocaria aos ocupantes dos veículos a passagem de uma ambulância e o alerta das suas luzes e sirenes. Quantos se terão preocupado com o doente transportado na ambulância? Em quantos a passagem da ambulância terá proporcionado um momento de reflexão e de introspecção? 

A verdade é que são tantas as ambulâncias que receio que para muitos a sua passagem não suscite mais do que indiferença. A passagem da ambulância terá representado apenas uns milissegundos de desvio da atenção, não deixando marcas, nem suscitando reflexões. Se a ambulância transportasse alguma celebridade e ao final do dia pudessem reclamar ter assistido à passagem da ambulância que transportava “X”, então sim, o caso mereceria toda a atenção. Mas sendo apenas mais uma ambulância e o doente um simples número numa estatística anónima publicada no dia seguinte, nenhum efeito produziria este cruzamento fortuito com mais uma ambulância. Enquanto eu procurava entender o que se passaria na mente dos ocupantes de tantos veículos, senti que nas mentes de muitos deles a preocupação efectiva com o cenário no interior da ambulância seria reduzido. 

Mais tarde, no hospital, conversei com colegas sobre as possíveis causas para o que nos parece ser uma aparente ineficácia ou um efeito limitado do presente confinamento. Porque é que os portugueses não estão a ficar em casa e a abster-se dos contactos sociais que mantêm a propagação do vírus? 

Atrevo-me a especular que, ao contrário do início da pandemia, agora o alarme e o medo só ocorrem quando é a vida de um dos nossos que está em perigo. Numa fase em que um em 20 portugueses já contraíram o vírus e a maioria nada sofreu, e em que qualquer um conhece pessoalmente várias pessoas a quem o vírus não causou doença, atenuou-se muito o medo que em todos existia no início da pandemia. Este facto, associado a semanas de exposição aos discursos que repetiam que na segunda vaga havia sobretudo assintomáticos e que o SNS estava preparado e com boa capacidade de resposta, resultou num relaxamento das medidas de protecção. A completar as premissas para uma tempestade perfeita, veio o Natal e as atitudes optimistas que tanto agradaram quer aos decisores, quer à generalidade dos cidadãos, numa singular unanimidade entre a hierarquia do Estado, as diversas autoridades e a totalidade dos partidos políticos e, naturalmente, os cidadãos. Acreditou-se na existência de condições para uma abertura no Natal e naturalmente, por efeito do chamado espírito natalício, terá ocorrido um fenómeno muito próprio da nossa cultura em que o desejo se sobrepôs à realidade. 

A comparação entre a reacção dos nossos concidadãos ao avanço da pandemia em Março e em Janeiro sugere que o efeito determinante no seu comportamento possa ser a dimensão do medo. A meu ver, esta componente é no caso da presente pandemia reforçado por um elemento que constitui uma absoluta novidade: os familiares não acompanham os seus entes queridos ao longo dos seus internamentos hospitalares e não são, por isso, testemunhas do que é estar gravemente doente e sucumbir a esta doença. A fase avançada e grave ocorre com um absoluto distanciamento físico. Penso que é maior, por exemplo, o medo relativamente ao cancro, pois todos somos testemunhas de casos em que a progressão da doença provoca grandes incapacidades, as quais evoluem ao nosso lado, com uma evidência que nos choca. Com os nossos familiares internados em enfermarias covid quase não há contacto. As imagens das televisões são muito impessoais e o doente e a sua narrativa reduzem-se a números. Os casos que se tornam mediáticos são os dos sucessos terapêuticos que felizmente vão ocorrendo, mas que no fundo alimentam uma esperança que as estatísticas não iludem. 

Dois depoimentos na última semana no PÚBLICO, de Jorge Soares, presidente do Conselho Nacional de Ética, e de Carlos Antunes, investigador da FCUL, são muito importantes para a compreensão do elevado crescimento em Janeiro dos números da pandemia em Portugal. 

É urgente conseguir que os portugueses modifiquem a sua atitude e que entendam que está nas mãos de cada um o gesto mais importante para travar a progressão da doença. O que observei ontem na VCI sugere que muitos dos nossos concidadãos diariamente encontram motivos para legitimar o que a seu ver lhes parece uma inofensiva inconformidade. E como no dia-a-dia todos constatam que as suas acções e deslocações ocorrem num cenário em que a probabilidade de serem interpelados e questionados é mínima e a de serem penalizados é ainda menor, instituiu-se mais um cenário em que ambas as partes, autoridades e cidadãos, se refugiam na presunção de que irá prevalecer o respeito pelas determinações do confinamento e a adopção de um comportamento civicamente exemplar. Sim, porque após tantas iniciativas no domínio do que se pode classificar de “propaganda”, os portugueses convenceram-se de que desde o início da pandemia foram absolutamente exemplares, ostentando orgulhosamente o rótulo de ter participado no “milagre português”. 

Esta manhã, ao sair do hospital pelos pisos subterrâneos, vi passar dois cadáveres e não pude deixar de sentir um aperto no peito imaginando o rastro que a noite terá deixado em tantas enfermarias de tantos hospitais. A caminho de casa comprei o PÚBLICO e comovi-me ao olhar a sua primeira página onde, em grandes letras sobre fundo negro, se lê: “Luísa, Vítor, Pedro, Helena... vidas que perdemos para o coronavírus”. É justamente isso que os nossos concidadãos devem ter em conta: o ocupante da ambulância, a noite nas enfermarias cheias de doentes, a perda de tantas vidas e a identidade dessas pessoas. 

Há que ter em conta os milhares e milhares de crianças e jovens que vão ficar privados de anos de convívio com os seus avós. Nós, os cidadãos adultos, assoberbados com os problemas pessoais diários, temos que mudar o modo como assistimos à progressão da pandemia e uma das formas de o fazer é pensar no que teria representado para cada um de nós se os avós que nos morreram há muito tivessem morrido dez anos antes e mal os tivéssemos conhecido e beneficiado dos seus afectos, das suas histórias, do tempo que nos puderam dispensar e dos valores que através deles adquirimos ou dos valiosos ensinamentos que nos prestaram. Não é só a aprendizagem nas escolas que se está a perder, é também essa rica aprendizagem junto dos velhos. E cada um dos cidadãos em idade e situação em que o vírus não representa uma ameaça deve assumir consciência de que pode ser o elo determinante na perda da vida de velhinhos encantadores, que nunca conheceram, mas que podem estar hoje a deixar de respirar e viver. 

Felizmente, a doente que a nossa ambulância transportava está a melhorar, o que permite concluir este depoimento sem adicionar mais uma narrativa trágica. E, sim, posso assegurar que o pessoal das ambulâncias, os auxiliares de acção médica, os enfermeiros, os técnicos, os médicos, os administrativos dos diferentes prestadores de cuidados de saúde, não viramos costas. E o que pedimos é simples: quando passar a ambulância ou a estatística na TV, não olhem para o lado; olhem em frente e vejam o que podem fazer do vosso lado. Pode parecer pouco, mas se todos assumirmos que as acções de cada um contam, o efeito será mais eficaz do que qualquer outra medida.» 

Pedro Amorim 

quarta-feira, 27 de janeiro de 2021

Portugueses do bem

Posted: 26 Jan 2021 04:32 AM PST



 

«Os resultados eleitorais não são surpresa, mas revelam uma dimensão de normalização política e social do discurso da extrema direita que não pode ser escamoteada. 

Um discurso repleto de nacionalismo, racismo, sexismo e xenofobia que dá voz e presença efetiva a preconceitos pré-existentes que, apesar de sempre desvalorizados, mostraram força suficiente para obter um terceiro lugar, numa corrida com vencedor antecipado. 

Vitorioso e antevendo um regresso imediato, mediático e apoteótico, Ventura, em mais um golpe publicitário, num vou ali mas já volto travestido de cumprimento de promessa e pleno da empáfia que a vitória e a reconfiguração da direita justificam. 

O candidato dos portugueses de bem, conceito que parece excluir, entre outros, os portugueses pretos, ciganos ou que usam batom vermelho, foi o candidato da extrema direita mas foi também o candidato da direita dita centrista, sempre pronta a dar-lhe palco, esperançada ou confortada com a perspetiva de colheita de votos que poderá capitalizar adiante, numa frente unida. Ventura sabe-o bem: “Não há volta a dar: não haverá Governo sem Chega nos próximos anos.” 

Nesta onda normalizadora de discursos xenófobos e de exclusão, não esqueço o papel que o atual Governo de Cabo Verde desempenhou, quando não se coibiu de ligações escusas com o Chega, por razões, sem dúvida, ligadas a financiamentos partidários, a não ser que se identifique ideologicamente com a lógica discursiva da extrema direita portuguesa. 

Por mais difícil que seja, é preciso admitir que o discurso xenófobo, racista, sexista, discriminatório e fomentador de políticas de ódio abre caminho em Portugal e tem encontrado uma direita recetiva que lhe vai dando palco, normalizando discursos e estreitando alianças em nome do interesse supremo que dá pelo nome de poder. 

Em cada eleição existe oportunidade de desmascarar os apelos à intolerância cultural, de mitigar a iliteracia sobre a democracia e os direitos humanos. Oportunidade desperdiçada nestas presidenciais, porque continuamos a subestimar e desvalorizar os sinais. 

Desperdiçada quando vemos que a garra de Marcelo face a Ana Gomes só tem comparação no lébi lébi do diálogo com Ventura; quando se esperava um contraponto claro e assertivo de valores, ficou um registo levíssimo de que não é a direita de Marcelo, induzindo que também é direita. Marcelo demitiu-se de combater a extrema-direita populista, quer no campo político, quer na defesa dos valores da dignidade humana, não em nome da sua reeleição mas em nome de um ressurgimento da direita, em futuros atos eleitorais. 

Desperdiçada quando vemos uma esquerda pulverizada, sem um projeto comum que enfrente a lógica discursiva fácil da extrema direita, e uma Ana Gomes refém de si própria e de um discurso incapaz de mobilizar a vontade, até daqueles que sofrem na pele a normalização discriminatória. 

Os comportamentos discriminatórios, seja pela cor, pela etnia e pelo sexo, são uma realidade e, se não definem um país ou as suas instituições, não podem ser ignorados ou apenas ser tidos em conta em situações limite. 

Quando os discursos políticos de ódio da extrema direita são normalizados, os comportamentos xenófobos, racistas e discriminatórios sentem-se estimulados e tendem a aumentar no terreno lavrado pelas dificuldades que o mundo de hoje oferece. 

Cada um de nós, portugueses do bem, que acreditamos naquele princípio consagrado na Constituição da dignidade da pessoa humana, não podemos assistir impassíveis à degradação de valores fundamentais em nome de interesses políticos de manutenção ou obtenção de poder. 

Urge um combate político sério e uma recusa social muita clara e apartidária das lógicas e discursos discriminatórios. Reconhecer a liberdade de expressão da extrema direita não implica reconhecer as práticas discriminatórias e os discursos violentos como normais. Significa apenas que, enquanto portugueses do bem, reconhecemos a liberdade de expressão como um direito.»